Arquivo do mês: janeiro 2012

UM BIGODE

Acabo de chegar da rua. Voltando do Tribunal de Justiça, encostei-me no balcão do Bar dos Advogados, na avenida Erasmo Braga. Ah, a avenida Erasmo Braga… Pacata rua só de pedestres, o trecho a que me refiro fica entre a Graça Aranha e a Presidente Antônio Carlos, ao lado do Edifício Garagem Menezes Cortes. Encostei-me no balcão do Bar dos Advogados e pedi, com fome, ao balconista:

– Duas torradas, sem nada, e um café, por favor… – estou em rigorosa dieta.

Estava eu dando a primeira mordida na primeira torrada quando percebi, ao meu lado, duas mocinhas. Vou descrevê-las.

A primeira vestia calça jeans rasgada (o rasgo ficava na altura do joelho, que estava sujo), blusa de crochê vermelha (estava sem sutiã), umas sandálias de couro cru com fecho (os pés, é preciso que eu diga, lindos), tinha – o quê?! – seus 21 anos, um tererê colorido pendendo dos cabelos ruivos e se coçava, a mocinha, feito um cão sarnento. A outra, um pouco mais velha (23 anos, talvez), vestia uma bermuda branca (encardida), uma mini-blusa amarela, usava um All Star também amarelo e pediram, as duas, fatias de pizza e suco de caju.

Bonitinhas, eu diria – nada mais que isso.

Lanchei – é o que quero lhes contar – aos atropelos.

Não consegui acreditar, até agora, no que eu ouvi.

A ruiva, excitadíssima, comendo de boca aberta, perguntou à amiga:

– ´cê tá sabendo do Milton?

A amiga:

– Não. O que houve?

– Radicalizou.

Quando ela disse radicalizou eu perdi a compostura e passei a prestar, de forma acintosa, atenção à conversa. Seguiram, ainda mais excitadas:

– Conta, amiga! Conta! Conta, conta, conta!

A ruiva, coçando a cabeça com a extremidade de um canudo (o mesmo usado para sorver o suco de caju):

– Voltou de férias sem o bigode!

Eu já era, a essa altura do campeonato, um curioso. Perguntava de mim para mim:

– Que Milton? Que Milton? Que Milton, e que bigode, podem ser tão importantes?

Prosseguiu, a ruiva:

– O Temer, véia, o Temer é radical.

Explodi numa gargalhada, engasguei com um pedaço da torrada, as duas me cravaram os olhos:

– O que foi, tio? – e esse tio, dito pela mocinha dos cabelos ruivos, me flechou o combalido coração.

Fiz que não era comigo.

A de bermuda encardida, fez a blague:

– De terno, cara. Só pode ser um capitalista nojento…

Terminei meu lanche sem lhes dirigir novo olhar. Ouvi a ruiva:

– Tu conhece o Temer? Milton Temer?

Virei-me:

– De outros carnavais… – e fui ao caixa.

E fui ao caixa aterrado. O PSOL, pensei, faz da ausência do bigode do Milton Temer um assunto, uma pauta! Paguei meu lanche. Disse à senhora:

– A senhora pague, por favor, duas torradas, um café, duas fatias de pizza e dois sucos de caju. – e estendi a nota de cinqüenta.

Passando pelas duas, disse:

– O lanche de vocês está pago. Boa tarde.

Vim até a portaria de meu prédio ouvindo impropérios. Até “abaixo o FMI” eu ouvi.

Sexta-feira, a próxima, vou ao Buraco do Lume para ver se encontro as moças. E pra ver – não vejo a hora! – o radical sem bigode.

Até.

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MAIS SOBRE O CINEMA IRANIANO

Vejam vocês que coisa impressionante. Escrevi ontem, sem qualquer pretensão – como faço quase sempre -, o texto A Separação, no qual conto o quão impactante foi minha experiência no cinema, no domingo passado (aqui), no bairro de Botafogo. Não bastasse o equívoco da minha escolha (um filme iraniano), tive de aturar não apenas uma família doente à minha frente na fila dos ingressos mas também um militante do PSOL sentado ao meu lado na sala de projeção. E não bastasse o fato de ser um militante do PSOL, era um militante do PSOL certo de sua capacidade analítica da sétima arte. Passou o filme todo (chato, modorrento, desinteressante…) chorando, gemendo elogios à luz, à lente do diretor, à força dramática dos atores e a outros bichos. Fato concreto é que o texto fez sucesso. Se são minguados os comentários ao texto – cinco até o momento – o mesmo não se pode dizer das visitas, que foi à casa das milhares. O texto correu a grande rede, verdadeiros titãs do twitter deram de espalhar o link e eu recebi adesões maciças contra o cinema iraniano.

Nenhuma das adesões, entretanto, foi mais incisiva que a de meu dileto amigo, por quem nutro obsequioso respeito, Julio Vellozo. Vou dividir com vocês, como sempre faço, o drama que liga Julio Vellozo ao lamentável cinema iraniano.

Contou-me o Julio que, em determinada ocasião, sabe-se lá porquê (nem ele lembra o nascedouro da infeliz idéia), ele foi a uma sala de cinema, em São Paulo, para assistir a um filme – claro! – iraniano. Pequena pausa.

Todo cinéfilo – que é quase sempre um pernóstico – tem mania de dizer, aos quatro ventos, que gostou dos piores filmes da paróquia. É uma espécie de senha que traz, nas entrelinhas, slogans que pretendem demonstrar (sem nenhum êxito, diga-se) sua superioridade. Daí o cinéfilo, que não se satisfaz em ir ao cinema, ver o filme e voltar pra casa, sai por aí, pelos bares, pelos restaurantes, pelas esquinas, dizendo com olhar de gênio:

– Interessante, mesmo, é o cinema persa.

