Lembro-me como se fosse hoje. Ela, sem esconder a excitação com a efetiva possibilidade daquilo acontecer o quanto antes, disse-me com os olhos fixados nos meus:
– Você pre-ci-sa conhecer o Gava! – e ela disse o “precisa” assim mesmo, separando as sílabas, enfatizando a necessidade do encontro.
Estávamos no Bar da Maria, na rua Garibaldi, e eu dei corda:
– É? Por que?
Ela derramou-se em elogios e passou a desdobrar, sobre a mesa, a biografia do sujeito. Eram conterrâneos, do Paraná, e ele já estava morando há coisa de uns meses (pouco mais de ano) no Rio, “um pouco deslocado”, (acho que) ela disse. E tornou a repetir, depois de um vigoroso gole na cerveja estupidamente gelada que dividíamos:
– Você pre-ci-sa conhecer o Gava!
Fato concreto é que eu conheci o Gava.
Antes, porém, faço questão de lhes contar um detalhe fundamental.
Durante a tal conversa no Bar da Maria, ela disse-me quase aos cochichos:
– O Gava é católico.
E eu sei lá por qual razão a junção dessas duas palavras numa mesma frase – Gava / católico – causou-me uma espécie de respeito prévio, imediato, pelo sujeito. Ela foi adiante:
– Católico! No duro! E da ala avançada da Igreja…
Tornou a baixar a voz:
– Respeita a Quaresma…
Voltemos.
Conheci o Gava poucos minutos antes da saída do Bola Preta, no Carnaval de 2012. Estávamos, eu e ela, começando a viver nosso primeiro Carnaval juntos e ela achou uma boa idéia, vá entender, apresentar o namorado (eu) para o amigo (ele) na manhã do Sábado de Carnaval.
Eu estava fantasiado de Vilma Flinstones, um vestidinho com estampa de onçinha, meia arrastão, com unhas postiças pintadas com esmalte cor-de-abóbora, uma peruca imensa combinando com as unhas, óculos escuros comprados na rua da Alfândega, na véspera, e rodando uma bolsinha porque eu já saíra calibrado de casa – evidentemente.
A impressão que guardei desse primeiro encontro – eu estava impressionado desde o Bar da Maria – foi a de que ele foi, assim, 100% católico: lembro-me dos olhos compungidos de tanta piedade diante de mim (guardo ligeira impressão de ter visto ele fazendo o sinal da cruz como que a me benzer) e de nada mais, até nosso encontro seguinte (já bem depois do Carnaval).
De lá pra cá, eis a verdade: constatei que o Gava é, efetivamente, um grande praça. Almoçamos com beneditina freqüência, trocamos e-mails com alguma assiduidade, vamos lá, aos poucos, costurando uma relação como – é como penso – ela imaginou no não tão longínquo novembro de 2011. Mas a cada encontro – eis o assombroso! – eu saio repetindo, de mim para mim:
– O Gava é católico.
E logo depois eu mesmo emendo:
– Apóstólico e romano!
Pausa: o Gava anda tendo cólicas de ansiedade com a eleição papal que se aproxima. Nisso, vejam que bonitos são os caminhos da vida, ele e o Szegeri (um ex-católico fervoroso) são irmãos. Volto ao assunto.
Até que, poucos dias antes do Carnaval deste 2013, almoçávamos, eu e o Gava, no centenário Cosmopolita, na Lapa. E eu estava reclamando do meu estado físico (estou, a cada dia que passa mais, uma bóia) quando ele me interrompeu:
– Recolha-se na Quaresma.
E disse isso, meus poucos mas fiéis leitores, com uma calma, com uma tranqüilidade, que vi pombas brancas sobrevoando sua cabeça, uma espécie de São Francisco de Assis (mais bonito, que o Gava é um pão, diriam minha bisavó e minha avó) diante de um rebento perdido e transido.
E cá estou eu vivendo minha primeira Quaresma, sem pôr uma única gota de álcool na boca desde o domingo último (sei que, com isso, não estou a seguir as regras de Roma, mas meu Papa é outro). No sábado, inclusive – notem o grau de santidade do cara – estive no Desfile das Campeãs com a Morena. Quem foi conosco? Ele, o Gava.
Sambou como um curitibano. Bebeu como um cossaco. Dormiu no concreto das arquibancadas como um mendigo. E faltando pouco pro dia clarear, ergueu-se e despediu-se de nós.
Deu-me um fraterno abraço, uns tapinhas nas costas, e soprou-me no ouvido, catoliquíssimo:
– É amanhã, é amanhã! Comece amanhã! Quarenta dias não são quarenta horas. Boa Quaresma… – e sumiu em meio à multidão.
Até.