Antes de começar a confissão de hoje, ligeiro arremesso em direção ao passado, quero dividir com vocês auspiciosa curiosidade: um dos textos mais lidos do Buteco do Edu é “Papai também é fóbico”, que pode ser lido aqui. E digo aupiciosa curiosidade porque tal fato, ver papai lido e relido Brasil afora (mundo afora, permitam-me a ousadia), me dá espantoso orgulho. Vou seguir em frente em busca de ser mais claro, até porque hoje quero lhes falar de aeroportos e, claro, de papai.
Desde pequeno (não saberia lhes precisar a idade) mantenho estranhíssima relação com aeroportos – e graças a meu velho pai. Explico: papai tinha uma fixação, bem me lembro. Vez por outra (também não saberia lhes precisar com que freqüência) papai armava um programa que hoje me soa tijucano da partida à chegada: íamos jantar no Galeão, no restaurante Demoseille, com nossas melhoras roupas. Recebíamos a ordem:
– Vamos jantar no Galeão!
Éramos três (acho que na verdade isso começou antes mesmo do nascimento do mais novo, em 1975) e fazíamos uma tremenda algazarra diante da notícia. Era, notem que não havia a Linha Vermelha, uma viagem. Papai subia a avenida Brasil com seu Fusca (depois com sua Brasília, depois com seu Passat…), atravessava a ponte belíssima com lampiões de luz amarelada que nos levava à Ilha do Governador e chegávamos excitadíssimos no Galeão, sempre com direito a uma passada no terraço que nos permitia ver as aeronaves decolando, aterrissando, taxiando ou mesmo paradas – era uma festa. Até que íamos para o Demoseille, do qual tenho (mais uma confissão) tristes lembranças. Na minha memória éramos quase sempre a única mesa ocupada no imenso salão. E sempre, rigorosamente sempre, enquanto bebia sua dose de uísque (não havia Lei Seca e papai bebia à larga), papai fazia a mesma cara de surpresa, tomava da caneta que carregava em sua capanga de couro, preta, escrevia algo num guardanapo de papel e o estendia ora pra mim, ora pro irmão do meio:
– Entreguem ao pianista!
Era meu pai, pedindo “Ebb tide”, e sempre “Ebb tide”, todas as vezes “Ebb tide”.
Há quem estranhe, ainda, minhas pequenas obsessões.
Mas o que eu queria lhes contar era outra coisa.
Recentemente fiz uma viagem com a Morena e fomos, evidentemente, ao aeroporto (para ir para nosso destino e para voltar, claro). Chegamos com – o quê?! – duas, duas horas e meia antes do horário do embarque. E lembrei-me, a caminho do Galeão (amo o Maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim mas o Galeão sempre será o Galeão) de um (mais um) hilariante episódio envolvendo papai.
Papai e mamãe foram a Paris, dia desses. Eu, bom filho que sou, ofereci-lhes carona para o aeroporto. Papai foi veemente:
– Não precisa, Eduardo! Já tratei um taxista! Tudo acertado, tudo nos conformes!
O vôo, marcado para às 18h.
Às 10h da manhã do dia do embarque, bom filho que sou, bati-lhes o telefone para desejar boa viagem.
Chamou, chamou, ninguém atendeu.
Disquei, então, para o celular.
Atendeu mamãe.
– Opa, minha mãe! Tudo bem?
A resposta foi seca:
– Arrã.
– Liguei pra desejar boa viagem, vocês não estão em casa?
Ainda mais seca:
– Não.
Fiz silêncio, bom filho que sou, ligeiramente constrangido com suas reações. Até que ela prosseguiu em tom irônico:
– Seu pai achou melhor chegar oito horas antes do embarque pra não haver qualquer problema. Estamos aqui no Demoseille, não sei se você lembra…
Ao fundo, “Ebb tide”.
Esse, meu pai.
Essa, minha confissão de hoje.
Até.