Eis a íntegra de mais uma crônica de minha autoria, publicada no dia de hoje, no JORNAL DO BRASIL, para a série CENAS TIJUCANAS, com a ilustração colorida, traço do craque Paulo Stocker, que saiu publicada em preto-e-branco na edição do jornal.

O tijucano é, antes de tudo, tijucano – e explico. O tijucano vê, na Tijuca, beleza e poesia em cada esquina, em cada um de seus morros e favelas, em cada praça, em cada buraco no asfalto, a cada enchente, e tem um tremendo (e quase bobo) orgulho do papo (batido) que reza que somente ele, morador do bairro, é identificado por um nome umbilicalmente ligado à terra em que nasceu: tijucano! Falei em enchente e quero lhes contar um troço, rápido: semana retrasada, durante um temporal diluviano de proporções bíblicas, enquanto moradores de todos os cantos da cidade se desesperavam diante dos transtornos, estrilou meu celular. Era Luiz Antonio Simas, ilustre morador do bairro, professor maiúsculo de História do Brasil, comemorando com a voz embargada:
– O rio Maracanã transbordou, Edu, o Trapicheiros também! Tá mais bonito que Veneza!
Mantive-me em silêncio (como faço quase sempre diante do bardo para sorver seus ensinamentos) e ele prosseguiu:
– Tu já pensou se a prefeitura estimulasse a proliferação de gondoleiros? Que beleza! Que beleza!
Vão tomando nota do que é capaz o amor do tijucano por sua terra!
Vai daí que aproxima-se o réveillon e a cidade inteira começa a planejar a festa em Copacabana. Diga-se, a título de ilustração, que a festa era muito mais bacana quando comandada pelo povo de santo que infestava a areia de velas, oferendas, barcos pra Iemanjá, atabaques batuqueiros, esses troços. Depois que o poder público meteu a pata na areia a festa perdeu muito, mas ainda assim Copacabana é alvo do desejo de gente de todos os cantos da cidade, do estado, eu diria sem medo do erro que até do país inteiro. Gente que disputa no tapa o ingresso do metrô, que vaga pelas ruas de Copacabana à espera de um táxi e de um ônibus, que dorme nos bancos do calçadão, tudo por conta do réveillon à beira-mar. Menos – faço a ressalva que me serve de mote – para o tijucano.
E não está sendo diferente neste 2009 que se aproxima do fim.
No Bar do Marreco, comovente espelunca na esquina de Haddock Lobo com Caruso (a rua com o maior número de residências no estilo art déco por metro quadrado do Brasil, fato ignorado por quem só tem olhos, tampados por antolhos, para a zona sul da cidade), os preparativos para a virada do ano andam a mil. E desde o começo do segundo semestre.
Seu Brasil, uma espécie de síndico da área, líder comunitário aclamado por unanimidade pela assistência que freqüenta o nobilitativo botequim, organizador de churrascos capazes de fazer tremer o mais tradicional churrasqueiro gaúcho, vendedor de rifa, jogador empedernido, fumante irresignado com a perseguição que sofrem os fumantes – ou seja, um tremendo boa-praça – vem prometendo uma festa para entrar para a história.
A adesão – penso ser desnecessário lhes dizer – é assombrosa. Famílias inteiras, lideradas pelo seu Brasil, é evidente, fazem planos para a festança que – como em anos anteriores – promete ser arrasadora, capaz de fazer a Madonna repensar o local de seu show em dezembro de 2010, prometido pelo alcaide nas areias de Copacabana.
Uma mãe de santo que tem um terreiro na rua do Matoso – exagerando, quero crer – tem dito pra quem quiser ouvir, durante a distribuição de seus santinhos que garantem a volta da pessoa amada em três dias, que até Iemanjá vai dar seu jeito de estar no furdunço, desviada do mar por canais que só ela sabe, pintando na área depois de emergir das águas do Trapicheiros, na altura da Martins Pena.
Seu Brasil, que já desempenha o papel de Papai Noel na festa de Natal do Bar do Marreco há anos, já comprou os fogos (quinze minutos de show pirotécnico) e garante que conseguirá descontos consideráveis para quem quiser passar a primeira noite do ano no fabuloso Hotel Bariloche, com preços mais em conta que os cobrados pelo Copacabana Palace. Já foram providenciados os uniformes do Danilo e do Geraldo, que serão os garçons responsáveis por servir a ceia preparada por cozinheiras de mão cheia da região. Os produtos, de fina procedência, já foram devidamente encomendados ao seu José, da centenária Quitanda Abronhense, a poucos metros dali.
E vem até gente do exterior, garantiu-me o bom seu Brasil.
– É mesmo, seu Brasil?
– Ô! – disse-me ele.
E contou uma história hilária, confirmada por toda a patuléia que dia desses disputava, cotovelo a cotovelo, o embaçado balcão do bar.
Há coisa de umas semanas pintou na área uma balofa, louríssima, que sentou-se numa das banquetas diante dos torresmos espremidos entre as moelas do balcão. Nunca vista no pedaço. Pediu uma Brahma. Serviu-se no copo americano, deu um senhor gole e, depois de formado o bigode pela espessa espuma, suspirou, soltando a exclamação num carregado sotaque germânico:
– Oh! Que saudade da Munique!
Seu Brasil, que roía uma sardinha frita na hora, deu um pesadíssimo tapa no balcão que fez estremecer a esquina:
– Eu também, garota! Eu também! – e encheu os olhos d´água.
A gorducha, que parecia emocionada, disse:
– O senhor conhecer Munique?
– Ô… – respondeu seu Brasil, revirando os olhos à Dorival Caymmi.
– Jurrrrra?
– Quem não conhece a Munique Evans!? Ô!
A loura, que não entendeu nada, continuou:
– Meu família ser toda de lá… Vem prrrra Brrrrrasil prrrrro festa do réveillon, prrrrra Copacabana…
Foi quando seu Brasil pescou a gafe.
Papo pra lá, papo pra cá, o churrasco já sendo servido, a balofa completamente integrada ligou pros pais dali mesmo, do celular. Gastou o alemão e desligou, depois de uns dez minutos, dirigindo-se ao seu Brasil, que fazia efusiva propaganda da virada de ano naquela sacrossanta esquina:
– Meus pais vão passar o réveillon aqui no Tijuca. Vou fazer o reserva no Barrrrriloche agorrrrra mesmo!
– Ô, menina, que boa notícia! – seu Brasil, já aos prantos.
O velho Seu Brasil mandou a assistência fazer silêncio e pediu:
– Vamos homenagear a alemã aqui, pô! Ô, ô, Marreco! Manda preparar um salsichão com chucrute pra ela! Já!
Puxou inexplicavelmente o coro de Hava Naguila (que cantou sozinho), suspendeu, com a ajuda de mais cinco ou seis, a alemã na banqueta como se faz nas festas de casamento judaico – o judeu, dono da loja de móveis em frente ao bar quase teve um enfarte de tão comovido – e a noite encerrou-se em festa aos gritos de shalom!
Tijuca, em estado bruto!
Até.