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CARTOLA
ESPECIAL CARTOLA
Cartola 90, samba 2000
Em artigo de 1992 sobre Cartola, eu escrevi que, em época de seqüestro, ninguém agüenta mais a palavra resgate. Seqüestro de dólares, desviados de nossas contas em bancos que estouram para engordar poupanças de pilantras impunes em paraísos fiscais; seqüestro da prometida geração de empregos e das promessas do “mercado regulador”; seqüestro de estatísticas que desmintam os dados oficiais; seqüestros flagrantes de intenções de voto; seqüestro de cidadãos indefesos e até mesmo de órgãos; o seqüestro dos “ajustes fiscais”. Com a confirmação do novo reinado de Caô-tsé-Tunga (mentira, modorra e roubalheira sob um calor e uma recessão de deixar qualquer um de tanga), o sambola, ou sambobo, ou sambabaca é o hino do regime. Então, não falarei de resgate. Vou só procurar impedir que o legado de Cartola sofra seqüestro oportunista nas mãos de produtores que, se entendem pouco de batuque, são mestres na arte-manha de arrancar o couro.
O homem que é sinônimo de Estação Primeira de Mangueira, que escolheu o nome da Escola e suas cores, que foi o autor de seu primeiro samba-enredo nasceu, como no antigo samba, só pra chatear… no Catete. Houve confusão no nome de batismo, Angenor. Usava óculos escuros à noite. Deu uma recauchutada no nariz com a pele do traseiro. Até mesmo sobre a origem de seu apelido, Cartola, a história não coincide. Na de Jota Efegê, em Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira, volume 2: “…ganhou o apelido por usar como fantasia uma cartola de papelão com a qual formava nos sujos da gurizada, nos dias de carnaval”, ainda moleque na Zona Sul. Já o fascículo no. 17, Cartola / Nelson Cavaquinho, da primeira edição da História da Música Popular Brasileira, garante que, rapazola, trabalhando na construção civil, arranjou um chapéu-coco pra se proteger do pó de cimento que caia em sua cabeça. Daí, o apelido. Vida de compositor popular tem que ter várias versões. A gente fica achando que no país do Pensamento Único só figuras como Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça são reais. O resto é fantasia.
Cartola foi famoso nos anos 30. Vendeu sambas para Mário Reis e para Francisco Alves. Quando sumiu, foi trazido de volta à tona por um mito, Sérgio Porto. Não é mole ser resgatado (epa, olha a palavra aí) pela flor dos Ponte-Preta. O também lendário tio de Sérgio, Lúcio Rangel, chamava Cartola de Divino. Quando Sérgio Porto trouxe Cartola de volta, ele estava lavando carros na rua. Injustiças assim, como a que atingiu Cartola, compositor apreciado por Villa-Lobos, gravado por Leopoldo Stokovsky, citado em sambas de Herivelto Martins e de Pedro Caetano, considerado nosso maior compositor por Nelson Cavaquinho, amigo de Noel Rosa, parceiro de Sílvio Caldas, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, são freqüentes hoje, nesses tempos de sambesta.
Cartola comandou, com a mulher que salvou sua vida, uma das mais festivas casas noturnas de todos os tempos no Rio de Janeiro: o Zicartola. Fez dois discos imortais pela Discos Marcus Pereira, produzidos o primeiro pelo Pelão e o outro por Juarez Barroso, nomes históricos em nossa melhor produção musical, direção e regência do antológico Horondino José da Silva, o Dino Sete Cordas.
Em sua obra irretocável, por trás da economia de palavras, e às vezes sob o verniz romântico (que reforça o choque sentido), insinua-se o mais severo analista de quantos trataram o delicado tema das relações amorosas. Perto de Cartola, Lupiscínio Rodrigues era um otimista… Cartola reconhece que o amor é imprescindível ao poeta e ao samba. Só que não dá certo.
A lúcida amargura de O Mundo é um Moinho resume exemplarmente sua visão: chamada de amor logo no primeiro verso, a Musa leva uma tremenda descompostura: não sabe o rumo que irá tomar, deixará sua vida cair em cada esquina, e em pouco tempo não será mais o que é. O mundo, um moinho, vai triturar seus sonhos – que, acentue-se, são mesquinhos -, vai reduzir as ilusões a pó e, de cada amor, a herança será só o cinismo.
Quando notar, a Musa estará à beira do abismo, cavado por ela própria. Não há esperança, votos de estima e consideração, uma única palavra amiga de despedida.
Em As Rosas Não Falam, o poeta chega ao extremo do lirismo e destrói seu arroubo em dois versos:
Queixo-me as rosas
mas, que bobagem, as rosas não falam.
Em seguida, um verbo sofisticado soa com toda naturalidade na letra do sambista e o clima lírico se reconstrói:
Simplesmente as rosas exalam
o perfume que roubam de ti.
A letra termina contradizendo a esperança que, no início, batia em seu coração. É melhor que a musa veja os olhos tristonhos do cantor e sonhe por ele.
Esse tipo de tranqüila constatação do que é irrealizável no amor acompanha toda a trajetória do poeta:
Você não merece
mas isso acontece
……………………..
Se eu ainda pudesse fingir que te amo
ai, se eu pudesse
mas não quero…
Isso não acontece.
Melhor não chorar, mas, se for preciso, convém não dar bandeira, não fazer alarde: disfarça e chora. Mesmo assim, o teu pranto, ó linda senhora, vai molhar o deserto.
Chorar não adianta.
No politicamente incorreto Tive sim, Cartola reconhece que amou outra mulher tanto quanto a atual, que vivia contente ao lado dela, mas que prefere calar. Conversei sobre esse samba com D. Zica, que me contou, entre risadas, com grande simplicidade:
– Eu estava afim de arengar e ele quieto. Eu, criando caso de graça: tá pensando em outra? Ele lá, calado. Chacoalhei tanto que ele respondeu: “tive outros amores antes do teu, sim. E não quero mais falar nisso pra não te magoar”. Na madrugada seguinte, meu filho, nasceu o samba Tive sim.
Há pérolas menos cultivadas, como Assim Não Dá, Evandro Bóia na parceria:
Assim não dá, não dá não
Não vai dar, meu irmão
É doutor presidente
Doutor secretário
Doutor Tesoureiro
Só quem não é seu doutor
É aquele pretinho
Que varre o terreiro.
………………..
Já houve lá um concurso
Pra quem bate surdo
Tamborim e pandeiro
E eu fiz tanto esforço
Mas acabei perdendo
Pra um engenheiro
Justiça seja feita: parece uma tese do Tinhorão.
Toda a alegria foi perdida em Cordas de Aço, clássico absoluto de nossas noites boêmias. O violão compreende porquê. E, no entanto, é só o bojo perfeito soltar o som da madeira que todos voltam pra casa cantando.
Em Desfigurado, Cartola sai na frente, pioneiro de um tema que se tornaria caro a nossos compositores:
Meu coração…
É infeliz como um menor abandonado
O título Minha serve apenas para constatar que…
Minha
Ela não foi um só instante
Como mentiam as cartomantes
Como eram falsas as bolas de cristal
Talvez por isso o poeta grite Não quero mais amar a ninguém (Com Carlos Cachaça e Zé da Zilda).
Desejo impossível, porque…
Um vazio se faz em meu peito
………………….
Me faltando as tuas carícias
As noites são longas
E eu sinto mais frio
Procuro afogar no álcool a tua lembrança
Mas noto que é ridícula a minha vingança
O homem não dá refresco nem bebendo. Para desespero dos chatos, há também engajamento político em Cartola, como no Samba do Operário, em parceria com Nelson Sargento e Alfredo Português, onde o operário é um escravo, cuja voz é abafada e que só encontra exploração em todo lugar.
A mulher maltratada, que hoje tem até delegacia, não foi esquecida por Cartola.
Foi tanta pancada
que ele me deu
que estou toda doída
estou toda ferida
ninguém me socorreu
Mas, sendo criação de Cartola, não perde o senso prático:
Eu parei desta vez:
vou arranjar um português.
