Arquivo do mês: março 2016

OS COLETIVOS

Hoje, finalmente, cumpro a palavra que empenhei ao Raphael Vidal, o Maluco Fundamental, figura imprescindível para a minha mui amada e leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Escrevi, em 07 de março, aqui, que não há nada mais inviável do que um coletivo. Foi publicar isso e ouvir, daqui, as gargalhadas que vieram rolando do Morro da Conceição, atravessaram a Rio Branco nos trilhos do VLT e vieram até o Castelo: era o Vidal, a confissão é dele, gargalhando às escâncaras diante da minha humílima declaração. Hoje, portanto, debruço-me o palpitante tema dos coletivos.

Os coletivos são, nada mais, nada menos, do que grupelhos dedicados a um tema de interesse comum a todos os seus membros. Explico: Aderbal e Adelaide adoram gastronomia. Gastam seus tempos pesquisando sobre ingredientes, sobre a culinária regional, receitas, essas bossas. Até que um deles – digamos que o Aderbal – diz:

– Vamos montar um coletivo?

E há, nos olhos, na boca e na expressão corporal da Adelaide, uma excitação de primeira noite.

– Vamos! – diz lânguida, a Adelaide, tendo quase um surto de umidade.

Daí Aderbal e Adelaide percebem que estão diante de uma olada e criam, assim, num só diálogo curtíssimo, um coletivo de gastronomia. Passam, dali em diante, a assumir nova postura. Encontram o Setúbal, amigo comum. Diz, o Setúbal:

– Opa! Tudo bom?

– Criamos um coletivo! – como cegos e surdos, não ouvem mais nada, não respondem nada, estão integralmente voltados para o projeto (todo coletivo é, também, um projeto).

Eis que o Setúbal saliva, não esconde a inveja e a cobiça e, ele também excitadíssimo, pergunta como fazer para fazer parte do coletivo. E esse movimento, que não cessa, faz com que em – o quê? – 10, 15 dias, esteja criado (e grande, e cheio de adeptos, seguidores e membros) o coletivo que nasceu do desejo comum de Aderbal e Adelaide.

Vai daí que temos, hoje, coletivos de gastronomia, de artes cênicas (teatro, sobretudo), de fotografia, de cinema, de tudo. E há, em todos os coletivos, um enfado criativo que dá dó. E de mãos dadas com o enfado, uma ira incontida contra tudo o que está, digamos, estabelecido há 10, 20, 50, 100, 1.000 anos. A idéia central dos coletivos é repensar o mundo (todos os coletivos, sem exceção, repensam o mundo sem que se mova uma palha no entorno deles). E repensar o mundo para os membros de um coletivo é, obrigatoriamente, contestar tudo, de tudo discordar, vociferar contra tudo e contra todos. Eu seria capaz, sem medo do erro, de dizer que todos os coletivos juntos formariam uma espécie de país imaginário: têm, os membros de um coletivo, essa intenção (sem que ninguém tenha lhes pedido rigorosamente nada) de destruir as estruturas estabelecidas para reerguê-las sobre pilares mais sólidos (pilares mais sólidos é como pigarro para os velhos na boca desses jovens). Há, nos membros de um coletivo, uma arrogância disfarçada de candura; uma fúria disfarçada de pacifismo; lampejos de genialidade que não são nada além de nada.

Notem que os coletivos promovem debates, reuniões, ciclos, mesas, seminários, congressos, ocupações, atos, manifestos, e toda a assistência desses debates, dessas reuniões, desses ciclos, dessas mesas, desses seminários, desses congressos, dessas ocupações, desses atos e desses manifestos são eles mesmos, que se revezam, esquizofrenicamente, no papel de expositor e de público, de debatedor e de mediador, de artista e de platéia, num movimento inviável e incapaz de produzir qualquer coisa que tenha eficácia ou utilidade para além de suas fronteiras (embora sejam, os coletivos, também contra as fronteiras).

Não sei se fui exatamente claro, Raphael Vidal (é para ele e apenas para ele que estou escrevendo). Prometo voltar ao tema em brevíssimo.

Até.

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O CINEMA HÚNGARO (OU OS COLETIVOS)

Prometi ontem ao Maluco Fundamental, imprescindível para a sobrevivência da cidade do Rio de Janeiro (estou a lhes falar de Raphael Vidal, que ganhou de mim o epíteto que agora todos trazem no bolso como se espontâneo fosse chamá-lo assim), falar-lhes hoje sobre os coletivos, essa nova moda, essa nova bossa, esse novo savoir-vivre, por conta do que escrevi ontem: não há nada mais inviável do que um coletivo (ele, o Raphael Vidal, confessou-me ter tido uma crise de riso diante dessa verdade que estaquei na tela).

