Ontem fui ao centro da cidade render-me à necessidade tecnológica, da qual fujo agudamente, e fui, como de hábito, tomar meu café coado no pano no Café Gaúcho (não suporto o café expresso, que passou a requintes que fazem uma xícara custar o preço de uma dose de uísque). De posse de um pendrive (reneguei, o quanto pude, o dito cujo), atravessei a Rio Branco e tomei a direção da esquina da São José com a Rodrigo Silva. Dei de cara com um protesto contra o golpe que não é exatamente golpe em Honduras (não tenho paciência pra discutir o troço aqui). Recomeço a frase: dei de cara com duas placas onde se lia “ZELAYA JÁ” e “FORA MICHELETTI”. Mentira, mentira. Eram três placas. Na terceira lia-se “O PSOL APÓIA O CAMARADA JOSÉ MANUEL”. Três pessoas, uma delas gritando palavras de ordem num megafone amarelo e vermelho, seguravam as três placas (um cidadão de bermuda bege, camisa branca e colete – membros do PSOL fazem do colete um uniforme – segurava o megafone com a mão direita e com a esquerda sacudia a cartolina pregada num cabo de vassoura com a impactante frase oferecendo solidariedade ao presidente deposto). Um quarto membro do partido distribuía panfletos convocando o povo para o debate político que às sextas-feiras o PSOL promove no Buraco do Lume para, no máximo, seis gatos pingados.
Depois de atravessar o Buraco do Lume fui ao balcão.
E encontrei o Percival.
Não o via há – o quê?! – dez, doze anos.
– Perci! – fui efusivo.
– Como vai essa força? – ele respondeu com a frase-feita.
Fiz a ele, em menos de dez minutos, um breve relato desses dez, doze anos e ele cravou-me com uma pergunta:
– Você faz análise?
Mexendo o café por puro esporte (bebo café puro), fiz que não com a cabeça. Veio a sentença:
– Por isso.
Fiz cara de que não entendi.
– Por isso andas bebendo com essa regularidade doentia, por isso voltaste a fumar, por isso essa barriga de chico-bóia, por isso esses cabelos brancos.
Para provocá-lo, sem dar-lhe uma resposta, pedi ao Bira:
– Um chope na pressão!
E ele, com carinha de nojo:
– Sai dessa lama!
Estendeu-me um cartão:
– Liga pro doutor. Te fará um bem tremendo.
– Você enlouqueceu, Percival?! Não nos vemos há dez, doze anos, e você vem com esse papo?! Ô, troço chato!
Ele ajeitou os óculos e disse:
– Quem mais precisa do tratamento é quem mais o rejeita…
Bebi o chope. Pedi outro. E ele:
– Sai dessa lama, Eduardo… Sai dessa lama!
Aproxima-se do balcão o pobre-diabo que distribuía os panfletos do PSOL. Estende um para o amigo a quem, àquela altura, eu lamentava ter encontrado. O Percival recebe o folhetim, lê o texto, dobra a coisa e guarda no bolso. Estende, em seguida, um para mim. Eu faço outro sinal pro Bira e digo:
– Não, obrigado.
O pobre-diabo continua distribuindo os santinhos entre a assistência que está no bar. O Percival:
– Não por que?!
Não respondo.
– Teu caso é urgente. Sai dessa lama! Sai dessa lama!
Despediu-se de mim, tirou o casaco (foi quando eu vi em sua lapela o botton do PSOL) e saiu em direção à rua da Assembléia fazendo que não com a cabeça.
E eu ali, indo para o quarto chope, enterrado na lama imaginária que o amigo de outrora enxergou.
Até.