Pra encerrar essa parte, um pedacinho de um dos meus favoritos, Tempos Idos, com Carlos Cachaça:
O nosso samba, humilde samba…
Depois de percorrer todo o universo,
Com a mesma roupagem que saiu daqui
Exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamarati.
O teste do compositor popular não é só o do assobio. Na gafieira, eu vi e ouvi, ao vivo e a cores, o desconhecido a meu lado suspirar quando a orquestra atacou O Sol Nascerá (com Elton Medeiros):
– Ah, essa é a minha música…
E saiu procurando a dama para dançar.
O samba, na realidade, está aí, pra quem quiser ver e ouvir no premiadíssimo CD Bebadosamba, no show Bebadachama de Paulinho da Viola, no prêmio Shell que Zé Keti abiscoitou com a frase do milênio (“o bom dos prêmio é que a mulherada vem atrás”); o samba está na grande obra de Nei Lopes, em seu reduto de Vila Isabel, baluarte, como Candeia, da cultura negra; na luta pela vida de Wilson Moreira; na chama vencedora – e como esse artista foi injustiçado, meu Deus! – do fenômeno Walter Alfaiate, lotando casas de samba como o Candongueiro, Mãe Joana, etc, com quase 70 anos. O samba está presente em cada mês de fevereiro na Ressurreição do Carnaval, apesar de toda comercialização que o envolve, que tem sua morte anunciada anualmente pelos urubus mas que se recusa a abotoar o paletó de Comissão de Frente em nossa cultura.
Uma vez, participei de reunião para campanha publicitária tipo “Salve o Rio”. Na hora de escolher a música que representasse a cidade, disse um gênio do Markkkettinnnggg, a única profissão do mundo que ricocheteia:
– Só não concordo com um choro como tema. O choro acabou. Foi substituído pelo rap.
Há um vírus novo o ar: o Brasilheca. Ele transforma tudo que é bom em merreca.
Exemplo: você está entre a imagem do buzanfã da Tiazinha na tevê e a voz do Cartola no aparelho de som. Se escolher a primeira, a Brasilheca pegou você.
Alguns pretensiosos julgam que podem “fazer releituras” da obra de Cartola, em nome do progresso. Cito Stravinsky, em sua Poética Musical: “os mestres… são como poderosos faróis, para usar a expressão de Baudelaire, a cuja luz e calor desenvolve-se uma soma de tendências que serão partilhadas pela maioria de seus sucessores e que contribuem para formar a parcela de tradições que geram uma cultura. Esses grandes faróis… promovem a continuidade que dá sentido legítimo e verdadeiro a uma palavra que já se abusou muito, ao tipo de evolução que já foi reverenciada como uma deusa – deusa que acabou se revelando uma ilusão, seja dito de passagem, e tendo dado nascimento a um pequeno mito bastardo que muito se lhe assemelha, e que tem sido chamado de Progresso…”.
Quando a conversa é sobre samba, nada melhor que ouvir os amigos. Rildo Hora, o produtor de samba mais respeitado no pedaço, aluno querido do maestro Guerra Peixe, grande músico, me disse:
– O Cartola foi a melhor harmonia que já conheci dentro do samba. No violão, a mão esquerda da inteligência (só os brilhantes têm). A mão direita para escrever poesia – a lápis. Era muito positivo, falava o que pensava. Pontual. Marcava às 8h da manhã “pra ouvir o que é samba bom”. Assim foi comigo. Cheguei no morro às 8 em ponto, e lá estava ele, tomando conhaque Dreher. Cantou, ainda inédita, “As Rosas não Falam”.
Sobre Cartola, garante o compositor Moacyr Luz:
– Na minha juventude, de tanto ouvir Gershwin, Monk e Cole Porter, quando encontrei a música de Cartola, o susto foi maior. O intuitivo de Cartola, aliado ao conhecimento musical que também surpreendeu Villa-Lobos, é o que me comove: escuto Cartola como lição de casa, pra aprender, pra acreditar na música brasileira.
Nei Lopes, disfarçando seu imenso coração com uma crueza que encantaria nosso retratado, pondera:
– O Cartola eu conheci – de longe, em 1965, e um pouco mais de perto no final dos anos 70 – não era o mesmo Cartola componente do Bloco dos Arengueiros, biriteiro, batuqueiro, fundador da Estação Primeira de Mangueira, discriminado como “sambista de morro”, ao lado de Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, entre outros – não obstante ter chegado ao meio radiofônico, através de parcerias e interpretações como as de Noel Rosa e Francisco Alves, no início dos anos 30. O Cartola, então, que eu conheci não foi um sambista malandreado como Padeirinho, nem um porrista genial como Geraldo Babão, nem um militante negro como Candeia. Foi um artista refinado, elegante, compositor de sambas-canções antológicos como “As Rosas Não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Acontece”, etc. Gozando, enfim, até os 72 anos, dos merecidos frutos de uma ascensão social modesta, sim, mas altamente significativa.
Dos mais destacados músicos de sua geração, Jayme Vignolli, jovem líder do Água de Moringa, chama atenção para a harmonia em Cartola:
– Cartola é artesão requintado. O tratamento melódico de suas canções é notável. A melodia pode estar em constante movimento, como em “Autonomia” ao cantar: “Se eu tivesse autonomia / Se eu pudesse gritaria não vou, não quero” ou mais parada como em “Tempos Idos”, quando insiste praticamente na mesma nota cantando: “Consegui penetrar no Municipal / Depois de percorrer todo o Universo”, talvez o momento mais expressivo desse samba. Tudo no lugar e momento certos. Em “Acontece”, samba-canção antológico, não é diferente. A melodia se inicia em uma nota de tensão e segue com a tradicional fluência. Nesta mesma música Cartola demonstra ainda seu extremo bom gosto para o emprego da harmonia. Modula de uma tonalidade a outra distante e volta à tonalidade original com invejável naturalidade (Acontece que já não sei mais amar / Vai chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso acontece) parecendo que não modulou. Todas essas técnicas de elaboração (formal, melódica e harmônica) costumamos estudar nas Academias, Conservatórios e Escolas de Música por onde certamente o nosso nonagenário não passou e não precisou passar. Cartola é aquele peladeiro que de fato “brinca nas onze” e só faz golaço.
Nelson Rodrigues gozava os homens medíocres que se tornavam contínuos de si mesmo. Hoje, os neoliberais são locadores de si mesmos. No maremoto de oportunismo desesperado, há compositores que são divulgadores de si mesmos. Não é o caso de Cartola, de Nelson Cavaquinho, de Dorival Caymmi. Todos eles ouviram , em diferentes épocas de suas vidas, que “não estavam fazendo mais nada”. Os motivos, segundo os falastrões, variavam da preguiça à garrafa. Besteira. Eles sempre viveram em permanente estado de composição. Há a Marina que todos conhecem, provavelmente irmã de criação da Divina Dama do Cartola ou daquela outra mulher que foi um grande amor antes da Dona Zica. Pra nós, ouvintes e admiradores, essas músicas estão prontas, ficam em nossa memória afetiva como foram feitas. Mas, em Caymmi, Marina permanece mudando, assim como as musas de Cartola viveram enquanto ele viveu. O público, que morde-e-sopra aqueles a quem ama, só reconhece o compositor de violão na mão, de cotoco de lápis mordido garatujando no papel de embrulho. Mas cada composição tem um período pra nascer, de sofrimento, desassossego, porres – com esse é o oitavo butequim. Depois são gravadas, vão à luta, mas no coração incestuoso daqueles que pariram as crias-amantes elas pintam a boca, traem, contraem doenças e rugas – e são sempre belas, ainda que de um jeito meio mórbido. Só morrem com a gente.
O bacana é que o compositor, arauto e profeta da horda humana, não morre de todo e suas musas acabam aparecendo nos bares, nas horas de solidão, pra vampirisar benignamente o amigo ouvinte. Ao contrário do que pensam (e escrevem…) alguns basbaques, Cartola não morreu, Elis não morre – o tempo se rói com inveja deles.