E quando ele fala que interessante é o cinema persa há, na assistência, quase sempre, um olhar fanático de devoção. Claro. O cidadão comum, o cidadão normal, vai – vai que ele vá! – ao cinema pra assistir ao tal cinema persa. Passa o filme todo e ele, o comum, o normal, não entende nada, rigorosamente nada.  Então ele passa a ter, diante daquele que exalta o cinema persa, um olhar humílimo, um sentimento de baixa-estima agudíssimo, uma flagrante vergonha de si mesmo. Mas como diria minha bisavó, comigo não, violão! Sei bem da farsa dessa raça. Daí eu achar de um ridículo sem tamanho a coleção de frases feitas para impressionar os mais fracos. Voltemos ao drama do Julio Vellozo.

Foi, o pobre coitado, assistir a um filme chamado Gabbeh. E eu vou me valer de uma crítica que encontrei aqui para lhes dar uma noção da situação dramática que Julio Vellozo viveu no cinema. Vejam vocês se isso é factível. Diz a crítica:

“Gabbeh, um tipo de tapete persa, é também o nome da personagem feminina e fio condutor desta fábula do cinema iraniano. Atravessando as estepes e as estações, Gabbeh espera o consentimento de seu pai para se casar com um cavaleiro que a segue pela trilha de sua tribo nômade. Mas muitos obstáculos prolongam esta espera, como o casamento de seu tio e outros acontecimentos familiares. Da mesma forma que o tapete colorido (carregado de motivos da vida cotdiana de quem o tece), este filme é entrelaçado de arte e poesia, destacando-se especialmente pelas suas imagens, onde as cores compõem telas impressionistas.

O Julio foi mais sucinto em seu pungente depoimento:

“Um filme iraniano é mais chato que dançar com a própria irmã. O último que fui ver chamava-se Gabbeh e era sobre um tapete. Dormi com menos de 10 minutos de projeção.”

Está aí, pra mim, todo o resumo desse enfado que é Gabbeh (que eu não vi e não gostei). Um filme sobre um tapete, um tapete!

Eu não sei se eu consegui me fazer entender. Como é absolutamente inaceitável alguém fazer um filme sobre um tapete, e como é evidente que tal filme só poderia mesmo ser insuportável, o cinéfilo – justamente por conta disso tudo – passa a ganir, a latir, a gemer as qualidades da biografia do tapete.

É mais ou menos o que acontece com os críticos de arte. Críticos de arte não gostam de quadros, assim como cinéfilos não gostam de filmes. Críticos de arte gostam, mesmo, é daquilo que eles chamam de instalação, assim como os cinéfilos gostam daquilo que eles chamam de filmes herméticos. O crítico de arte torce o nariz para um quadro dentro de uma moldura. Mas o crítico de arte goza, gane, late, geme quando vê, por exemplo, um único e solitário penico, no meio de um salão imenso, cercado por centenas de rolos de papel higiênico. E se você, pobre mortal (homem comum, homem normal) diz “não gostei, achei estranho”, passa a ser alvo de um olhar de nojo, de um olhar pedante, de um olhar superior. Como se tapete rendesse filme, como se penico cercado por rolos de papel higiênico fosse arte.

Comigo não, violão!

Até.

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A SEPARAÇÃO

Caí na asneira, ontem à tarde, de ir ao cinema ver A Separação, produção iraniana, filme indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Foi sair do cinema e ser aterrado por uma certeza inatacável: eu não entendo nada de cinema. Antes, uma explicação.

Eu não chego a ter ojeriza de cinema, como a que tem meu irmão Luiz Antonio Simas com relação ao teatro (leiam seu Bodas de Prata, aqui). Mas o cinema sempre me pareceu o habitat ideal para dormir. Ar-condicionado quase sempre gelado, poltronas (cada vez mais) confortáveis, o escurinho propício. Vai daí que ontem, sabe-se lá o porquê, disse de mim para mim, logo pela manhã:

– Vou ao cinema iraniano.

E só de dizer “vou ao cinema iraniano” senti-me uma espécie de cinéfilo. Ligou-me um amigo, logo cedo:

– E aí, Edu? Cerveja, agora de tarde?

Eu, em posição de sentido:

– Não, não, hoje não. Vou ao cinema iraniano.

E ele, do lado de lá, fez um “oh!”, um “ah!”, não escondeu sua admiração.

Tomei banho, vesti-me, e ao passar pelo porteiro:

– Vai ver o jogo do Botafogo?

Estaquei diante da cabine e disse:

– Não, Gildo. Vou ao cinema iraniano.

Ele arregalou olhos e disse:

– Parabéns.

Cheguei ao cinema, em Botafogo (na Tijuca, e eu já estranhei o fato, nenhum dos cinemas está passando a tal fita). Na fila, uma horda de elegantes. É preciso dizer que eu estava de All Star vermelho, bermuda quadriculada e uma camisa de malha. Fui alvo dos olhares. Não por conta de minha gordura (que vai se esvaindo aos poucos, estou em rigorosa dieta), mas por conta de meus trajes. Ouvi uma velha maquiadíssima cochichar pro marido:

– Isso lá é roupa para vir ao cinema?

E ele, concordando:

– Iraniano! E cinema iraniano!

Fingi que não ouvi, comprei meu ingresso e fiquei fumando do lado de fora. Pausa para lhes contar sobre a compra do ingresso.

Era muito melhor, mais romântico, mais emocionante, comprar o ingresso, entrar na fila, disputar a tapa e a cotoveladas o melhor lugar. Agora, não. A higienização chegou, também, aos cinemas. Compra-se, hoje em dia, lugar marcado. Daí o que se vê são doentes sociais que se sentem poderosos diante do mapa da sala de projeção. Porque é assim: você dá o mínimo poder de decisão ao ser humano e ele passa a ser um insuportável. Vamos ao exemplo. À minha frente, na fila, quatro pessoas juntas: marido, mulher, filho e nora. A bilheteira virou o monitor em direção a eles e disse:

– Quais as poltronas, senhor? – em direção ao mais velho.

Deu-se a bulha. Fui obrigado a assistir quase que a uma reunião de família. A velha dizia:

– Da D4 a D7. Tá bom, bem?

O velho:

– Só sento em fila de vogal.

A bilheteira:

– A, E, I, O e U estão lotadas, senhor.

