Eu temia por isso: retomei as histórias sobre meu pai, um personagem pronto, e as histórias pululam na minha cabeça, fervilham no meu imaginário, quicam diante de mim de dia, perturbam meu sono à noite, e cá estou eu, de novo – e pelo segundo dia seguido – para lhes contar mais sobre as frases que meu pai, como um mágico, um ilusionista, saca do bolso, da cartola imaginária. O tema hoje é cigarro.
Papai fumava, durante minha infância e grande parte de minha adolescência, de 3 a 4 maços de cigarro ao dia. Shelton Lights, comprados diariamente no Bode Cheiroso, portentoso buteco na General Canabarro, e sempre acompanhados de uma garrafa de água mineral com gás, Caxambu, e um café. Até que um dia (vamos ao ponto que me interessa) papai resolveu parar de fumar.
Eu não me lembro, nem que queira, de sua decisão, do dia D, de nada disso. Lembro, apenas, de ouvi-lo contar, e já perdi a conta de quantas vezes!, a história da mágica (papai adora dar, a tudo o que conta, um tom sobrenatural) que o fez parar de fumar.
Papai conta que, uma vez tomada a decisão, procurou uma clínica no Flamengo (ele faz questão de frisar o bairro dizendo “na praia do Flamengo, número 66”), pelo telefone, a fim de marcar hora para uma consulta (a tal clínica prestava-se exclusivamente a um tratamento à base de laser que prometia fazer o paciente parar de fumar). E ele conta, sempre efusivo, que quando ligou não havia hora, não havia vaga. Papai então respira fundo, dá um tom de drama à narrativa e conta que praticamente ameaçou a atendente, prometendo mundos e fundos em troca de um encaixe. E conta que foi atendido. E é aí que começa o espetáculo, aí é que começa o desfile das frases-feitas.
Papai posta-se na cadeira e aponta o indicador da mão direita no alto do próprio nariz, entre os olhos. E diz, sôfrego:
– Ela me deu uma pistolada aqui… – fecha os olhos.
E prossegue.
Leva o indicador ao centro do peito e diz:
– Outra pistolada aqui!
E sai espetando o próprio dedo em diversos pontos repetindo a frase:
– Uma pistolada aqui…
E geme, e gane, e sapateia de orgulho de si mesmo.
Vai daí que vira-e-mexe alguém dá de contar ao meu pai seu drama particular para largar o vício (eu mesmo, que em 09 de maio de 2014 completarei dois anos sem fumar, tenho o meu). E meu pai, sempre, sempre!, dá de ombros e debocha do sofrimento alheio. Repete, como um Dom Pedro proclamando a Independência:
– Eu parei com uma pistolada! Uma pistolada!
Daí a pessoa conta que está usando adesivo de nicotina, tomando antidepressivo, tendo crises agudíssimas de abstinência, dormindo mal, tendo toda a sorte de revezes que assola um fumante inveterado tentando largar o vício… nada disso demove meu pai de seu número:
– Isso não adianta nada!
Ergue-se e de pé, grita:
– Nada! Não adianta nada! Eu parei de uma vez só, com uma pistolada!
E como sempre, exige a confirmação de mamãe:
– Hein, Pixuxa? Lembra? Uma pistolada!
Mamãe, de olhos baixos, confirma. É a senha para que a narrativa comece.
Era o que eu queria lhes contar. Meu pai, pela mesma razão que repete que não janta, que só belisca (leia aqui), vive contando, orgulhosamente, a história de sua pistolada – palavra, aliás, que ele inventou para referir-se à experiência quase-esotérica que experimentou lá se vão mais de vinte anos.
Até.