Dizem que o samba está vivendo um momento complicado. Qual samba? O verdadeiro? O samba que bebeu em Cartola? Esse está redondo e formoso nas vozes de Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila, Monarco, Wilson das Neves (todo letrado por Paulinho Pinheiro), Sombrinha e Arlindo Cruz. CDs novos e diversos atestam sua força, dos Demônios da Garoa a Noca da Portela.
Canta o também mangueirense Nelson Sargento “samba agoniza mas não morre” porque, completa Cartola, “surge outro compositor”, como Dudu Nobre, “com o mesmo sangue nas veias”.
Por tudo isso, e apesar do boi-com-abóbora estar nas alturas, mais do que nunca é preciso tirar o chapéu pra Cartola.
Aldir Blanc
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SÃO JOÃO NA PANDEMIA
Em tempos de pandemia, convenhamos, festa junina é um troço tão distante quanto civilidade no Palácio do Planalto ocupado por Jair Bolsonaro. É utopia em estado bruto, sonho impossível. Porém, ai, porém (apud Paulinho da Viola), eu vivi o impossível. Explico, não sem antes um pequeno arremesso em direção ao passado.
Era 10 de outubro de 2017. Eu estava trabalhando quando me chega uma mensagem no celular – WhatsApp. Era um vídeo enviado pela Morena. Ela, sozinha, numa espécie de filme-selfie, dançava “São João, Xangô menino” cantado por Maria Bethânia. Logo em seguida, uma mensagem curta dizia algo como “eu tenho certeza de que estou grávida”. Chorei, bem me lembro. Até porque poucas vezes a vi tão linda quanto naquele vídeo, os olhos postos como luz primitiva, uma serenidade que eu desconhecia, a mão livre afagando a barriga, o ventre, o por vir.
O exame feito poucos dias depois confirmou: grávida.
Julho de 2020.
Leonel tem pouco mais de 2 anos, estamos em meio à pandemia, em isolamento social, todas as tensões tensionadas, a barra pesando de um jeito que nem sei, a cabeça a mil, é sábado e eu preciso de umas horas pra organizar contas, papéis, me tranco no quarto e Morena e Leonel estão na sala com Ana Cláudia e Rodrigo, a cunhada e o sobrinho, e eu ouço os burburinhos, os gritos, a farra, e eu preciso de sossego ou não termino nunca, até que a porta se abre e ela me pede que eu faça pipoca. Pipoca? Pipoca.
Saio do quarto, tomo a direção da cozinha, faço a pipoca e volto pra função sem olhos de ver, sem ouvidos de ouvir, até que se passa mais meia-hora, ouço a porta bater, é ela de novo com ele no colo.
– Vem, vai começar.
Eu vi.
Bandeirinhas sobre a mesa cruzavam a sala. Pipoca, queijadinha, pão de queijo, cachorro-quente, bolo de fubá e paçoca. Leonel de chapéu de palha, bigode feito a lápis, Morena à caráter, Gonzagão em alto volume e eu fui arremessado pra bem longe, Campo Grande, Clube 34, fogueira, balões cruzando os céus, e eles dois dançavam abraçados, os bracinhos dele em volta do pescoço dela, e o pescoço dela era a barra da nuca nua, e tocou “São João, Xangô Menino”, e eu tive vontade de dizer ao piá que aquilo tudo era mágica – não disse, mas era.
Fogos de artifício espocavam, eu ouvia o estalar das toras de madeira da fogueira que ardia no meio da sala, e havia os cheiros, o cheiro de milho, o cheiro de pólvora, de amendoim, de querosene, e aquele moleque não sabia, ou sabia?, que aquele fogo que ardia tinha nome.
As imagens se sobrepunham: Morena e ele dançando, Morena dançando sozinha, suas mãos em torno do corpinho dele, uma das mãos no celular e a outra acarinhando a própria barriga, Bethânia, e ele pousa a cabecinha em seu ombro, ele a beija, o bigode borra, e eu choro por dentro porque as dores do mundo têm me impedido de qualquer outra coisa que não tentar dar conta de todas elas.
Um dia hei de contar a ele que ela fez São João dentro de casa por amor à vida, por amor a ele, por amor à festa – e que a festa foi tão linda quanto eram as festas em Campo Grande quando eu tinha sua idade.
Quero ser sempre o menino, Xangô.
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A MORTE E AS MORTES COM BLANC
Há oito dias que o ar está ainda mais irrespirável no Brasil. Há oito dias cravou-se em mim uma certeza de forma absoluta: meu celular nunca mais vai tocar com o nome Aldir Blanc piscando na tela, o que acontecia diariamente, praticamente todos os dias, desde 1995. Conheci Aldir, de ser apresentado, em 1994. Mas foi a partir do ano seguinte, 1995, que passei a receber ligações diretamente de seu bunker, na rua Garibaldi, a última delas no dia 08 de abril desse inacreditável 2020.
Há oito dias que penso em escrever o que escrevo agora – até mesmo como uma forma de aliviar quem tanto maldisse as condições de sua morte, as condições de sua despedida (que não houve, salvo para a mulher, duas das filhas e uma das netas), a falta de homenagens e que tais. Houve, é verdade, o inesquecível gurufim virtual promovido pela turma do Bip Bip, capitaneado pelo Prata, mas sem o corpo presente, condição de um gurufim de verdade.
E lembrei-me, enquanto pensava exatamente no que escrever, de dois momentos que me marcaram muito, talhados por ele, pensados por ele, o Bardo da Muda.
Estamos em 2002.
Toca meu telefone logo cedo, e é o Aldir:
– Edu, você tem algum amigo médico a quem possa pedir um troço, certo de que ele não te diria não? Tem que ser médico, preciso desse cara todo de branco, ainda hoje pra…
– Serve dentista? Tenho um amigo que jamais me negaria um pedido.
Resumo da ópera.
Pouco antes das cinco da tarde eu e Vidal, meu amigo mais antigo, ele todo de branco, estávamos bebendo Jack Daniel´s com o Aldir em seu escritório. Uma garrafa inteira depois tomamos a direção da Maia Lacerda. Aldir foi, do banco de trás – eu dirigindo, Vidal de carona -, repassando os detalhes com o Vidal.
Tomamos uma cerveja no botequim ao lado do edifício onde viviam dona Helena e Ceceu Rico, pais do Blanc.
Subimos.
Ceceu abriu a porta tenso. Aldir apresentou o médico:
– Doutor Vidal, uma sumidade.
Tomamos o rumo do quarto do casal.
Vidal examinou dona Helena, fez festinha em seu joelho (seguindo à risca o roteiro blanquiano), ergueu-se, pôs as mãos no ombros do Ceceu e disse o texto:
– Dona Helena está ótima, seu Alceu, ótima!
Saímos tendo deixado Ceceu aliviado e dona Helena com a expressão menos carregada, ela que morreria no dia seguinte.
Aldir ligou pra me dar a notícia, me mandando (de novo) agradecer profundamente ao Vidal por conta da última noite da mãe com alguma dose de esperança, que ele atribuía ao prognóstico dado pelo Vidal depois de muito uísque e cerveja.
Estamos em 2015.
Durante o mês de maio fui alguma vezes ao Hospital da Beneficência Portuguesa, na Glória, pra visitar o Ceceu – sempre a pedido do Aldir.
Até que acordei, no dia primeiro de junho, com um telefonema dele:
– Edu? Meu pai morreu.
Eu ainda começava a lamentar quando ele emendou:
– Mas um papa-defunto seqüestrou o corpo.
– Oi?!
– É, tá levando meu pai pra Belford Roxo pra dar banho e o cacete, pra só enterrar amanhã, depois do velório. Nem fodendo, Edu! Quero enterrar meu pai hoje, sem velório, sem missa, sem porra nenhuma!