Ele, neurótico:

– Vamos na próxima sessão!

A nora (era a nora) chiou:

– Ah, não! Vamos na H, então, que agá começa com uma vogal.

E isso levou uns 10 minutos, até que compraram sei-lá-que-lugares.

O pior, entretanto, deu-se durante o filme (que é horrível, modorrento, sonífero etc.). Ao meu lado, um militante do PSOL. Vocês perguntarão como eu sei que ele era militante do PSOL. Vou explicar com os detalhes que minha precisão sempre permite.

Sentei-me primeiro. Pouco depois, chegou-se o jovem (era jovem, não mais do que 22 anos). Comecei a me coçar logo em seguida. Virei de soslaio. O jovem tinha cabelos encaracolados, louros, em tubos, em cachos, como um rastafári. E da ponta dos cachos saíam lêndeas imensas, visíveis a olho nu. Soprei. Apoiei-me no braço oposto da poltrona. Pôs, o jovem, os pés descalços na poltrona da frente (deixou as alpercatas no chão). Fui acintoso e encarei-o de frente. Na blusa de malha branca, o bóton do PSOL. E era, o militante do PSOL, um cinéfilo. Puxou conversa ainda durante os reclames:

– Tu curte cinema iraniano?

Não respondi.

Começou o filme (uma cena inaceitável, marido e mulher olhando pra câmera, que faz o papel de um Juiz de Direito, discutindo sobre a separação requerida por ela). Antes do primeiro minuto, disse o jovem militante:

– Que força dramática!

Um pouco mais à frente – eu já quase dormindo – e ele me cutucou:

– Que olhar, o desse diretor!

Mandei-o à merda e ele devolveu:

– Capitalista insensível!

E assim foi durante todo o filme.

Quando terminou, de maneira absolutamente patética, o jovem estava em frangalhos. Assoava o nariz na ponta da camisa e dizia, sozinho:

– Ah, o cinema iraniano! Ah, o cinema iraniano!

Levantei-me e ele disse:

– Só um segundo, não saio da sala de projeção antes de ler os letreiros finais… – todos no idioma persa, diga-se.

Enxotei-o, joguei longe suas sandálias imundas e voltei arrependidíssimo pra casa.

Até.

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BOLA PRETA

Corria o ano de 2009, dia 20 de janeiro, e lá estava eu – como sempre – na festa de aniversário da livraria do meu coração, a mais carioca das livrarias da cidade, a Folha Seca, comandada pelo Comendador Rodrigo Ferrari. Samba comendo solto do lado de fora, na rua do Ouvidor, até que a noite foi caindo, restamos uns poucos no interior da livraria e encostei naquele sagrado balcão com meu copo americano e minha cerveja.

Chegou-se o legendário Zé Leal, chegou-se Gabriel Cavalcante (quando ainda não me era hostil) e chegou-se, também, o querubim Tiago Prata, apelido que lhe foi dado por Aldir  Blanc (vejam aqui como foi cravado o apelido).

Alguém fez a sugestão. Bola Preta, de Jacob do Bandolim e com letra póstuma de Aldir Blanc, genial como de praxe, e contando toda a história do histórico cordão. Ouso dizer, sem medo do erro, que só eu sei, de cabeça, de cabo a rabo, a imensa letra do bardo tijucano. Com o auxílio desses três craques – e eu não me lembro quem foi que registrou o momento – mandei bala.

Estávamos a poucas semanas do Carnaval, e o Bola Preta já fazia de mim um ansioso – tanto que cantei emocionado.

Até.

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FALTAM 21 DIAS…

Faltam exatamente 21 dias. Às nove e meia da manhã do dia 18 de fevereiro estará aberto, oficial e subversivamente, o Carnaval no Rio de Janeiro. Digo subversivamente porque nasceu, o Cordão da Bola Preta, de forma absolutamente subversiva. Proibidos pelo Chefe da Polícia de então, os cordões (uma espécie de dissidência e de versão esculhambada dos blocos e das sociedades) no Carnaval de 1919, nasceu na extinta Galeria Cruzeiro, no Centro do Rio, da cabeça de um bando de malucos, o Cordão da Bola Preta, que faria seu primeiro desfile (ou seu primeiro baile, como preferem alguns) no dia 31 de dezembro de 1918. Em 2012, então, com 92 anos e alguns meses de vida, fará, o glorioso cordão, mais um desfile pelas ruas do Centro.

Sobre o Cordão da Bola Preta, nos conta Jota Efegê, em seu Figuras e coisas do Carnaval carioca:

“Nas proximidades do carnaval que, naquela época (1918), começava a ferver desde outubro nos festejos da Penha, o folião K. Veirinha erguendo seu copo de chope resolveu desafiar o chefe de polícia: “Vamos formar um cordão!” E, mostrando sua disposição de luta contra a autoridade, concluiu: “Ele disse que vai fechar todos os cordões, mas o nosso ele não fecha! O nosso é de bola preta!” Toda a turma, já com duas ou três altas pilhas de cartões na mesa, topou a parada e resoluta, pondo em alvoroço o Bar Nacional, da famosa Galeria Cruzeiro, prorrompeu em vivas seguidos.

Nascia, desse modo, em meio de uma reunião boemia, que acontecia normalmente, todas as tardes, o já hoje tradicional Cordão da Bola Preta, conhecido em todo o Brasil e também no estrangeiro. Ficava, igualmente, consagrado como folião, pois que já o era desde rapazola, o Álvaro Gomes de Oliveira, conhecido no Clube dos Democráticos como Trinca Espinha, apelido mais tarde substituído pelo de K. Veirinha.

À guisa de biografia

Antigamente, todos os associados de destaque dos grêmios carnavalescos adquiriam um pseudônimo sempre precedido de aristocrático Lord. Assim, Álvaro de Oliveira que, ainda garoto, de menor idade, conseguiu ser sócio dos Democráticos quando o alvi-negro tinha sede no Largo do Machado, ganhou sua alcunha. Deram-na, mais tarde, já na Rua do Hospício (hoje Buenos Aires), para onde o clube se transferiu, uma bem divertida: Lord Trinca Espinha. Continuou com ele da Rua dos Andradas e também na do Passeio, locais onde os valorosos ‘carapicus’ estiveram instalados.

