Eu sou um sujeito – é um de meus jargões preferidos – preciso do início ao fim. Além disso, sou advogado. E, por vício de profissão, faço questão de provar, sempre que possível (a prova negativa, a título de ilustração, é impossível), tudo aquilo que digo. Dito isso, vamos ao que quero lhes dizer hoje.
Estávamos a poucas semanas da abertura oficial desse pernicioso festival que atende pelo nome de Comida di Buteco. Pelo twitter, eu disse uma ou outra coisa sobre o festival e o perfil do festival (@_comidadibuteco) começou a me desmentir (sempre se dirigindo a outros usuários, jamais a mim, através do perfil @butecodoedu). Foi um tal de “onde você leu tal informação?”, “não procede esta informação”, e outras evasivas do mesmo gênero. Pois bem, enquanto não consegui acesso ao contrato, ao regulamento e a seus 4 anexos, não sosseguei. Breve pausa: fico pensando no quanto é importante correr atrás de provas que dêem sustento ao que dizemos, fico pensando no modus operandide nossa imprensa meia-boca, fico feliz quando posso dizer, calcado em provas irrefutáveis, que acho isso e aquilo de determinada coisa. Voltemos.O festival, que diz por aí que prima pela simplicidade, que apenas zela pela cultura dos botequins, que preserva a cultura dos locais nos quais se realiza esse horror, obriga seus “convidados” – os bares participantes! – a um sem fim de regras que, só por serem regras, são a própria negação da cultura desse troço tão arraigado no dia-a-dia do brasileiro. Ainda mais sendo as regras que são. Vamos a elas. E prestem bastante atenção. Vocês podem clicar nas imagens para que possam ler, com mais clareza, as cláusulas do troço.
Vale dizer que o contrato aqui exposto diz respeito ao Comida di Buteco do Rio de Janeiro. Embora eu suponha que no resto do Brasil seja o mesmo contrato (são mais 14 cidades conspurcadas por eles), não me atrevo a afirmar isso.
Os bares participantes – vejam quanta formalidade! – devem entregar até 30 de novembro (ou seja, 7 meses antes) xerox da identidade e do CPF de um dos sócios, contrato social, cartão do CNPJ e alvará de funcionamento emitido pelo Poder Público. Devem, ainda, entregar devidamente assinados o contrato e seus anexos I, II, III e IV.
Devem se comprometer, ainda, a comparecer à sessão de fotos que será marcada pelos organizadores a fim de que sejam fotografados os pratos concorrentes e os sócios dos bares. Como a comissão organizadora é generosa, são oferecidas duas datas. E o que acontece se o dono do bar, por acaso, não comparece em uma das duas datas?! Ora, ela pagará a diária do fotógrafo (que deverá ser o mesmo indicado pela comissão organizadora – não há menção ao valor desta diária…) para que o mesmo se desloque até o bar para a sessão de fotos.
Dizem, os organizadores, que não serão aceitas incrições de “refeições”, apenas de petiscos.
E mais: os “caros parceiros” (sim, eles chamam os participantes sujeitos à tirania do festival de “parceiros”) são obrigados a comparecer à “reunião de abertura” e convidados para o que eles chamam de “desafio Doritos” (Doritos é um dos patrocinadores do negócio). Os participantes que fizerem “o petisco de Doritos” concorrem ao prêmio de R$ 5.000,00 “em verba para investimento no local.”.
Aí acima temos a explicação do “desafio Doritos” e do desafio Hellmann´s. Vejam que graça: “A Maionese Hellmann´s também fará uma premiação em dinheiro. Porém estarão participando os botecos que utilizarem o produto na própria receita do petisco concorrente.”. O Doritos oferecerá R$ 5.000,00. A Hellmann´s, “uma premiação em dinheiro”. De quanto? O contrato não fala.
Alguém aí sabe de algum buteco de verdade que usa Doritos ou maionese em suas receitas? Pois é. Viva a Jabalândia.