Inteire-me rapidamente do ocorrido e tratei de traçar um plano pra agilizar o enterro praquele mesmo dia. Peguei com a Mary o telefone da funerária que, autorizada por ela, levava Ceceu pra Belfort Roxo com tudo acertado pro velório e enterro no dia seguinte. Liguei pra funerária, e Aldir me ligando sem parar pra saber de tudo. A funerária ligou pro celular do motorista que levava Ceceu pros preparativos. O motorista me ligou. Acertamos preço pra que ele desse meia-volta e tomasse o rumo do cemitério em Botafogo. Cheguei cedo no São João Batista, onde fica o jazigo da família e obtive sinal verde pro enterro no mesmo dia às quatro da tarde. Fui dando as notícias ao Aldir, que vibrava:
– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!
Pouco depois das três chegou o corpo.
E pouco antes das quatro, Mello Menezes, Mary, filhas, netas, Maneca e ele, Aldir – com um sorriso de canto de boca que não esqueço.
Aldir carregava um isopor cheio de gelo e cerveja. Estendeu-me uma, deu-me um puta abraço, deu de se despedir do pai, ali mesmo, na entrada do cemitério, apontava pra mim e repetia:
– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!
De 2015 em diante, muitas vezes – muitas vezes! – Aldir fazia a blague:
– Edu, quando eu morrer quero que você providencie meu enterro exatamente como foi o do meu pai.
Eu ria, mandava ele à merda, e dizia que estava ali um pedido impossível de atender. Que ele era Aldir Blanc, que quando chegasse o dia, que haveria de demorar muito, o Rio de Janeiro e o Brasil promoveriam uma roda de samba de escol em cada esquina. Os bares ficariam cheios, os camelôs fariam a festa, as baianas venderiam pastel como nunca dantes e faltaria gato pra tanto churrasco. Falanges e mais falanges baixariam nas porta-bandeiras e o furdunço não teria hora pra acabar. Ríamos sempre, mas ele sempre voltava ao assunto.
– Você se vira, mas nem fodendo que eu quero velório!
Aldir era bruxo.
Letrou a morte da mãe.
Letrou a morte do pai.
Escreveu o roteiro de seu encantamento.
Despediu-se como quis e eu não pude nem fazer um último carinho naquela testa. Filho da puta!
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DO DOSADOR
- Luiz Antonio Simas, meu amigo há mais de 10 anos, meu irmão, meu compadre e o homem que cuida de mim com a competência de sacerdote mais-velho, é um tímido e um modesto, embora os movimentos em torno dele façam parecer o contrário, razão pela qual não viria (e não virá) a público dizer o que eu disse a ele, a pedidos. Aldir Blanc, um de meus orixás vivos, com quem falo com freqüência (os assuntos vão do futebol à política internacional, dos livros à música, das mulheres aos escrotos da vida pública), mandou-me e-mail e pediu que repassasse o recado ao Simas, o que fiz prontamente. Eis o e-mail do Bardo da Muda: “Viu esse? Por favor, mande um tremendo abraço pro Simas. Ninguém está escrevendo como ele. Bj, Aldir.”. Referia-se, o Aldir, ao texto Brasil, um tremendo sucesso, publicado pelo Simas no Facebook. O portentoso texto – brilhante! – pode ser lido aqui. Era o que eu queria lhes dizer;
- Ainda sobre Luiz Antonio Simas (ele, se quiser, que confirme): há mais de 10 anos, logo que eu o conheci, ainda não éramos íntimos, eu ainda não tinha recebido a honraria de ser nomeado padrinho-de-rua do seu Benjamin, disse a ele e à minha comadre, Candida: “Luiz Antonio Simas, com as proporções e as individualidades devidas e preservadas [tenho horror dessa coisa de sucessor, substituto e outros bichos], vai ser o Suassuna do Sudeste. Vai correr Brasil, de camisolão, cantando e encantando toda a gente que com ele esbarrar.”. Quando Sérgio Cabral (o pai, por favor) apresentou Aldir Blanc e João Bosco em 1972 na série Disco de Bolso, d´O Pasquim, disse algo assim: “Quando o Brasil inteiro reconhecer a genialidade de Bosco e Blanc como a maior dupla de parceiros da música brasileira quero esse mérito, o de ter dito primeiro.”. Cito de cabeça, mas foi algo assim. Com o Simas, podem apostar, vou querer o mesmo mérito;
- Eis que tem início, hoje, a Semana Santa. Hoje, a Missa do Lava-Pés. Amanhã, a Procissão do Senhor Morto, no Sábado de Aleluia a missa do Fogo Pascal, e no domingo de Páscoa serei um sobrevivente renascido depois da Quaresma, 40 longos dias de holocausto. Não sou católico, quem me acompanha sabe. Mas mora em mim, eternizada, as Semanas Santas da minha infância que, com a graça dos deuses, foi uma zorra na matéria: minha bisavó e minha tia Hidinha, católicas fervorosas, cumpriam a Quaresma, vestiam preto na Sexta-Feira Santa, a casa de meus avós (com quem as duas moravam) era um silêncio agudíssimo em respeito à data. Meu avô dizia-se católico, respeitava o silêncio das duas mas não me recordo dele tão envolvido com a data. Vovó, por sua vez, espírita fanática, tinha certa dó de ver a mãe e a tia ainda tão presas aos rituais da Santa Igreja Católica. Meu tio Carlos Henrique, irmão de vovó, também respeitava a liturgia da mãe e da tia mas gostava mesmo era da umbanda, vestia branco às sextas-feiras (incluindo a Sexta-Feira Santa, o que gerava leve reprimendas de minha bisavó consubstanciadas num balançar de cabeça com os olhos fechados), recebia o Caboclo Tupiara com quem eu trocava altos papos, meu pai depois deu de ser cavalo do Caboclo Tupinambá, minha avó não dispensava um passe do caboclo – qualquer um deles – com um dos livros do Kardec debaixo do braço, meu avô não dizia nada (era um calado) mas fazia o sinal de cruz sempre que passava por uma igreja. Ah, sim, a Penha, que trabalhava na casa de meus avós, tinha um cabelo que ia até a altura dos joelhos e é a primeira e mais remota lembrança de tenho de uma pentecostal fanática;
- Isso pra não falar da banda paterna. Avós judeus. Minha avó freqüentava, escondida de meu avô, um centro espírita na Praça da Bandeira (moravam na Tijuca). O Clube Monte Sinai era quase que o playground de minha casa, o que significa dizer que a imensa maioria dos meus amigos de infância era judia, que fui a dezenas de Bar-Mitzva em praticamente todas as sinagogas da cidade (o que fez com que, até hoje, eu recite trechos da Torá num ídiche de causar inveja em israelense nativo) e sempre com aquele drama que me acompanha, de certa forma, até hoje: “Eduardo Goldenberg? Judeu, né?”. Daí eu conto toda a ladainha numa tentativa que não cessa de fazer com que eu mesmo compreenda quem sou e que fruto deu esse caldo todo, uma vez que eu me comovo feito o diabo na Semana Santa, choro às escâncaras no Círio de Nazaré, bato cabeça pra Ogum, meu pai, faço ebó quando Ifá manda, converso com minha avó à noite, rezo de mãos dadas com a Morena e vou assim, por aí, eternamente assustado e assombrado como o menino de calças curtas e camisa listrada que renega meus 48 anos de idade.
- Até.
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O VOLUNTARISMO
Ontem eu almoçava com um queridíssimo amigo na Leiteria Mineira, uma espécie de refeitório de clínica geriátrica por conta da idade média dos freqüentadores e da ausência absoluta de sal na comida, deliciosa por sinal, e enquanto comíamos, ele foi de língua e eu de estrogonofe, conversávamos em tom de lamento sobre a mediocridade que assola o planeta de forma virulenta. Ele, que é de São Paulo e estava por aqui de passagem para arejar a cabeça – a expressão é sua – deu de se queixar do voluntarismo que grassa nas chamadas redes sociais, no Facebook precipuamente. Foi ele começar a falar pare que eu, excitadíssimo, com tudo concordasse. E ficamos, ali, divagando sobre o que temos visto, lido e ouvido, tendo sempre os voluntariosos como protagonistas.