Só em 1918, depois da terrível epidemia de ‘influenza espanhola’, da qual, conseguindo escapar, ficou, no entanto, bastante magro, esquelético, perdeu sua antonomásia. Um amigo, vendo-o em tal estado exclamou: “Puxa, você parece uma caveira”. À tarde, na costumeira chopada do Bar Nacional, a turma homologou definitivamente o apelido: “Viva o K. Veirinha!” Nunca mais se deixou de chamá-lo por esse diminutivo ou de completar seu verdadeiro nome com ele: “o Álvaro K. Veirinha”.

K. Veirinha enfrenta o chefe Leal

Carnavalesco de quatro costados, integrante de um grupo do qual faziam parte, entre outros, os irmãos Oliveira Roxo (Jair, Jorge, Joel), Chico Brício, Archimedes Guimarães (Fala Baixo), Álvaro de Oliveira era desassobrado. Ao ler nos jornais uma portaria do chefe de polícia, Dr. Aurelino Leal, achou o momento propício para mostrar sua coragem. Rigorosa, ameaçadora, a publicação dizia: “Os grupos e cordões que perturbarem a ordem pública terão suas licenças cassadas, sendo os perturbadores presos e processados, na forma da lei”. Proibia, ainda, mais adiante, de maneira igualmente decisiva, a fundação de grupos similares.

Longe de se amedrontar e disposto a topar uma parada com o “chefão” temido, o grupo das alegres reuniões chopísticas de um dos bares da galeria Cruzeiro seguiu coeso o líder K. Veirinha. Iriam, todos, desobedecer o mandachuva. Alugaram a sede do Clube dos Políticos, na Rua do Passeio, e na noite de 31 de dezembro de 1918, com um “maixético e rebolativo baile” (como era de praxe qualificar as festas dançantes carnavalescas) consumavam a deliberação. Iniciava, assim, o hoje famosíssimo Cordão da Bola Preta e sua brilhante e vitoriosa trajetória.

Tradição da Bola Preta

O sucesso da noitada de nascimento do Cordão da Bola Preta, com o salão apinhado e a fachada do clube feericamente iluminada, abriu-lhe caminho fácil nos meios carnavalescos. Seus iniciadores (K. Veirinha, Chico Brício, Vaselina, Pato Rebolão, Fala Baixo, Porrete e outros) puderam levar à frente o foliônico grêmio sempre com seus bailes excessivamente concorridos. Sem instalação definitiva, realizando seus fandangos na Rua 13 de Maio, no Palace Clube, na Cinelândia, num salão do antigo Liceu de Artes e Ofícios, acabou, por fim, rico e poderoso, com a sede própria que ora possui.

Álvaro de Oliveira viu, desse modo, triunfar sua iniciativa ao mesmo tempo que se firmava uma tradição levando o nome do cordão até ‘as estranjas’ como fator preponderante do fascínio do nosso Carnaval. Os turistas que aqui chegam para conhecer o nosso famoso tríduo de Momo desembarcam na Praça Mauá ou no Galeão perguntando pelo baile do Teatro Municipal e também pelo do ‘Bôle Preete”. Coisa que, inegavelmente, apesar do seu feitio boêmio, desprendido, envaidece o K. Veirinha, fundador e sócio número um, benemérito, na prestigiosa agremiação.

Saudosista, mas não muito

Afastado das homéricas “farras” dos áureos tempos em que o Carnaval carioca conseguia dividir durante o ano inteiro a cidade em três facções: ‘baetas’, ‘gatos’ e ‘carapicus’, Álvaro de Oliveira é agora um homem tranqüilo. O folião K. Veirinha hoje é apensa um assistente da festa de Momo. Às vezes, matando saudades, aparece no cordão e vê seus sócios vibrando, entoando o hino feito pelo maestro Vicente Paiva e Nelson Barbosa para empolgar a moçada: “Quem não chora não mama, segura, meu bem, a chupeta. Lugar quente é na cama ou, então, no Bola Preta”.

Recorda, vendo a animação reinantes bons tempos. Lamenta não encontrar ali a ‘velha turma’, em grande parte desaparecida, ou, como ele, fora da ‘linha de fogo’. Orgulha-se, porém, de ver seu cordão vibrante, nascido de uma rebeldia momentânea, resultado da desobediência ao ‘chefão’, abrilhantando de maneira decisiva a maior festa da Cariocolândia. Caminhando para o meio século de existência o Cordão da Bola Preta, sólido e vitorioso, faz também (reconhece ele feliz e exultante), a consagração de seu apelido: K. Veirinha.”

Eu já lhes contei, incontáveis vezes, o que é representa, pra mim, a saída do Bola Preta (vejam, aqui, vídeo gravado no dia 20 de janeiro de 2009, eu, Gabriel Cavalcante no cavaquinho, Leal no tamborim e Tiago Prata no sete cordas, na Folha Seca, cantando Bola Preta, choro de Jacob do Bandolim com letra póstuma de Aldir Blanc contando toda a história do cordão, que pode ser lida – e ouvida, na voz de Aldir -, aqui). Mas esse ano, nesse ano de 2012, vai ser diferente…

Anseio, com a ansiedade de um menino, pela sexta-feira da véspera. Pela noite que será, eu sei, passada em claro. Pelas primeiras luzes do sábado, pelo primeiro gole, ainda dentro de casa, pelo trajeto até o Centro. E o Bola Preta, subvertendo de cara a lógica e o trajeto de tantos anos, não partirá da Cinelândia, mas da Candelária. Vai ser ali, diante da imponente Candelária, a concentração do Bola Preta que, a se confirmar o crescimento ano a ano que se vê nas ruas, arrastará mais de dois milhões de foliões pelo asfalto quente da Rio Branco em direção à Cinelândia, palco de tantas manifestações da força do povo do Rio de Janeiro.