Mas deixarei para falar sobre os coletivos amanhã. E isso porque recebi, há pouco, no texto O Bigode, que publiquei ontem (aqui), comentário do seguinte teor:

“Me lembra os famosos filmes húngaros, em preto e branco, som horroroso e sem legenda, porque era chique vê-los em cinemas de circuito de “arte”, nos anos oitenta. Se você não os visse, era tachado de burro, ficando fora dos circuitos intelectuais. E além de ver, tinha que comentar!”

O comentário é do leitor Claudio Luiz Furtado, paranaense da cidade de Ponta Grossa, e lê-lo foi o suficiente para que eu fosse arremessado ao tempo do cinema húngaro. Eu escrevo cinema húngaro e subitamente me vêm à mente o que já escrevi sobre o cinema iraniano, aqui e aqui.

Notem vocês a semelhança de comportamento entres os entusiastas dos cinemas iranino e húngaro que emerge dos tais textos a que aduzi e do comentário que transcrevi acima. Segundo o leitor, de insuspeitada opinião, a bossa do espectador dos filmes húngaros era justamente fazer a blague com o reles mortal que, como de se esperar, detestava o decantado cinema húngaro, de “som horroroso e sem legenda”. Chegava ao fim a película e o intelectual dizia, seriíssimo:

– Gosto mais do olhar do Mi.

O homem-comum, que odiara o filme, fazia cara de quem não entendia. Pois era quando o intelectual ejetava o queixo pra frente a fim de dar mais dramaticidade à fala e soltava:

– Mi! Miklós Jancsó. Um gênio!

E os demais, que vinham atrás caminhando sobre a tapeçaria vermelha da sala de exibição, geralmente um cinema que integrava o chamado circuito de arte (o que quer dizer que era pequeno, fedia e quase em ruínas), relinchavam em uníssono:

– Gênio! Um gênio!

– Zseni! Zseni! – um mais descolado gastava o húngaro.

O pobre-diabo sentia-se aterrado pela própria ignorância que lhe era agradável.

Percebam que a humilhação posterior é que era o ápice. Porque não bastava humilhar o homem médio que não sabia quem era Miklós Jancsó. Era preciso ir mais fundo. O cinéfilo o punha praticamente contra a parede e perguntava:

– Gostou?

Não. Era evidente que ele não havia gostado (sequer havia compreendido aquilo tudo). Mas percebendo o olhar, como se fora uma foice, balançava a cabeça em sinal de positivo.

– Quem é o diretor? Quem é? – urrava um fanático pelo cinema húngaro que assistia, com prazer masoquista, aquele estupro cultural.

E o silêncio daquele pobre-diabo incendiava a multidão de intelectuais.

– István Szabó! – urravam numa só voz.

E repetiam:

– István Szabó!

Dali partiam para o aparelho de um deles para – era o que se dizia – uma plenária sobre o filme.

E o pobre-mortal voltava pra casa, de ônibus, com vergonha inclusive de olhar nos olhos do trocador.

Era o tempo, meus poucos mas fiéis leitores, em que dizer não à pergunta você curte o cinema húngaro? (e esse húngaro era dito, sempre, com o queixo projetado pra frente) significava o aval para o linchamento moral e público, o desterro e o degredo do homem sincero.

Até.

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O BIGODE

Escrevi, em janeiro de 2012, dois textos sobre o cinema iraniano: A Separação, aqui, e Mais sobre o cinema iraniano, aqui. Discorri, ali, sobre a inacreditável experiência que foi, estando no cinema, observar o comportamento da fauna à minha volta diante de um filme absolutamente incompreensível e chato, sobretudo chato. Percebi, em apertada síntese, que o sujeito que se dispõe a sair de casa para assistir a uma película iraniana já tem, pondo o pé fora de casa, ares, poses, gestos e falas características dos pernósticos, dos acima-do-bem-e-do-mal, dos dotados de uma inteligência e de uma sensibilidade que os pobres mortais não têm nem em sonho. Durante o filme, então, essa gente geme, gane, funga como quem chora, uiva sentada na poltrona admirada diante do que eles chamam de obra.

Dito isso, contar-lhes-ei minha experiência na tarde de ontem, domingo.

Estávamos na praia, eu e minha Morena, quando ela fez a sugestão:

– Vamos ao teatro?