O próximo item é mais impactante, quando se trata das “obrigações de cada boteco participante”. Vamos destrinchá-las.
Chama muito minha atenção o item “a”, vejamos. Cada participante é obrigado a dizer, “de forma clara e detalhada”, suas receitas, seus ingredientes e o modo de preparar o prato. Pra que, hein?! Um dos participantes disse-me, com todas as letras, que o Comida di Buteco visa, em futuro próximo, comercializar os chamados “petiscos” concorrentes. Não tenho prova disso. Os organizadores negam. Mas pra quê – me pergunto – dar a receita detalhadamente, o passo-a-passo? E o segredo? E aquela dica, aquele fundamental passo da receita… por que querem saber, os organizadores, isso tudo? Não soa estranho a vocês?
O item “e” é Jabalândia total! Os bares participantes devem permitir a “distribuição e afixação de peças gráficas de divulgação do Comida di Buteco distribuídas e autorizadas pelo CDB e permitir ações de merchandising dos seus patrocinadores, especialmente distribuição de produtos, brindes, afixação de placas e peças gráficas, banners e/ou outros materiais de divulgação, durante toda a duração do concurso, nas dependências internas e nos arredores dos botecos, em caráter de exclusividade.”. Bacana, não?
Fico me perguntando: o que será considerado “arredores dos botecos”? A rua? O espaço público? Quem já foi a um dos bares participantes sabe: eles transformam o bar numa espécia de arraial da Jabalândia: bandeirolas de festa junina, banners imensos, cartazes, toalhas de papel padronizadas, e tome jabá, tome jabá, tome jabá!
Estão sentindo o drama? Pois ainda não viram nada.
Vejam o item “g” das obrigações… O Comida di Buteco proíbe – proíbe! – os seus “parceiros” de participarem de festivais congêneres. Proíbe! Salvo se prévia e expressamente autorizado pelos organizadores. Mas peraí… Eles não estão aí para divulgar a cultura do botequim? Não deveriam incentivar a participação em mais e mais palhaçadas da mesma natureza? Não, meus poucos mas fiéis leitores… Eles tomam conta da situação, compreendem?
E o que dizer do item “h” que obriga o participante a participar de um treinamento (isso, treinamento!) oferecido por “entidade com notório conhecimento na área de alimentos e bebidas e/ou hotelaria, em parceria com o Comida di Buteco”? O nome disso é padronização – e isso me dá um nojo absurdo! Quer dizer que o pé-sujo (e não há pé-sujo participando do circo, graças aos deuses…) deve receber treinamento de uma entidade qualquer escolhida pelo Comida di Buteco? E o respeito à cultura? É balela, balela pura!
O item “i” é outro nojo. Os bares devem permitir que “artistas plásticos realizem instalação artística no(s) banheiro(s) do boteco, a qual deverá nele(s) permanecer pelo período definido pelo CDB, não podendo o proprietário do estebelecimento se opor à montagem ou à desmontagem da referida instalação”. Vomitaram? Mas os banheiros não são também julgados?! Ocorre que os proprietários são obrigados a permitirem essa babaquice nos seus banheiros… Eu fico pensando na reação do Marreco (Bar do Marreco), do Paulo (Almara), do Chico (Bar do Chico), da Martha (Bode Cheiroso) diante dessa imposição… O mesmo item “i” deixa claro que existe, na encolha (vocês já viram isso na mídia?) um concurso em paralelo chamado “Arte no Banheiro”. Só que a arte do banheiro não é a arte do banheiro do participante, sacaram? Ela é imposta pelos organizadores…
O item “j” legaliza a presença do poder de polícia do Comida di Buteco, que poderá manter promotores e patrocinadores nas dependências dos bares participantes.
Bacana, né? Tem mais.
Os organizadores, no item “m” das obrigações impostas, obrigam os participantes a permitirem fotografia do bar, de sua fachada, do banheiro (!!!!!), dos proprietários, dos funcionários e dos clientes (!!!!!).