Anseio pelo Sábado de Carnaval, pelo primeiro grito do Bola Preta, para dar início ao processo pagão e milagroso que a festa momesca impõe aquele que se entrega, de corpo e alma, aos ritos carnavalescos. Como disse, certa vez, o mestre Luiz Antonio Simas, “o carnaval não é uma festa dos alegres, mas sim dos tristes.”. Disse mais, o professor: “O carnaval é um período marcado pelo símbolo da máscara, onde se inaugura a idéia de esquecimento do que efetivamente somos. Desde os primórdios da festa, a função social do carnaval é promover a inversão dos valores do cotidiano. O homem veste-se de mulher, o careta toma porres homéricos e por aí vai. O carnaval é o tempo do esquecimento necessário. (…). O que está presente no carnaval é, antes de tudo, a pulsão de morte. Matamos o que somos o resto do ano, repletos de horários, compromissos, burocracias e por aí vai. O lugar dos alegres é o camarote da cervejaria, a feijoada do Amaral e outras merdas do gênero. O grande folião, tenha certeza disso, é um triste.”. Outro sujeito a quem respeito, Claudio Renato, cravou na mosca: “Carnaval é a festa dos tristes, dos refugiados, dos abandonados, dos enganados, dos humilhados, dos ultrajados, dos vencidos, dos lusitanos, dos nostálgicos, dos moribundos, dos desempregados, dos deserdados, dos órfãos. Carnaval é a festa máxima do povo brasileiro.”. E, pra encerrar as citações que dão mais peso ao que lhes escrevo, Fernando Szegeri (Divagações cinerárias, em 22 de fevereiro de 2007, aqui):

“A verdade, meus amigos, é que o folião é, acima de tudo, um altivo. Daquela altivez de que nos fala Pièrre Verger ao observar que Pai Balbino, um humilde vendedor de quiabos na feira de Água dos Meninos, portava-se com a dignidade de um rei, por ser filho de Xangô. Daquela soberba que nos percorre o corpo e a alma depois de uma noitada boa de amor, ao encontrar de manhã no elevador a vizinha carola do 1201.

O folião, na quinta, sexta-feira que precedem os dias de Carnaval, encara as pessoas na rua, no ânibus, com uma acachapante superioridade. Tem pena de seu patrão, despreza o seu senhorio. Ele sabe, no seu íntimo, que a cidade lhe pertence, que as coisas na verdade não são como parecem na maioria dos dias; que a superioridade que o capataz lhe cospe reitaradamente às faces é uma ilusão que lhe custará caro. São chegados os dias em que tudo assume a sua feição verdadeira, em que as máscaras cinzentas que foram impostas à realidade são impiedosamente arrancadas. Essa efêmera mas irrefutável prova sobre o verdadeiro estatuto das coisas lhe propicia um inexprimível sentimento duplo de superioridade: por ter consciência desta realidade e por saber-se o senhor livre e soberano de seu próprio destino.

É por isso que ao folião repugnam as insuportáveis pessoas que simplesmente ignoram o Carnaval. Não as que o odeiam. Ele compreende que para os que se arvoram em donos das coisas e dos destinos nos outros trezentos e sessenta e um dias, a visão crua da realidade absolutamente diversa lhes seja insuportável. Aos que francamente detestam o Carnaval o folião responde com um sorriso de aviso: não tentem interferir no desvelamento essencial desses dias; contenham-se nos limites da sua mentira. Mas aos que ignoram o Carnaval, que estampam em suas faces lânguidas e mortas a sua estupidez indiferente, o folião devota, muito mais que piedade, um ódio secreto, um desprezo absoluto pela incapacidade de exercerem um atributo tão fundamental e tão simples de sua humanidade.”.

É isso, meus poucos mas fiéis leitores.

Faltam 21 dias. E eu serei, nesses dias que antecedem o Sábado de Carnaval, um ansioso à espera da apoteose das apoteoses.

Até.

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PRA DANI

Dani: talvez eu esteja cometendo aquilo que venha a ser considerado o mais insano gesto (meu, particular e íntimo, embora exposto por aí…) desde que você desapareceu (evito demais falar que você morreu, porque a palavra morte é a antítese de tudo o que você representou). Talvez meus poucos mas fiéis leitores venham a me julgar definitivamente ensandecido, vá lá. Mas é que eu fui construindo os meus dias, depois de 09 de julho, de uma forma que – é como penso – no fundo requer o que eu estou fazendo agora. Afinal, você bem sabe – quantas vezes cantei isso pra você, não foi? -, “cada um tem a própria receita pra combater a desgraça”.

Pois estive aqui, no Buteco, dias e dias a falar de nós, a falar de você, a falar de nossa história, de nossos momentos, e eu acho que é chegada a hora de fazer valer, pra valer, a hora do sossego. Sabe, garota, eu que fui, durante tantos anos, tantos anos!, um homem de absoluta fé (e minha fé é mais misturada que o sangue do brasileiro…), vi-me de uma hora pra outra, de lá pra cá, mais cético que o mais cético dos homens. Só que o ceticismo não combina comigo, assim como morte não combina com você. Eu sei que você está n´algum canto, de alguma forma, sob alguma forma, e sei que no frigir dos ovos, na crueza da vida, na dureza da verdade e no desafio que me foi posto no colo, estou sozinho – mas estou aqui.

Fui chamado a atenção, sabe? E eu sou, mais que o anti-cético, um poltrão. Não sou besta (embora tenha resistido o quanto pude) de desobedecer conselhos do invisível. É preciso que eu silencie – e você, mais do que ninguém, sabe que sou (além do anti-cético e do poltrão) um sujeito que tem a língua maior do que a boca. Mas eu ouvi: “O que está dentro da sua boca é seu escravo, saiu da sua boca é seu senhor.”. E eu não posso, e eu não quero, ser ainda mais escravizado pela palavra que, vá saber, de certa forma acaba também te escravizando.

