Arquivo do mês: fevereiro 2014

MAIS FRASES QUE PAPAI TIRA DA CARTOLA

Eu temia por isso: retomei as histórias sobre meu pai, um personagem pronto, e as histórias pululam na minha cabeça, fervilham no meu imaginário, quicam diante de mim de dia, perturbam meu sono à noite, e cá estou eu, de novo – e pelo segundo dia seguido – para lhes contar mais sobre as frases que meu pai, como um mágico, um ilusionista, saca do bolso, da cartola imaginária. O tema hoje é cigarro.

Papai fumava, durante minha infância e grande parte de minha adolescência, de 3 a 4 maços de cigarro ao dia. Shelton Lights, comprados diariamente no Bode Cheiroso, portentoso buteco na General Canabarro, e sempre acompanhados de uma garrafa de água mineral com gás, Caxambu, e um café. Até que um dia (vamos ao ponto que me interessa) papai resolveu parar de fumar.

Eu não me lembro, nem que queira, de sua decisão, do dia D, de nada disso. Lembro, apenas, de ouvi-lo contar, e já perdi a conta de quantas vezes!, a história da mágica (papai adora dar, a tudo o que conta, um tom sobrenatural) que o fez parar de fumar.

Papai conta que, uma vez tomada a decisão, procurou uma clínica no Flamengo (ele faz questão de frisar o bairro dizendo “na praia do Flamengo, número 66”), pelo telefone, a fim de marcar hora para uma consulta (a tal clínica prestava-se exclusivamente a um tratamento à base de laser que prometia fazer o paciente parar de fumar). E ele conta, sempre efusivo, que quando ligou não havia hora, não havia vaga. Papai então respira fundo, dá um tom de drama à narrativa e conta que praticamente ameaçou a atendente, prometendo mundos e fundos em troca de um encaixe. E conta que foi atendido. E é aí que começa o espetáculo, aí é que começa o desfile das frases-feitas.

Papai posta-se na cadeira e aponta o indicador da mão direita no alto do próprio nariz, entre os olhos. E diz, sôfrego:

– Ela me deu uma pistolada aqui… – fecha os olhos.

E prossegue.

Leva o indicador ao centro do peito e diz:

– Outra pistolada aqui!

E sai espetando o próprio dedo em diversos pontos repetindo a frase:

– Uma pistolada aqui…

E geme, e gane, e sapateia de orgulho de si mesmo.

Vai daí que vira-e-mexe alguém dá de contar ao meu pai seu drama particular para largar o vício (eu mesmo, que em 09 de maio de 2014 completarei dois anos sem fumar, tenho o meu). E meu pai, sempre, sempre!, dá de ombros e debocha do sofrimento alheio. Repete, como um Dom Pedro proclamando a Independência:

– Eu parei com uma pistolada! Uma pistolada!

Daí a pessoa conta que está usando adesivo de nicotina, tomando antidepressivo, tendo crises agudíssimas de abstinência, dormindo mal, tendo toda a sorte de revezes que assola um fumante inveterado tentando largar o vício… nada disso demove meu pai de seu número:

– Isso não adianta nada!

Ergue-se e de pé, grita:

– Nada! Não adianta nada! Eu parei de uma vez só, com uma pistolada!

E como sempre, exige a confirmação de mamãe:

– Hein, Pixuxa? Lembra? Uma pistolada!

Mamãe, de olhos baixos, confirma. É a senha para que a narrativa comece.

Era o que eu queria lhes contar. Meu pai, pela mesma razão que repete que não janta, que só belisca (leia aqui), vive contando, orgulhosamente, a história de sua pistolada – palavra, aliás, que ele inventou para referir-se à experiência quase-esotérica que experimentou lá se vão mais de vinte anos.

Até.

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AS FRASES DE MEU PAI

Quem me lê sabe que meu pai é uma de minhas obsessões (e cada vez mais, cada vez mais!).

As sessões de psicanálise, as horas diante da médica da alma, um escavar permanente na memória e na própria alma, tudo contribui para que, cada vez mais, e mais intensamente, meu pai vá se sedimentando como um tótem em minha vida. Explico.

As frases de meu pai são um bom exemplo do quanto ele é, do alto de seus recém-completados 70 anos, um sujeito que me toma a atenção.

Já lhes contei aqui que meu pai é um homem que tem, permanentemente, nos bolsos, frases que ele repete com uma constância rígida. É como o árbitro de uma partida de futebol que, diante de uma falta, exibe o cartão amarelo, o cartão vermelho. Em determinadas situações – eis o que eu queria lhes dizer – lá está meu pai, como o homem de preto, com seu apito imaginário e suas frases exibidas com ares de inedistismo. Os exemplos são muitos…

Mamãe serve sorvete de sobremesa e lá começa meu velho:

– Rápido! Rápido! Sirvam-se antes que vire sopa! Vai virar sopa! – lhes contei sobre isso, aqui.

Outra. Você encontrará meu pai na rua, na Praça Saenz Peña, na piscina do Montanha, num restaurante qualquer. Antes do “olá”, do “oba”, papai dirá sem que você nada tenha perguntado:

– Hoje eu acordei tarde… – e fixará os olhos nos seus esperando a prevísivel pergunta.

Daí você perguntará a que horas ele acordou. E ele, numa alegria incontida e até hoje incompreensível para mim, dirá:

– Três e meia! Tarde, tardíssimo! – sobre isso, lhes contei aqui.

De uns meses pra cá – eis o mote que me move hoje – papai incorporou mais uma frase para seu repertório.

Você o encontrará e o convidará para jantar, eis a situação-exemplo.

Ele dirá, no ato:

– Eu não janto. Eu só belisco.

E isso é dito como um mantra. E vez por outra, pobre mamãe, ele dá de cutucar minha mãe exigindo o testemunho:

– Hein, Pixuxa? Eu janto? Eu janto?

Mamãe bufa e faz que não com a cabeça. Daí ele emenda:

– Viu? Eu só belisco.

Deu-se então que no sábado passado, por uma dessas coincidências da vida, fui ao teatro com a Morena para ver “Elis, a musical”, no Teatro Casagrande. E lá, na fila, encontramos papai e mamãe. Foi um efusivo encontro (meu irmão caçula estava com eles) até que eu sugeri:

– Depois da peça, vamos jantar?

Mamãe fez que sim, Cristiano disse “claro” mas meu pai começou a sapatear na Afrânio de Melo Franco:

– Eu não janto, eu só belisco.

Mamãe lançou-lhe um olhar de reprimenda, papai bufou e disse:

– Não tem problema, eu fico olhando vocês comerem! – notem a categoria.

Deu-se uma pequena bulha e o Cristiano propôs, para acalmar os ânimos:

– Então não vamos jantar… vamos só comer uma pizza.

E meu pai, inovando sobre o mesmo tema:

– Eu não como à noite, eu só belisco. Vou comer só uma fatia. Só uma! Uma, uma, uma!

Terminada a peça, tomamos o rumo da pizzaria.

E eu tive a impressão de que meu pai, azul-de-fome, cravava os olhos cheios d´água nas pizzas alheias, tamanha a vontade de comer as maravilhas que chegavam à mesa. Mas diante de sua rigidez e de seu caráter implacável, gania com o prato vazio depois de comer sua única fatia, mesmo mamãe perguntando se ele queria mais (era evidente que queria):

– Não, Pixuxa. Eu não janto. Eu só belisco.

Era o que eu queria lhes contar hoje.

Até.

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