Desde anteontem que estou para lhes contar sobre as expressões que minha bisavó usava e que tanto marcaram minha infância. Era minha intenção fazê-lo quando comecei a escrever no dia primeiro – aqui – mas fui sendo sugado pelo ciclone da memória e acabei contando a história de meu encontro com Adele Fátima mais de 30 anos depois de tê-la visto, arrebatadora, nas páginas de uma revista Amiga que encontrei na casa de meus avós – quando eu era um menino de calças curtas, camisa de listras e conheci os encantos da quiromania. Ontem, dia de festa no mar – aqui – mais uma vez não consegui. Fui enredado pelos encantos de Janaína e me perdi nas profundezas das emoções que me moldaram. Vamos a elas, hoje. Estou, confesso, excitadíssimo com a possibilidade de lhes contar sobre isso, muito mais – é evidente – por conta do que isso provoca em mim do que pelo simples agrado a cada um dos meus poucos mas féis leitores. Não são expressões, exatamente, mas isso é o que menos importa.
Minha bisavó morava numa vila – isso eu já lhes disse. Morava com meus avós e com sua irmã, tia Idinha. Ela passava – se é ou não a verdade, nada interessa, vale o que tenho em mim – grande parte do dia na janela. Bastava passar uma gostosa (dou-me conta, hoje muito mais, do quanto eram gostosas algumas das moças que iam e vinham) e ela dizia em direção à irmã:
– Lá vem aquela sirigaita.
E eu lhes pergunto: quem ainda usa a palavra “sirigaita”?
Vem a cena à minha mente: minha bisavó e sua irmã usavam leque (ninguém mais usa leque). Podia estar quente, chovendo, um frio dos diabos, lá estavam as duas de rede no cabelo e leque numa das mãos. O leque gerava uma série de códigos que eu ia pescando aos poucos. A situação era grave? Fechava-se o leque num átimo de segundo e dava-se uma pancadinha na palma da outra mão. Fofocavam as duas? O abanar era frenético.
E as refeições?
Vovó tinha uma mesa muito antiga, dessas que têm a possibilidade de serem abertas no meio. De dentro da fenda aberta saltava outro tanto de madeira e a mesa crescia. Pois se havia balbúrdia à mesa – e sempre havia balbúrdia à mesa – vinha o grito:
– Silêncio no tribunal! Silêncio no tribunal!
Acaba de me ocorrer que talvez, por isso, eu tenha seguido a carreira de advogado.
Noutras ocasiões, a blague era diferente:
– Calma no Brasil!
E tia Idinha completava, ensaiadíssima:
– … que a Europa está em guerra!
Minha bisavó não me dava bronca, não me dava esporro: os verbos conjugados eram outros.
– Vou ser obrigada a ralhar contigo!
Ou então:
– Vou te passar um pito, menino!
Eis uma das provas de meu evidente desequilíbrio: estou aqui escrevendo e ouço, com direito a eco, a voz da minha bisavó.
Dona Mathilde, minha bisavó, era torcedora do Botafogo. Mantinha na cozinha de casa um escudo com a estrela solitária desenhada com palitos de fósforo. Era dia de jogo do Botafogo. Se caía num domingo, lá estava também o tio Hique (que recebia o caboclo Tupiara, como lhes contei ontem), botafoguense também. E o jogo era ouvido no radinho de pilha. Gol contra o Botafogo? Ela era implacável:
– Papagaio!
Pois bem: deu-se em mim a guinada do tempo, o arremesso violento em direção ao passado e quero lhes contar uma das mais inacreditáveis histórias envolvendo a família (as expressões de minha bisavó foram apenas o pavimento pra que eu voltasse pra bem longe). Omitirei os nomes, todos trocados. Mas a história é 100% verdadeira e parte do anedotário coletivo dos Monteiro de Barros, dos Montenegro Braga, dos Goldenberg, todos unidos pela mágica da vida.
Angelina tinha uma irmã surda-muda. Ativíssima, ativíssima! Tinha, é verdade, muitos outros irmãos, e como Paulina – a surda-muda – era uma pedra no sapato, vivia sendo arremessada pra lá e pra cá. Passava uma semana na casa de um irmão diferente. Dava-se o rodízio. O troço era sempre assim: chegava na casa de um no domingo à noite e lá ficava até o domingo seguinte. E quando chegava o domingo seguinte era uma festa:
– Graças a Deus! Paulina agora só daqui a um mês e meio!
Pois num certo domingo desembarcou a Paulina na casa de Angelina. O domingo já foi um inferno. Na segunda-feira pela manhã – a casa estava em obras e Angelina não contou com a compreensão de nenhum dos irmãos – “sai pra lá, segura que a batata é tua!” – a surda-muda acordou perto do meio-dia. E acordou, como se diz, com a macaca. “Mmmmmmmmmm” pra cá, “mmmmmmmmmm” pra lá, aqueles gestos que ninguém fazia muita questão de entender e a paciência de Angelina no limite.
Foi quando teve a idéia que reputou brilhante.
Chegou-se pro pintor, um homem de meia-idade, e foi franca, sincera, direta:
– O senhor pode me fazer um favor?
– Pois não, dona Angelina. Pode dizer.
– Será que o senhor se importa de comer a minha irmã? Ela está impossível!
E esfregando as mãos, com os olhos semi-cerrados, completou o assédio:
– Dá um sossega-leão nela, dá? Passa-lhe o rodo! Crava esse pincel nela! – e deu de gargalhar feito uma louca, dando tapinhas no ombro do pobre-diabo.
Seu Onofre, o pintor, não achou má-idéia. Já havia comentado com o eletricista que a surda-muda “dá um caldo”.
Angelina saiu pra almoçar piscando o olho em direção ao seu Onofre:
– Conto com o senhor, hein! E prometo uma gorjeta gorda se o senhor acalmar a Paulina!
Horas depois voltou pra casa.
Seu Onofre, em pé na escada, fez que “sim” com a cabeça. E ela, aflita:
– Cadê ela? Cadê?
Ele apontou pro corredor e disse lixando a parede:
– No quarto. Dormindo. Parece morta.
Lá estava Paulina. Dormia – esse detalhe é importante – com um sorriso nos lábios. Braços abertos, pernas à vontade, e assim ficou até umas sete da noite. Jantou em silêncio, o sorriso fixo nos lábios, como uma máscara. E foi assim até o domingo seguinte, quando foi despachada para a casa de outro irmão.
Vamos ao final da bulha (outra expressão de minha bisavó).
Nove meses depois nasceu um menino saudabilíssimo, vendo, ouvindo e falando.
Investiga daqui, investiga dali, chegou-se à verdade dos fatos.
Paulina hoje mora com Angelina – os irmãos não perdoaram a irmã por conta da insanidade – e com Roberto Carlos, o filho do pintor.
Na escola, em tenra idade, o menino contou, é claro, a história pros amiguinhos de classe (sabem como é criança…).
O duro mesmo é o apelido que ele carrega até hoje, já burro velho: Suvinil.
Até.