Serve, o que estou escrevendo, é claro, também para todos os meus poucos mas fiéis leitores. Amigos nossos, amigos meus, amigos seus, gente que nunca nos viu, gente que, quase sempre, quando foi de você que falei, foi generosa comigo, foi capaz de me emocionar, foi capaz de me trazer, de certa forma, alguma espécie de alento pra enfrentar essa barra que é pesadíssima (e que acabou me levando, veja você, Tomtom!, pro divã, o mesmo para o qual tantas vezes você desejou que eu fosse…). A esses todos, também, peço licença (veja que ironia é a construção que faço!) para esse tempo de delicadeza, de silêncios, de sossego.    

É preciso seguir – não é?

Pois seguirei, tendo sempre comigo a sua força – essa força magnânima, inesgotável, esse brilho quase-insuportável que é seu sorriso. Esse, Tomtom, esse permanecerá.

E por falar em sorriso, vai ser na Quarta-Feira de Cinzas a feijoada que sempre fizemos e que nesse 2012, que marca meu primeiro Carnaval sem você, será dedicada a você. Assim como sei que você viu (ou sentiu, ou vibrou-junto…) a cerimônia de entrega do prêmio que leva seu nome (que orgulho, garota…), sei que você já viu o desenho belíssimo que fez nosso Mello Menezes pra camisa que usaremos no dia 22 de fevereiro. Sei que você sabe que foi o Neco, aquele maluco, que mandou fazer as camisetas e quero que você saiba que vai ser lá, na casa daqueles três que tanto te amam, a última vez que vou – como dizer? – tornar público, eis que inevitável (a camisa já é uma declaração de amor!), tudo isso que vai em mim.

Estamos a poucas semanas do Carnaval, a festa da inversão. Pois bem. Serei o folião de sempre. Vou encarnar, me parece impossível que não seja assim, como nunca, a dupla-face da alegria e da dor, mas a dor eu vou imolar durante os quatro dias até que meus pés sangrem e minha alma se revista da alegria que vivi e que vivo por ter vivido tantos anos a seu lado. E ficamos combinados assim… Sossego. Silêncio. E delicadeza.

Sorria daí, Tomtom. Conserve aceso esse sorriso… ele é a luz que eu preciso pra meu caminho iluminar.

Meu amor pra sempre.

Até.   

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O PEPPERONI É UM ATLETA

Hoje cedo, vendo meu fiel escudeiro, o vira-lata que atende pelo nome de Pepperoni – que me foi dado de presente por Exu, e quem diz não sou eu, é Luiz Antonio Simas, conhecedor profundo dos mistérios do invisível, vejam aqui – lembrei-me da Pimentinha, a doce cocker-spaniel que eu e Dani tivemos e que morreu – vejam vocês… – de câncer em março de 2006 (leiam aqui).

Lembrei-me, mais, do quanto de alegria nos trouxe (e ainda me traz) o vira-lata que encontramos em Copacabana em maio de 2006, como lhes contei aqui.

E encontrei, fazendo uma busca em meus gigantescos arquivos de registros – não há sentido viver sem fazê-los e guardá-los – um filme hilariante com o Pepperoni, já exibido em março de 2007, aqui.

Como em março de 2007 muitos de vocês que me lêem hoje não me liam, e como não são todos que têm paciência para escarafunchar os textos antigos do Buteco – e já são mais de 2.000 textos! – disponibilizo, de novo, hoje, um filme sensacional que fiz num determinado dia quando saí de casa para jantar, deixando a câmera ligada na cozinha para entender como se dava o fenômeno da transposição do portão pelo qual paguei caro (dinheiro jogado no lixo!).

Com vocês, Pepperoni, meu vira-lata, um verdadeiro atleta!

Até.

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HOJE É DIA DE MEU PAI

Eis que faz anos, hoje, meu velho pai. Na foto que ilustra o texto de hoje, que vai em sua intenção, é claro, estamos eu eu ele, em 21 de março de 1970, mais precisamente no dia em que cortei, pela primeira vez, o meu cabelo (leiam aqui para saber como descobri o dia exato desta foto). Estamos na praça Afonso Pena, na Tijuca evidentemente, e vou lhes contar a razão pela qual esta foto me é especialmente cara e porque ela causa, em mim, um daqueles arremessos em direção ao passado de forma intensa e abrupta.

Estamos em março de 1970, há aproximadamente 42 anos.

Ali, os mesmos bancos verdes até hoje.

Ali, ainda o Salão América – onde cortei o cabelo pela primeira vez e onde faço, até hoje, a barba. Cortei o cabelo com o Raul, ele também ainda lá, e faço a barba com o seu Ernesto, ele também testemunha de meu primeiro corte.

Ali, ainda na esquina da Martins Pena com Campos Sales, o Bar América.

Ali, naquela praça, ainda meu avô Oizer e seus amigos judeus, falando em ídiche quando eu passava indo ou vindo da escola, e perto dali, na rua Afonso Pena, o asilo no qual morreu minha avó Elisa dentro de um quarto cheirando a laranja-lima.

Ali, a poucos metros dali, a sede do America, onde tantas vezes fui, moleque, pra piscina ou pra assistir partidas de autobol, sempre com meu velho pai e com meu irmão mais velho (mais novo que eu), o Fefê – com direito a lanchar na Geneal, na Barão de Itapagipe.

Ali, naquela praça, muitas das minhas lembranças da infância, o prédio da minha tia Linda e do tio Beneval ainda de pé, na rua Afonso Pena, e Vitória, a madrinha que nunca mais vi, e Mauro, o padrinho que nunca mais vi, o prédio onde moravam Nélson e Rose, Letícia e Miguel, na rua Martins Pena, apartamento de sala muito ampla com tábua corrida (e o Dodge Dart amarelo…), ali, naquela praça, a poucos metros de onde nasceu mamãe, na casa amarela ainda de pé, rua Gonçalves Crespo, também a poucos metros da vila onde viveram meus avós e minha bisavó, e minha tia Idinha, na rua Professor Gabizo, na Heitor Beltrão e na São Francisco Xavier, o prédio ainda de pé onde moravam Darcy e Vera com a vovó Gisélia, também na Martins Pena, o Salete na rua com o mesmo nome da praça, e que freqüento desde menino pelas mãos de meu pai, e são tantos os fantasmas, vivos e mortos, que rondam minh´alma quando passo pela praça que eu sou capaz de dizer, sem vergonha de imitar o pernambucano mais carioca da paróquia, que a Afonso Pena está enterrada em mim como um sapo de macumba.