Tentamos desenhar um esquema em busca de uma explicação para tanto voluntarismo e para esse fenômeno que dá ao idiota (apud Nelson Rodrigues) a dimensão de um gênio. Lembramos do reacionário, do genial dramaturgo, que em 1968 lançou a blague que hoje se verifica a olhos vistos:
“De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos ´melhores´. Para um ´gênio´, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.”
Eis que o Facebook é, definitivamente, o caixote azul no qual sobem, alguns várias vezes ao dia, diversos idiotas testando seu poder numérico. E um idiota curte o que o outro idiota escreveu. Um terceiro idiota toma coragem, vê-se refletido na tela diante de si, e ri – “kkkkk” – expressando sua concordância num relinche cibernético.
Um quarto idiota decide “fazer um vídeo ao vivo” – ferramenta que o caixote azul oferece – e começa (notem que quase sempre começa assim): “Oi, gente, eu resolvi fazer esse vídeo…”, e dá de falar as coisas mais sem importância, mostrar sua entendiante rotina para uma platéia de idiotas, e a coisa vai tomando um vulto, uma proporção, num preocupante fenômeno que é efetivamente assustador.
Vai daí que esse coletivo de idiotas passa, então, a produzir uma massa de verdades absolutamente ridículas, pífias, que são replicadas, multiplicadas, encorajando outros idiotas pelo mundo afora e que passam, por conta dessa coragem que vão ganhando (lembrem-se, “em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão”), a patrulhar quem está quieto no seu canto.
Falamos, é claro, das mais recentes patrulhas que pululam por aí: não se pode mais falar a palavra “mulata” sem que alguém se aproxime com o insuportável ar de gênio trazendo debaixo do braço o argumento de que mulata remete à mula, que mulata é isso, que mulata é aquilo e outros bichos. Não se pode mais cantar determinadas marchinhas de carnaval sem que alguém quique diante de você apontando o dedo na sua cara: essa é machista, essa é homofóbica, essa é sexista, essa estimula a violência, essa é assim, essa é assado e outros bichos. A mais recente onda de voluntarismo chegou pra dizer quem pode e quem não pode usar turbante. Haja, haja, haja!
Está muito difícil – e vai piorar.
Volto ao tema em brevíssimo.
Até.
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BLANC 70 ANOS
Aldir Blanc escreveu no prefácio de meu livro, publicado em 2009, pela Casa Jorge Editoral:
“É sempre difícil apresentar o livro de um amigo-irmão.
Os detratores partirão para a fácil lenga-lenga acusatória de excesso de babilaques e lantejoulas. Bom, quebrarão a cara e roerão as unhas de ódio. O presente livro, “Meu Lar é o Botequim”, de Eduardo Goldenberg, fala por si mesmo.
Taqui nesta mesma mesa o Fausto Wolff que não me deixa mentir.
Eduardo Goldenberg é carioca dos ovos, carioca da bunda, da Zona Norte, de blocos e bares, de becos e esquinas, carioca dos países baixos e mostra sua vocação pra disputar, aguerridamente, causas perdidas, sua ojeriza aos mamalufs soltos, aos garotodutos propinados, às Rosas de Maia que destroem o Rio de Janeiro, à lama que envolve as bases de sustentação política do país. No grito contra a escrotidão dos investigados e investigadores das CPIdiotas, daqueles que mantêm a velha ordem dos faraós embalsamados, Edu nasceu dissidente até de si mesmo. Não perdoa hipocrisia e atitudes politicamente corretas, estejam camufladas no futebol, no feminismo, nas estruturas neoverdes ambientoscas, na enxurrada de páginas estruturo-linguarudas de suplementos culturais que tomaram o freio das vã-guardas nos dentes podres.
É triste constatar que não há espaço na imprensa escrita para as broncas de Nei Lopes, Chico Paula Freitas, Ilmar Carvalho, Eduardo Goldenberg…
Mas, felizmente, aqui está o livro, última cidadela da civilização: papo em torno do limão da casa, do caldinho de feijão, dos torresmos e moelas, das porções de queijo ou de salaminho; saudade dos amigos de outras épocas, e copo; muito suor e gelo; mulheres e, eventualmente, porrada.
Por tudo isso, com todo meu afeto, um poema pro Edu.
Pós-Intróito
Estamos passagem de aqui
onde a eternidade é aragem…
Daí, essas garrafas
no fundo das mensagens.”
Na véspera do 02 de setembro de 2016, dia em que o Bardo da Muda completa 70 anos, eu não seria eu se não viesse aqui, ao balcão virtual do buteco, render homenagens a ele. Mais que um amigo-irmão, Aldir, a quem conheço desde 1994 – lá se vão 22 anos! – é um dos Orixás pra quem bato cabeça. Meu confessor, meu confidente, um pouco meu pai, às vezes meu filho, o Excêntrico Sr. Normal (como bem disse Álvaro Costa e Silva, o Marechal, aqui) com quem, invariavelmente, troco telefonemas que podem durar segundos ou um par de horas, é, ainda, meu ídolo. E por isso, e por tudo isso, vê-lo fazendo 70 anos me comove feito o diabo.
A foto abaixo, de 1998, no Bar Lagoa (eu entre Aldir e Tostão), é hoje – me perdoem o lugar-comum – apenas um retrato na parede. Retrato de um tempo em que o Aldir, para sorte da cidade, ainda saía por aí, à noite, rasgando as madrugadas até que confundíssemos todos o alvorecer com o anoitecer e o anoitecer com o alvorecer na busca desesperada de reviver a juventude. Tive a sorte de, inúmeras vezes, colocar ao lado dele, dentro do mesmo barco, realidade e poesia e rir da nossa própria agonia. Bebi muito dessa fonte em busca desse segredo.
Ainda bem moleque, levado pelas mãos de um professor de química do colégio, conheci (de longe, prestando sempre muita atenção a tudo…) o Aldir no Caras & Bocas, na Tijuca. Eu era, ali, o fã diante do ídolo. A vida, que nos prega surpresas o tempo todo, e eu agradeço diariamente por esse prêmio, levou-me pra mais perto do Aldir. Marco Aurélio, com quem Aldir fundaria a Alma Produções (AL de Aldir e MA de Marco Aurélio) – e quanta saudade eu tenho do Marco Aurélio… – era o namorado da filha de uma vizinha de meus pais. Foi, confesso, amor à primeira vista. Ele, que era Marco Aurélio Braga Nery (e eu sou Eduardo Braga Goldenberg), só me chamava de “meu irmão Braga”. E um dia me disse com seu inseparável cigarro de cravo entre os dedos:
– Você precisa conhecer meu irmão, Aldir Blanc.
Lembro-me como se fosse hoje do dia em que, pela primeira vez, fui à sua casa, seu bunker, sua cidadela, no edifício da rua Garibaldi onde morava, no primeiro andar, o Moacyr Luz. Cercado por milhares de livros, recebendo os amigos em casa quando isso ainda era rotineiro, Aldir era, ali, o gênio que eu vira, moleque ainda, no Caras & Bocas. E esse convívio, como não podia deixar de ser, rendeu-me as melhores histórias, as maiores maluquices, os maiores perrengues, as melhores festas, e, eventualmente, porrada. Tornei-me seu advogado, derrotamos na Justiça um canalha que pretendia receber indenização por conta de uma verdade dita pelo Aldir numa entrevista, e foi, lhes garanto, a mais divertida audiência que já fiz em mais de 25 anos de carreira. Dentro da sala da audiência, abraçado à indefectível bolsa marrom, nervoso, dirigiu-se à Juíza:
– Posso fumar?
E fumou.
