O Felipinho Cereal é desses amigos fatais, definitivos, espetaculares, quase inconcebíveis. Já queimei demais a língua em comícios públicos sobre os que me cercam (ou que me cercavam) e já me decepcionei demais com a vilania, com a falta de caráter, com as surpreendentes atitudes dos homens, capazes de me ferir de modo agudo a alma, quase sempre pega (a alma, caros leitores) de surpresa, como se fora o perplexo goleiro Rafael Asca, do Peru, depois da folha-seca do Didi, cobrando falta pelas eliminatórias da Copa de 58. Mas não temo queimá-la com o Felipinho, em absoluto. É como disse o Szegeri, hoje à noite:
– O Felipinho é o único amigo que presta que eu tenho.
A frase, baseada nas recorrentes afirmativas do jornalista José Sergio Rocha sobre seus amigos (e não vou explicar o por quê), calou-me fundo. Concordo com ela em gênero, número e grau, como diria um antigo – como o Felipinho.
Estava eu, ontem, sentado na cadeira do dentista (leia-se Marcelo Alves Vidal, outro que JAMAIS, com a ênfase szegeriana, me decepcionará), quando estrilou meu celular. Era o Felipinho:
– Vai almoçar?
– Arrã.
– Topas almoçar na casa da minha avó?
– Claro!
Deu-me o endereço, o pequeno grande homem.
Quem, dentre vocês todos, meus poucos mas fiéis leitores, tem uma avó morando na rua do Riachuelo?!
Pois depois da consulta tomei o 238 e saltei na Riachuelo, avistando, de primeira, o Felipinho diante de uma garrafa de Brahma no buteco ao lado da portaria do prédio de sua avó, dona Luiza.
Abraçamo-nos emocionados antevendo os lances comoventes que nos esperavam. E ele começou, olhos embaçados, a desfiar orgulhoso:
– Você tem de ver o cuco que minha avó tem na sala…
– E a máquina Singer do tempo do onça…
– Vovô sempre quis mudar pro Flamengo mas vovó se recusou a largar o Bairro de Fátima…
Subimos as escadas do velho edifício e seguiu-se um maremoto de delícias indizíveis.
Não me cabe, aqui, até mesmo por princípios que vigoram no BUTECO há tempos, relatar tudo o que vi e que vivi no interior daquela sala antiqüíssima, em contraste com a alma juvenil da dona Luiza.
Almoçamos uma comida que só mesmo vó sabe e pode fazer: arroz branco, feijão-manteiga com carne-seca, purê de batata, carne de panela e farofa de lingüiça.
Dona Luiza exibia, mais orgulhosa que o neto, os tesouros que guarda em casa.
Até que abriu uma gaveta e exibiu tiras intermináveis de pano verde e uma tesoura gigantesca, quase do tamanho do meu amigo.
Disse-me ela:
– Segura esse feltro, segura! Coisa boa! Coisa fina!
E prosseguiu:
– Panos que cobriam as mesas de jogo do Cassino da Urca, cortados com essa tesoura aqui…
Pra variar um bocado, bati um fio pro Szegeri. Contei-lhe sobre o troço.
Falávamos no viva-voz como já lhes contei aqui e ele:
– Será que ela me vende um pedacinho desse pano?
Dona Luiza, com uma nobreza que diz muito sobre o Felipinho, estendeu em direção ao neto um grande corte do pano verde:
– Dê pro amigo de vocês. Presente meu…
Um gesto surpreendente, de comover.
Como a folha-seca do Didi.
O que prova, meus poucos mas fiéis leitores, que nem tudo está perdido.
Até.