Enterrada em mim como um sapo de macumba e eu sinto os cheiros dos apartamentos, o cheiro de mofo dos apartamentos, e o perfume das pessoas, e ouço as vozes das pessoas, e ouço o som do pneu do meu Velotrol rasgando no chão da praça, meu avô falando numa língua estranha, meu pai me levando pra cortar cabelo pela primeira vez, e é assim, tonto, bêbado de saudade de um tempo que não volta, que eu vou, todas as quintas-feiras, sentar-me na Ferrante do seu Ernesto pra, diante do espelho, me (re)conhecer.

Parabéns, meu pai. Saúde! Saravá! Santè!

Encerro exibindo um vídeo no qual aparecemos, eu e papai, já bem mais recente (04 de setembro de 2009), em pequena entrevista para matéria do Globo Esporte sobre autobol. Notem que meu pai diz, à certa altura, que nos levou “duas ou três vezes” para ver a farra. Minha memória o desmente – e parafraseando, de novo, o grande Nelson Rodrigues, se os fatos contrariam minha memória e minhas histórias, pior pros fatos.

Até.

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MEU PAI FAZ ANOS AMANHÃ

Faz anos, amanhã, meu velho pai. E uma boa maneira de (começar a) conhecer meu velho pai é lendo Papai também é fóbico, que escrevi aqui, em 19 de abril de 2011. No texto, conto sobre uma das facetas do meu pai, um homem multifacetado – como quase todos nós.

Escolhi para ilustrar o texto de hoje, que vai como homenagem ao aniversariante de amanhã, uma foto que virou, entre os familiares, uma espécie de patuá – e explico.

Tal foto foi tirada na Bahia, durante uma viagem que fizeram, ele e minha mãe, de férias. E meu velho pai tem, na mão esquerda, um galho, um graveto (sei lá que diabo!), usado para escrever nas areias da Bahia o apelido de minha mãe: Pixuxa. E faço, desde já, a ressalva: somente meu pai, mais ninguém, chama mamãe de Pixuxa, assim como ela, e somente ela, chama papai de Meudi. (lê-se Mêudi, não Meudí, e vão tomando nota do nível de precisão de meu relato). Pois esta foto teve, para a família, o impacto que teve a declaração de James Stewart para Katharine Hepburn, em Núpcias de Escândalo, em 1940, a declaração de Dalila a Sansão, a declaração do príncipe para Rapunzel.

Tal foto – diga-se – foi digitalizada a partir de um slide. E sessões de slide, lá em casa, sempre foram impactantes. Vou lhes contar com eram as tais sessões.

Papai montava o projetor (que sempre – eu disse sempre! – enguiçava no meio, requerendo uns tapas dados por meu pai) e chamava-se toda a família. Mamãe montava uma tela na parede e começava a sessão (sempre as mesmas caixas de slide, sempre os mesmos comentários!). Era aparecer essa foto e começava:

– Oh, Mariazinha, que lindo… – e vovó enxugava uma lágrima furtiva que subitamente lhe saltava dos olhos.

– Esse é o Isaac escrevendo Pixuxa numa praia em Salvador… – dizia mamãe, orgulhosa, o que todos já sabíamos.

Meu avô, meio avesso a demonstrações de afeto, tossia e dizia:

– Bacana.

Tia Idinha, irmã de minha bisavó, gemia entre os dentes:

– Benza, Deus!

Enfim, a foto era um ícone.

E por falar em ícone, deu-me vontade de lhes contar sobre um dos ícones de meu pai: a tia Noêmia (acabo de lembrar que, para conhecer melhor meu pai, é imprescindível ler isso aqui).

Tia Noêmia, casada com meu tio Chico, era nora de minha bisavó Mathilde, cunhada de minha avó Mathilde, chamada de tia por minha mãe, por nós – eu e meus irmãos – e também por meu pai. E o meu pai sempre teve verdadeira adoração, idolatria, quase um fanatismo cego pela biografia da tia Noêmia. E a tia Noêmia passou a ser, mesmo para quem não a conhecia (tia Noêmia ainda está vivíssima!), uma figura – por conta das reações do meu pai. E notem a que ponto a coisa chega.

Lembro-me de um dia, durante um churrasco de aniversário de um amigo (meus pais presentes), ter apresentado papai a uma amiga. Eu disse o óbvio:

– Esse é meu pai. Pai, essa é a Noêmia.

E bastava eu dizer o nome – Noêmia – para começar uma espécie de transe. Papai eriçou os pelos, pôs ereta a espinha, respirou fundo e saiu dizendo:

– Eu gosto da Noêmia. Gosto, gosto. Gosto da tia Noêmia!

Minha amiga se assustou (faço a confissão tardia).

Tia Noêmia, que hoje mora no Méier, morava numa casa no Engenho Novo. E muitas vezes mamãe dizia, aos sábados:

– Meninos! Aprontem-se. Vamos pra casa da tia Noêmia.

E meu pai guinchava na sala, uivava como um lobo faminto diante da presa, dava de repetir:

– Uma lutadora! Uma batalhadora, a tia Noêmia! Eu gosto da tia Noêmia!

Encarava um de nós e dizia, olhos nos olhos:

– Você entende? Eu gosto. Gosto. Gosto da tia Noêmia!

Lembro-me de que no jardim da tal casa do Engenho Novo havia uma das coisas mais feias e impactantes que eu jamais vi noutro lugar: havia uma réplica da estátua do Cristo Redentor, em gesso, sobre a grama, e em volta do Cristo, de mãos dadas, bonecos dos Sete Anões e da Branca de Neve (creiam que isso, essa visão, para uma criança, tem conseqüências gravíssimas que ainda não descobri).