Fui sócio de um bar, entre 2000 e 2005, numa esquina a poucos metros da casa número 257 da rua dos Artistas. Aldir batia ponto sempre que podia. Vivemos, ali, momentos memoráveis, como esse – vídeo aqui – em que o ainda novato Moyseis Marques (hoje seu parceiro), acompanhado pelo cavaquinho do Gabriel Cavalcante, pediu pra cantar Imperial (de Aldir e Wilson das Neves) pro Aldir ouvir. Ou como esse, Aldir cantando samba-enredo do Salgueiro acompanhado pelo sete cordas do Pratinha no mesmo dia em que filmou, dentro do bar, as cenas para o filme Praça Saenz Peña, em que Aldir fazia o papel de Aldir (aqui).
Aldir foi enredo do Segura Pra Não Cair, bloco que criamos ali mesmo, dentro do bar. E desfilou, sem corda alguma que atrapalhasse nosso carnaval.
E segue, aos 70 anos, desfilando, ainda que miudinho, mais recluso que nunca, sua genialidade, sua generosidade, sua imensa grandeza que transborda e inunda o Brasil, hoje maculado por um golpe branco que fere a democracia que tem como hino (o Hino da Anistia!) sua obra-prima, O Bêbado e a Equilibrista. Sobre a imensa obra do Aldir, já me debrucei aqui.
O que eu queria mesmo era agradecer, pública e escancaradamente, eu que estou a 3 anos de fazer Bodas de Sangue, a ele por tudo o que ele é, por tudo o que representou e representa na minha vida, por tudo o que representa, ele e sua obra, para o Brasil. Aldir é gênio da raça. O Ourives do Palavreado, como disse Dorival Caymmi. É bom de se ouvir e de se aldir, disse Chico Buarque. É um brasileiro máximo. Uma espécie em extinção. Um homem que sempre, e desde sempre, esteve do lado certo do terreno.
A última vez em que estivemos juntos foi há pouco: eu e a Morena, chegando de Portugal, fomos levar a ele alguns livros que ele me encomendara às vésperas da viagem. Era pra ser coisa rápida – mas com a graça de todos os deuses, não foi. Passamos com ele um bom tempo, sem birita, só jogando conversa fora e ouvindo aquele homem falar – e ele quando fala, meus poucos mas fiéis leitores, há que se fazer silêncio.
Amanhã, 02 de setembro, deveria ser decretado feriado nacional. Porque quando nasceu o filho do seu Alceu e da dona Helena, e é ele mesmo que conta, soprou um vento que traduzia:
– Vai, Aldir, ser Blanc na vida.
Somos homens e mulheres de sorte. Apesar de vivermos num Brasil hoje ferido por uma corja de filhos da puta, somos um Brasil que tem entre seus filhos, e fazendo 70 anos, um homem como ele.
Saravá, Aldir. Meu amor e meu respeito, sempre.
Até.
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A 47ª VOLTA DO PONTEIRO AMANHÃ
Eu estava no domingo passado na esquina do Bar do Chico, depois de ir à feira, e à mesa comigo, o Felipinho e a Renata. Saltou de um táxi, ali mesmo na esquina, uma senhora de – o quê?! – uns 80 anos. Eu disse aos dois:
– Há quantos anos eu não vejo uma anágua!
E bastou eu dizer anágua para que eu sofresse, imediatamente, súbito e arrebatador arremeso em direção ao passado. Lembrei-me, no ato, que estava tendo início a semana do meu 47º aniversário, e me permitam um sonoro puta que pariu diante do número antes de prossseguir. Eu já sou, há muitos anos, um homem em permanente estado de arremesso ao passado, que dirá nos dias em que se aproxima o 27 de abril. Há anos que dou-me o dia de presente, não trabalho. Percorro, nesse dia, as ruas da minha infância numa tentativa, vá lá, de manter viva em mim a chama do menino que fui, sempre muito assombrado (para o bem e para o mal) com tudo o que vi, com o que vivi, com o que comi, com o que bebi, com o que ganhei e com o que perdi. Segundos após pronunciar a palavra anágua, minha tia Idinha, que usava anáguas, deu de afagar meus cabelos enquanto eu conversava com os dois, (mal) disfarçando a emoção que me tomava a alma e o coração. É bem verdade que, aos 46 – quase 47 – um comprimido de Pressat, um de Natrilix SR e uma dose diária de 2mg de Olcadil ajudam a domá-los, a alma e o coração, quase-incorrigíveis. Eu disse quase.
47 anos foram suficientes pra que um incorrigível como eu já não abra mais a boca com tanto orgulho pra dizer: incorrigível. Já não tenho mais a tia Idinha, minha bisavó eu não vejo há exatos 35 anos (e eu tenho, até hoje, uma saudade brutal da dona Mathilde…), meus avós, todos, são fantasmas que estarão comigo amanhã: Oizer, Milton, Elisa e Mathilde, eles e seus brioches de presunto e queijo dos lanches de domingo, lutas de telecatch, doses intermináveis de Teacher´s, maços de Hollywood e de Minister, muito carteado, os olhos azuis do velho Oizer transmitindo um carinho que ele jamais soube expressar, o silêncio permanente do velho Milton, a rudeza da minha vó Elisa em contraste com a doçura cheirosa de minha avó Mathilde, a quem não vejo há quase 6 anos. Irei amanhã, é certo, passar em frente à vila 84 da São Francisco Xavier pra ouvir, do portão da rua, meus próprios gritos de algazarra junto com os gritos do Ricardo, do Renato e do Aurélio, do Augusto e do Camilo, do Silvio e da Pimpa, da Martinha, pra ouvir o ronco do motor do TL, táxi do seu Mário, os esporros intermináveis da dona Dalas e do seu Pereira, e meu avô Milton ameaçando pegar o revólver pra resolver tudo com tiros pro alto. Seu Bizantino, o velho negro dono de um Corcel, há de estar por lá. Vou em busca da vila que não mais existe entre a Heitor Beltrão e a Professor Gabizo, onde moravam meus avós maternos quando nasci. Mas ai dos que duvidarem de mim: ela existe, do mesmo jeito que eu conheci, em mim, dentro de mim – e ainda que apenas para mim.
Já não tenho um de meus irmãos, já perdi três cachorros – Zica, Pimentinha e o Toquinho – mas é o Pepperoni que os receberá amanhã pela manhã, latindo pra quem souber decifrar: pobres daqueles que escolhem morrer em vida. Já perdi uma mulher a quem não vejo há quase 5 anos, mas não me vai causar estranheza se ela passar por mim, n´alguma altura do dia, pra me desejar felicidades. Quantos amigos, meu Deus, eu já enterrei. Uns porque morreram, outros tantos porque a vida se encarregou de desviá-los de mim. Sigo confiando no que cresci ouvindo dos mais velhos, das velhas da família (eram tantas!, e usavam anágua e se abanavam com leques imensos), do meu pai e da minha mãe: nasci anunciado por um caboclo que se fez visível, pela primeira vez, diante dos olhos do meu pai na madrugada de 26 para 27 de abril pra desmentir o médico que, na véspera, confirmara meu nascimento para o começo de maio. O caboclo – mais tarde se saberia, Tupinambá – fez que sim pro meu velho: eu nasceria no dia seguinte, 27 de abril. Minha mãe acordou, fez troça com o que considerou sonho ou delírio do velho, ansioso com o primeiro filho, e o mandou pro trabalho, na REDUC, em Duque de Caxias. Lá chegando o velho teve de voltar. O anúncio lhe fora dado tão logo desceu do ônibus da companhia: teu filho está pra nascer! Sigo confiando no caboclo de quem meu pai passou a ser cavalo.
Sigo confiando, ainda que meio desconfiado – talvez a idade faça isso com a gente -, que tenho a proteção constante da caboclada. Iya Sandra, que também não está mais aqui, jogou búzios pra mim em meados de 2007 e me disse: você é filho de Ogum, meu filho, mas quem te sopra nos ouvidos o tempo inteiro é Exu. Meu irmão e meu compadre, Luiz Antonio Simas, confirmou, deu-me seu fio de presente com contas azuis, vermelhas e pretas, e que hoje tem o verde-e-amarelo de Orunmilá, que fiz por merecer. Sigo confiando que tenho a proteção constante dos Orixás, a quem devoto respeito e a quem reverencio sempre que devo fazê-lo.