Fui ao mar, sem dizer palavra, e lá fiquei, o quê?, uns vinte minutos, murchando e pensando na hipótese. Eu só lembrava do Luiz Antônio Simas e sua experiência com o teatro, ele que publicou um antológico texto chamado Bodas de prata, hoje indisponível para leitura por conta da compilação que está a fazer o Simas, sobre a alegria que foi comemorar 25 anos longe do teatro. Voltei para a areia. E disse:

– Pra ver o quê?

– O Bigode.

Fui ao mar, sem dizer palavra, e lá fiquei mais uns 15 minutos. Só conseguia me lembrar do Julio Vellozo, que me contou ter caído numa armadilha, à certa altura, aceitando um convite para ir ao cinema assistir a um filme sobre um tapete (um tapete!), iraniano, diga-se – o tapete e o filme.

Voltei.

– O Bigode?

– Arrã. – enlouqueço quando ela fala arrã, uma de suas marcas paranaenses, porque é charmoso demais o seu arrã.

– Vamos… – disse por conta das restrições da Quaresma (é tempo de sacrifícios).

Eu disse vamos mas fui ao Google atrás de informações sobre a peça. Deparei-me com isso:

“Carrère diz que ficou surpreso quando foi abordado pelos integrantes do Coletivo Lupa, que pediram autorização para levar o romance ao palco. O encontro aconteceu pessoalmente em 2011, quando o escritor veio ao Brasil para a Festa Literária Internacional de Paraty e participou de debates no Rio de Janeiro. De cara, a resposta foi dizer que “não considera o texto muito teatral”. Por outro lado, ele admite não ser ter muito contato com as artes cênicas.”

Fiquei, confesso, em pânico. Integrantes de um coletivo (não há nada mais inviável do que um coletivo) ouviram do próprio autor o conselho que desaconselhava a intenção – o texto não é muito teatral – e resolveram peitá-lo.

Resultado?

A peça é constrangedora.

Antes, uma pergunta, e se alguém desconfiar da resposta, por favor, faça comentários: por que, meu Deus?, por que?, sempre que uma campainha toca numa peça (e na tal peça campainhas tocam diversas vezes nas casas dos personagens) o personagem entra em pânico, em crise convulsiva e histérica, e sai, desesperado, em direção à porta?

A peça, como eu disse, é constrangedora. É constrangedora mas preciso lhes contar mais sobre o que houve para que vocês tenham exata noção do sacrifício que foi. Chegamos ao teatro, eu e a Morena, portando três saquinhos de amendoim comprados num tabuleiro na calçada em frente. A assistência tinha, em média, 70, 80 anos. Entregamos nossos ingressos, tomamos nossos assentos e, depois do terceiro sinal, apagaram-se as luzes. Apagaram as luzes e eu abri, com cuidado, o primeiro saquinho de amendoim. Ouvi um relincho:

– Olha essa bala aí! Shhhhh!

Entra no palco um dos atores.

Pego o primeiro amendoim e percebo um festival de pescoços em movimento, diante de nós, lançando-nos olhares de reprovação diante do humilde lanche. Ouço muxoxos de desdém e continuo a mastigar em silêncio, e isso foi até o final do primeiro saquinho. Entram no palco mais dois atores (são dois homens e uma moça) e abro o segundo saquinho depois de comer todo o amendoim do primeiro saco, sendo que a cada colheita de amendoim, claro, aquele ruído, leve, do papel laminado sendo amassado. Bem em frente a mim, uma senhora de – o quê?! – uns 60 anos. Na metade do segundo saco ela não agüentou e virou-se, ríspida:

– Meu filho, não sabe vir ao teatro? Fique em casa!

Ah, pra quê…?

Fui, dali em diante, o sonoplasta da peça. Quando terminei o terceiro saquinho de amendoim eu tinha comigo três sacos vazios. Um eu pus embaixo do pé direito. Os outros dois, um em cada coxa. E fiquei ali, durante o desenrolar da modorrenta peça, brincando de Hermeto Paschoal para desespero dos intelectuais.

A peça, um horror.

Para que vocês tenham uma idéia plástica da tragédia constrangedora que se passava diante de nós, o espetáculo (escrever espetáculo chega a ser cômico) termina com o ator principal – o tal que tinha um bigode que ele tira imaginariamente na primeira cena – cometendo suicídio diante da platéia: o ator cobre o rosto com argila, pinta o peito de vermelho fazendo papel de sangue, arremessa a cabeça pra trás e seguem-se aplausos, ganidos, uivos de bravo!, e eu saí do teatro com a mesma sensação de que sou uma besta que me acometeu depois do filme iraniano.

Até.

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