Um dia eu disse, chegando lá:

– Que coisa estranha esse Cristo com esses anões…

Fefê, meu irmão mais velho (mais novo que eu, entendam), emendou:

– Bizarro.

Pois meu pai nos catou pelas mãos e foi categórico:

– Cristo, anões, Branca de Neve… é tudo da tia Noêmia, entenderam? E eu gosto da tia Noêmia. Não gosto?

Com medo, assentimos.

– Pois é lindo!

E ele deu-se por satisfeito.

E vejam – é como vou encerrar a crônica de hoje – a que ponto chega a idolatria de meu pai (antes, leiam aqui sobre o velório de minha avó Mathilde).

Vovó jazia, tadinha, no caixão de madeira. Mamãe, sua filha única, ao lado da mãe. Eu, Fernando, Cristiano, seus netos, também. E foi, como lhes conto no texto indicado, “um velório tijucano e rodrigueano”. Um detalhe, entretanto, escapou-me do tal relato. Vamos a ele.

A certo momento chegou, para a capelinha, a tia Noêmia. Meu pai, que não é muito chegado à visão de qualquer defunto, estava sentado num banquinho próximo ao caixão. Ao dar com tia Noêmia chegando, a cena.

Atirou-se, trôpego, ofegante, afoito, aflito e arquejante nos braços da tia Noêmia. E, novamente como um lobo, deu de uivar:

– A dona Mathilde sabia, tia Noêmia, o quanto eu gosto da senhora! Eu gosto! Gosto, gosto, gosto, tia Noêmia!

E não largou, meu pai, das mãos da tia Noêmia.

Cristiano, o mais novo, em dado momento incomodou-se:

– Pai! Fica com a minha mãe!

Eu, caminhando um pouco mais à frente pelas aléias do São Francisco Xavier, ouvi meu pai dizer:

– Cristiano, você e seus irmãos estão com a sua mãe! Vou ficar com a tia Noêmia, coitada, que está sozinha.

E repetiu, de si para si, até a última pá de cal:

– Eu gosto da tia Noêmia. Gosto!

Até.

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30 ANOS SEM ELIS REGINA

Amanhã, 19 de janeiro de 2012, viveremos, no Brasil, uma grande saudade. Amanhã dir-se-á nos bares, nos salões, nas casas, nas cidades, nas esquinas:

– Estamos há trinta anos sem Elis Regina…

Elis Regina que, em seu último show, Trem Azul, disse, com a voz embargada:

– Agora eu sou uma estrela.

Não é fácil, meus poucos mas fiéis leitores, assumir-se assim. Mas Elis podia. Elis foi – e assim se mantém até hoje – a maior cantora que o Brasil já viu cantar. Elis foi, nos discos e nos palcos, além da voz humana. Mas não é sobre Elis, não é sobre sua biografia, tão exposta por aí, que quero lhes falar. Quero lhes falar, pra manter meu modus operandi, de minhas lembranças e de minha alma, previamente à espreita do dia de amanhã, que há de ser, por conta dos trinta anos sem ela, um bocado comovido.

Eu estava sentado no chão da sala do apartamento 203 da rua São Francisco Xavier 84, na Tijuca. Eu estava de férias. Estamos em 19 de janeiro de 1982. Tocou o telefone, eu atendi. Era minha tia Noêmia, queria falar com minha mãe. Chamei mamãe. E vi minha mãe incrédula repetir diversas vezes – “o quê?”, “como?”, “quando?” – até que desligou e disse, em direção a mim:

– Elis Regina morreu.

Notem vocês: eu era um menino, tinha apenas 12 anos de idade. E aquela notícia me pregou uma peça. E me pregou uma peça porque eu tinha uma promessa, feita por mamãe, semanas antes: ela iria me levar pra assistir, pela primeira vez, no Teatro João Caetano, ao show Trem Azul, em excursão pelo Brasil. Eu, portanto, nunca tive o privilégio de assistir Elis Regina ao vivo. E sobre isso, uma palavrinha… para que tenham noção, os mais jovens, de quem foi Elis Regina. Hoje, no Brasil, quando Chico Buarque, por exemplo, faz temporada de um mês no Rio de Janeiro, diz-se: grande temporada. Pois Elis fez temporada de um ano e meio (eu disse um ano e meio!) em São Paulo, no Rio de Janeiro, casa lotada de quinta a domingo. Porque era, sobretudo, uma cantora a serviço de seu povo, uma cantora popular. Hoje, o Brasil inteiro louva João Bosco, Aldir Blanc, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Belchior, Guinga, tantos, tantos, tantos!… e é preciso que se diga: foi Elis Regina a primeira a abrir, pra cada um desses monstros sagrados, a primeira porta. Voltemos a 1982.

A casa de meus pais foi, naquele 19 de janeiro, palco de uma procissão de homens e mulheres em estado de choque. Lembro-me, mais, que logo depois de desligar o telefone, mamãe foi à vitrola e pôs Essa Mulher, LP de Elis Regina, de 1979, e foi Elis Regina que tocou o dia inteiro em nossa casa. A notícia, a crueza da notícia, a morte por overdose, a mistura trágica de cocaína e álcool, pegou a todos de surpresa… e o desaparecimento precoce da maior cantora do Brasil, enterrada com a camisa que foi impedida, pelo regime ditatorial, de usar no show Saudades do Brasil, deixou para sempre um vazio impossível de ser preenchido (e como compreendo, hoje mais que nunca, o que é esse vazio…).

E quero, por fim, dividir com vocês o que descobri hoje e que considero um tesouro. Mais de 60 minutos, gravados ao vivo por uma rádio gaúcha, e posteriormente gravados por uma boa alma, do show Trem Azul, em Porto Alegre, no dia 19 de setembro de 1981 – exatos quatro meses antes de sua morte.

É Elis Regina em estado bruto. Técnica perfeito, abuso – no limite – de sua força técnica, repertório impecável e um registro emocionante – e que pode ter sido o último – de Elis Regina ao vivo, hoje uma forma nebulosa feita de luz e sombra: como uma estrela.

Até.

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