E tudo o que lhes pode soar como lamento – as perdas, a saudade, o tempo que não volta – não é lamento. Até porque a vida transforma tudo conforme a determinação de quem vive. O velho Simas, quando eu andava no baixio, me ensinou, daquele jeitão dele que só quem o conhece sabe como é, a pilar o pilão devagar, com calma e sem pressa.
E foi sem pressa que cheguei – chegarei, é só amanhã e sou de supertições também – aos 47. De casa nova, ao lado da minha Morena, a única mulher possível e que chegou-se a mim da forma mais improvável do mundo – quem sou eu pra duvidar do dedo dos deuses numa hora dessas?! – no inverno de 2011, prenunciando a primavera que começaria 16 dias depois. A mulher a quem amo carregando nos ombros o peso de 47 anos e nas mãos a esperança de uma vida longa, ao lado dela, e a quem dedico meu dia de amanhã (estou escrevendo pra mim mesmo, ressalto).
Uma olhada rápida pra trás e muito a agradecer: a vida do meu irmão, que depois de um susto do tamanho do mundo, está vivíssimo. A vida da minha mãe, que depois de enfrentar a mais filha da puta das doenças está aí, cada vez mais parecida com a própria mãe, minha avó, e vivíssima. Meu velho pai, teimoso como quem a ele deu a vida, mas aí, vivíssimo. Os melhores amigos do mundo e que não preciso enumerar: cada um deles sabe de sua condição de imprescindível pra mim, eu que jamais poupei-me na hora de declarar o amor que me move. Um grande vira-latas, o Pepperoni, presente de Exu, como decretou o Simas. Um monte de afilhados e afilhadas a quem tenho faltado, bem sei, mas andei ocupado demais me rearrumando.
E de novo, e sobretudo, por ela, Flávia, minha Morena amada, a quem dediquei, cifradamente, Desassossego, em novembro de 2011 – aqui.
Saravá.
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OS COLETIVOS
Hoje, finalmente, cumpro a palavra que empenhei ao Raphael Vidal, o Maluco Fundamental, figura imprescindível para a minha mui amada e leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Escrevi, em 07 de março, aqui, que não há nada mais inviável do que um coletivo. Foi publicar isso e ouvir, daqui, as gargalhadas que vieram rolando do Morro da Conceição, atravessaram a Rio Branco nos trilhos do VLT e vieram até o Castelo: era o Vidal, a confissão é dele, gargalhando às escâncaras diante da minha humílima declaração. Hoje, portanto, debruço-me o palpitante tema dos coletivos.
Os coletivos são, nada mais, nada menos, do que grupelhos dedicados a um tema de interesse comum a todos os seus membros. Explico: Aderbal e Adelaide adoram gastronomia. Gastam seus tempos pesquisando sobre ingredientes, sobre a culinária regional, receitas, essas bossas. Até que um deles – digamos que o Aderbal – diz:
– Vamos montar um coletivo?
E há, nos olhos, na boca e na expressão corporal da Adelaide, uma excitação de primeira noite.
– Vamos! – diz lânguida, a Adelaide, tendo quase um surto de umidade.
Daí Aderbal e Adelaide percebem que estão diante de uma olada e criam, assim, num só diálogo curtíssimo, um coletivo de gastronomia. Passam, dali em diante, a assumir nova postura. Encontram o Setúbal, amigo comum. Diz, o Setúbal:
– Opa! Tudo bom?
– Criamos um coletivo! – como cegos e surdos, não ouvem mais nada, não respondem nada, estão integralmente voltados para o projeto (todo coletivo é, também, um projeto).
Eis que o Setúbal saliva, não esconde a inveja e a cobiça e, ele também excitadíssimo, pergunta como fazer para fazer parte do coletivo. E esse movimento, que não cessa, faz com que em – o quê? – 10, 15 dias, esteja criado (e grande, e cheio de adeptos, seguidores e membros) o coletivo que nasceu do desejo comum de Aderbal e Adelaide.
Vai daí que temos, hoje, coletivos de gastronomia, de artes cênicas (teatro, sobretudo), de fotografia, de cinema, de tudo. E há, em todos os coletivos, um enfado criativo que dá dó. E de mãos dadas com o enfado, uma ira incontida contra tudo o que está, digamos, estabelecido há 10, 20, 50, 100, 1.000 anos. A idéia central dos coletivos é repensar o mundo (todos os coletivos, sem exceção, repensam o mundo sem que se mova uma palha no entorno deles). E repensar o mundo para os membros de um coletivo é, obrigatoriamente, contestar tudo, de tudo discordar, vociferar contra tudo e contra todos. Eu seria capaz, sem medo do erro, de dizer que todos os coletivos juntos formariam uma espécie de país imaginário: têm, os membros de um coletivo, essa intenção (sem que ninguém tenha lhes pedido rigorosamente nada) de destruir as estruturas estabelecidas para reerguê-las sobre pilares mais sólidos (pilares mais sólidos é como pigarro para os velhos na boca desses jovens). Há, nos membros de um coletivo, uma arrogância disfarçada de candura; uma fúria disfarçada de pacifismo; lampejos de genialidade que não são nada além de nada.
Notem que os coletivos promovem debates, reuniões, ciclos, mesas, seminários, congressos, ocupações, atos, manifestos, e toda a assistência desses debates, dessas reuniões, desses ciclos, dessas mesas, desses seminários, desses congressos, dessas ocupações, desses atos e desses manifestos são eles mesmos, que se revezam, esquizofrenicamente, no papel de expositor e de público, de debatedor e de mediador, de artista e de platéia, num movimento inviável e incapaz de produzir qualquer coisa que tenha eficácia ou utilidade para além de suas fronteiras (embora sejam, os coletivos, também contra as fronteiras).
Não sei se fui exatamente claro, Raphael Vidal (é para ele e apenas para ele que estou escrevendo). Prometo voltar ao tema em brevíssimo.
Até.
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O CARNAVAL GLOBOLEZA – UM CRIME
Chega ao fim o Carnaval 2016 e (mais uma vez) a constatação é óbvia e urgente: é preciso que a LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba) – com a imposição de uma medida de força por parte do Governo do Estado e da Prefeitura da Cidade – acabe com o monopólio da Rede Globo para a transmissão dos desfiles das Escolas de Samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro. As razões são muitas e vou tentar elencá-las para que esse meu manifesto, solitário e apenas meu, ganhe cores de coerência e, quem sabe?, vá ganhando adesões ao longo do tempo.
Antes, uma não tão breve digressão, e me valho aqui do auxílio de dois grande amigos que, cada um a seu modo, pensaram junto comigo sobre essa questão, Rodrigo Gava e Fernando Szegeri. O primeiro mandou-me extenso e-mail e o segundo, com a ênfase szegeriana de sempre, deixou seu comentário aqui mesmo.
É preciso ter em mente que essa é a lógica da Rede Globo (e de todas as demais emissoras, sem a mesma força de penetração, angariada e fomentada durante os mais de 20 anos de ditadura no Brasil): a lógica do lucro pelo lucro, tergiversando um serviço público com vista a interesses puramente mercantis. “Como esse interesse é o lucro”, diz Rodrigo Gava, a Rede Globo precisa de “audiência pra ´vender´ o seu produto.”. E sabemos todos como esse produto – o Desfile das Escolas de Samba – é vendido “por uma conivente e inoperante LIESA”. O que a massa quer, o que a audiência quer, é merda – com o perdão da palavra, usada por R. Gava em seu e-mail. Segue ele: “A audiência, a grande audiência, é a do público de shows da vida, de big brothers e de faustões.”. Essa audiência “quer essa merda toda que se faz e se mostra nos ´desfiles´. A outra grande parte é a da geração fast-food, que quer tudo picotado, tudo muito rápido, tudo muito líquido, como o filósofo Bauman tão bem cunhou.”.