O item “n” prevê a desclassificação do bar cujo proprietário falte à chamada “reunião de abertura”.
O item “o” exige que pelo menos a metade dos funcionários dos bares participantes participem do treinamento a que se alude no item “h”.
O item “p” volta a obrigar o comparecimento na “reunião de fechamento de avaliação do evento”.
O item “q” – atenção!, atenção!, atenção! – diz que os organizadores poderão fazer, a seu exclusivo critério, cinco “eventos privativos ao longo do ano com cada boteco participante.”. Fica claro, ali, o que seja “evento privativo”? Não. Mas cheira mal.
E o item “r”? Tanto o Comida di Buteco quanto seus patrocinadores “poderão utilizar livre e gratuitamente a receita do tira-gosto concorrente do concurso Comida di Buteco e/ou do concurso Doritos, podendo, por exemplo, incluí-la em seus sites e/ou livro de receitas a ser eventualmente publicado”. Sacaram a pavimentação da estrada da Jabalândia? O sujeito, no ato da inscrição, é obrigado a dar o passo-a-passo de sua receita, de sua criação. Em contrapartida (sem qualquer contrapartida, afinal a utilização será livre a gratuita), o Comida di Buteco poderá publicar seu livro de receitas… O que lhes parece?
E como se não bastassem as 18 obrigações impostas aos participantes, temos ainda o capítulo que trata das proibições, das vedações. A primeira?
Os bares não podem permitir “ações de merchandising de empresas que não sejam patrocinadoras oficiais do Comida di Buteco.”. Aqui, uma rápida: desde quanto botequim, buteco, promove ação de merchandising? Em linhas gerais, sabemos que a Bohemia – péssima cerveja – patrocina o Comida di Buteco aqui no Rio. O buteco, que ao longo dos 12 meses do ano, por exemplo, recebe inventivo da Brahma, ou de outra cerveja qualquer, durante os 30 dias de duração do festival não pode exibir ostensivamente a marca de seu patrocinador, apenas do patrocinador da Jabalândia… Sacaram a crueldade? O quão pernicioso é o mecanismo dos caras? Eles fazem uma ressalva quanto a isso… Mas proibem ações extraordinárias durante o festival… Por que?! Jabá, jabá, jabá!

E se eles impõem 18 obrigações aos participantes, comprometem-se a apenas 3 coisas: “dar ampla assistência aos botecos concorrentes”, “resolver, junto ao público participante, qualquer tipo de dúvida” e “divulgar ostensivamente o concurso”. Que tal? Quem ganha com isso?!
Confesso a vocês que o que se segue é abjeto demais para que eu me debruce, ao menos por ora, e minuciosamente, sobre as demais cláusulas do contrato de adesão ao festival.
Mas o que se vê – e o que se lê! – é de uma calhordice revoltante. Eles próprios, organizadores, reconhecem que “muitas vezes não se encontram amparados por legislação específica”. Reconhecem, mais, “que constituem verdadeiros direitos e segredos estratégicos para o desenvolvimento do seu negócio”…
O quê mais tem a desenvolver como negócio o Comida di Buteco?
A tal venda de produtos congelados nos supermercados? – como me foi ventilado.
A publicação de um livro de receitas com sua marca?
Como uma das atividades econômicas da empresa Comida di Buteco é – 47.89-0-99 – Comércio varejista de outros produtos não especificados anteriormente – tudo me soa muito mal nesse contrato.
As disposições finais estão abaixo.
E que não me desmintam mais uma vez, os organizadores.
Ao contrário do que pensam uns e outros, não estou aqui para destruir ou impedir o êxito do festival. Eu não tenho esse poder – e ainda que o tivesse, faria apenas o que venho fazendo.
Meu papel – e o exerço por dever de consciência – é apenas o de dizer: não caiam nessa esparrela, enxerguem o lobo por trás da pele de cordeiro, não sejam partícipes de uma ação perniciosa que luta contra – e com armas muito cruéis – uma de nossas mais caras tradições.
Até.