Por isso mesmo essa audiência não suporta ficar 80 minutos vendo o cortejo, “repetido e manjado”, passando pela tela da TV. Há que se notar que, há muitos anos, a transmissão da própria Rede Globo era outra, de outro nível, o que demonstra claramente que a Rede Globo sabia, e ainda sabe, apenas não quer mais que seja assim, pois já não há mais espaço para isso dentro da lógica do lucro, transmitir o Carnaval. Assim, a pequena audiência que sobra, de pessoas que gostam e querem ver o Desfile das Escolas de Samba, – e não o show global – não mais importa e nem vem ao caso, como se essa grande representação da cultura brasileira pudesse não vir ao caso. Pior, continua R. Gava, “dão de ombros, apoiado nos grandes interesses em jogo, para depois ainda zombarem: quer ver desfile, vá pra Intendente Magalhães. É só mais um retrato do sequestro da cultura popular.”.
Fernando Szegeri vai ainda mais fundo. Reproduzo seu comentário, que passa a fazer parte deste texto-manifesto:
“Há mais, meu querido irmão. A Rede Globo porta-se como senhora do Brasil. Na verdade, a Globo – que sempre foi corrupta, chapa branca e autoritária, mas ao menos primava por alguma qualidade na produção televisiva – especializou-se de anos para cá em construir um autêntico SIMULACRO DO BRASIL e enfiá-lo goela abaixo da nação. Com esse simulacro caricato, turvo, inverossímil, banal, pobre, destituído de qualquer valor cultural ou estético, a Globo traveste absolutamente tudo o que toca. Assim, o que é vendido para os olhos do pobre telespectador brasileiro não é o nosso futebol, nem o nosso carnaval, nem o nosso samba, nem os nossos butiquins: são sempre meros espantalhos travestidos. Assim também é, como não poderia deixar de ser, com a cobertura jornalística de qualquer coisa, do esporte à política, do cotidiano às artes. NADA, ABSOLUTAMENTE NADA é como aparece pela lente deformante das câmeras globais; como é narrado pelos seus textos grotescos. Quem já pisou alguma vez num butiquim e vê um butiquim retratado numa novela, por exemplo, sabe exatamente do que estou falando. Assim é com todo o mais. Longe, é claro, de se constituir na origem profunda de nossas mazelas, a Globo, no entanto, com a superdifusão de seu simulacro pan-travestidor, é hoje o fator determinante do contumaz e progressivo alheamento da população brasileira de seus reais problemas, de sua real imagem, da compreensão mínima de seus dilemas e, consequentemente, das rédeas de seus destinos.
Voltando ao Carnaval, não são só as escolas de samba padecem de sua ingerência. O Carnaval de rua pelo Brasil afora é reiteradamente estuprado, retalhado, empobrecido, estigmatizado e descaracterizado pela ´cobertura´ petulante, invasiva e desrespeitosa da emissora. Nos meus vagares intermináveis pelas ruas, presenciei nos lugares mais improváveis intervenções dos repórteres e câmeras globais violando os mais sagrados e fundamentais princípios do Carnaval, quais sejam a espontaneidade, o descompromisso, a horizontalidade, a picardia, a sutileza, a singularidade, o saudável anonimato das multidões. Estão sempre à procura de quem se disponha a uma ´performance´ caricata para o consumo imbecilizado em escala planetária. Eu mesmo, participando de espetáculo promovido e contratado pela Prefeitura de São Paulo, recebi ´ordem´ – para qual evidentemente não demos a mínima – de uma fedelha mal saída dos cueiros para que cantasse mais duas músicas, porque ela ia ´entrar ao vivo´. Aí os ´foliões´ criados e embalados nessa cantilena já há umas três gerações, embarcam na onda e acham que aparecer na telinha é o clímax do Carnaval, a chance de ouro de um brasileiro ´comum´ alcançar a suprema glória, fechando-se, destarte, cá como alhures, o ciclo maldito da imbecilização geral da República.”.
Vamos à análise mais pontual do problema, agravadíssimo no Carnaval de 2016.
De cara, dois absurdos inomináveis: por questões de conveniência (a TV preferiu exibir Big Brother Brasil no domingo e na segunda-feira) a Rede Globo deixou de transmitir o desfile de duas escolas gigantes, a Estácio de Sá no domingo e a Unidos de Vila Isabel na segunda-feira. Se a LIESA, os governos e a própria TV vendem o peixe dos desfiles como “o maior espetáculo da Terra”, como é possível simplesmente não transmitir o desfile de duas agremiações que têm torcedores (praticamente todo o bairro do Estácio e o de Vila Isabel) e admiradores em todo o Brasil?
O que leva alguém a vender a exclusividade (eis um dos crimes que a LIESA comete) da transmissão de um evento do porte dos desfiles das Escolas de Samba para uma emissora que, a seu livre alvedrio, decide não transmitir duas das doze agremiações? Mas isso não é tudo.
Durante a transmissão das demais dez Escolas de Samba, o modus operandi da Rede Globo foi o mesmo: os desfiles começavam a ser transmitidos quando as escolas já estavam na avenida há 10, 15, 20 minutos! Dos telespectadores foi sonegado, de todas as Escolas de Samba, um dos momentos mais esperados, o do esquenta, a entrada na avenida, os gritos de guerra. Durante esse tempo, os repórteres escalados pela emissora dos Marinho, todos eles estranhos à matéria (a exceção foi o Milton Cunha, coitado, cercado de beócios por todos os lados), mostravam o sanduíche de mortadela que a dona Iaiá levou pra arquibancada, entrevistavam membros do elenco da Rede Globo, faziam perguntas as mais estúpidas aos componentes famosos deixando de lado a alma das Escolas de Samba, os fundadores, os baluartes, passistas, com seus repórteres invadindo a pista para visivelmente atrapalhar a evolução do espetáculo.
Eu, que tive a sorte de estar na avenida para os desfiles de segunda-feira, só não sofri mais em casa porque assisti ao desfile pela TV (justamente por conta da exclusividade) ouvindo a excelente Rádio Arquibancada (aqui) com narração de Anderson Baltar e comentários de Luiz Antonio Simas e de outras feras no assunto. Mas era doído: enquanto eu ouvia os sambas na íntegra, com som ao vivo direto da avenida entremeado por poucos mas certeiros comentários, geralmente a TV exibia imagens absolutamente desconexas, num estupro do espetáculo, um desrespeito com os amantes dos desfiles (são muitos, são milhões!).
Ao final de cada desfile, dentro de um estúdio montado na Marquês de Sapucaí (o que já é também absurdo), a Rede Globo, então, era mais Rede Globo que nunca: constrangendo componentes das escolas que eram levados à força pra frente das câmeras, entrevistas inúteis, comentários descabidos, um processo de idiotização do telespectador semelhante ao processo que mata, aos poucos, o futebol brasileiro.
É urgente rever essa política. É preciso acabar com o monopólio da Rede Globo e deixar a livre concorrência transmitir os desfiles da Marquês de Sapucaí com suas equipes (que serão seguramente mais competentes que os idiotas da Vênus Platinada), deixando o telespectador fazer sua livre escolha. A LIESA, não muito acostumada ao diálogo, bunker com quem pouca gente tem coragem de mexer sob pena de isso-deixa-para-lá, precisa ao menos sentir a pressão do Poder Público em prol do bem do telespectador, do cidadão, do destinatário final das concessões públicas de rádio e televisão. Há que se acabar com a farra da Rede Globo. Há que se criar uma alternativa para que uma rede de TV possa transmitir o Carnaval para quem ama o Carnaval – com imagens do desfile na íntegra, com comentários (que serão sempre poucos mas pontuais) pertinentes feito por quem entende (e como há gente que manja do assunto por aí…, os já citados Anderson Baltar, Luiz Antonio Simas, Maria Augusta, Fábio Fabato, Alberto Mussa, Aydano Motta, tantos outros), sem firula, sem babaquice, sem idiotices que pretendem fazer do telespectador, perdão pela redundância, um idiota.
O melhor espetáculo da Terra merece. E os aficcionados também.
Até.
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