Muito provavelmente – eu quase que seria capaz de apostar vultosa soma – meus mais ferinos leitores terminarão de ler o texto que começo, nesse instante, a escrever (escrevo quase que de forma mediúnica, querendo com isso dizer que escrevo de sopetão, sem burilar isso ou aquilo, que fique claro), julgando-me ainda mais fresco do que na cozinha. Mas acordei, eis a verdade, mexido com a história que passo a lhes contar.
Há, numa determinada cidade, num determinado bairro, numa determinada rua, uma casa antiqüíssima (jamais deixarei de usar o trema). A casa abrigou, durante anos, uma família inteira que foi, com o tempo, desaparecendo. Vive ainda, dessa família, um homem que viveu a infância (felicíssima) na tal casa e que a alugou por razões que não vêm, realmente não vêm, ao caso. Quando a alugou, sem a intermediação de administradoras ou de advogados, o homem foi – no dia da mudança da nova família que na casa se instalaria -, pessoalmente, até a casa.
Já estaríamos, aí, diante de um caso raro, antigo. O proprietário, apegadíssimo à coisa alugada, vai até o endereço responsável por tantas marcas em sua alma e entrega, de olhos marejados, ao inquilino, a chave da casa, a chave dos quartos, conta a ele os detalhes sobre cada registro d´água, sobre cada tomada, cada parte do assoalho, do telhado. Vê, comovido, os empregados da empresa de mudança carregando caixas pra lá e pra cá, até que chama o inquilino para a parte da frente da casa. Ensaia despedir-se e diz:
– Posso lhe pedir uma coisa? – mal disfarça os olhos molhados e as mãos trêmulas.
– Claro… o senhor está sentindo alguma coisa? – responde o inquilino, um homem de bem, pondo a mão em seu ombro.
Fica mudo, o proprietário. Olha para baixo, para o alto, para os lados, esfrega o antebraço nos olhos e responde:
– Muitas coisas, meu caro… muitas coisas… Mas eu gostaria de lhe pedir uma coisa, apenas…
– Pois não.
– Está vendo esta roseira? – e aponta a roseira do jardim da casa.
– Claro!
– Trate bem dela… por favor… É o que mais quero lhe pedir… Era o xodó de meu pai, que a plantou há muitos anos, muitos anos… – e deu de chorar sem cerimônia.
Tal preocupação comoveu o novo morador, que prometeu especial dedicação à roseira. Não soou falso o abraço de antes da despedida. O homem partiu, visivelmente triste, mas grato por tudo aquilo, pela confiança depositada e pela promessa que ouviu e que lhe soou legítima, franca e verdadeira.
Passaram-se os anos e a roseira floria que era uma beleza. A cada inverno, a cada mês de junho, julho, explodiam as rosas, dezenas delas!, diante da casa, e o proprietário que jamais se deixou ver, pelo menos uma vez por mês passava pela rua, à tardinha, para matar as saudades e para ver, com os próprios olhos, o roseiral de seu pai em flor.
Há um ano e meio, mais ou menos, o proprietário bateu o telefone para lá. Contou sobre sua intenção de vender a casa, disse o preço, comentou que já havia recebido uma proposta de uma construtora, que estava apenas oferecendo a preferência, essas coisas. Ficou de mandar uma notificação por escrito apenas para cumprir as formalidades legais – a notificação de fato chegou e foi devidamente respondida -, mas naquele mesmo telefonema o inquilino declinou, com o coração apertado, da preferência. Não tinha e nem teria o dinheiro… Mas como o tempo passara sem mais nenhum telefonema, mais nenhum contato, nada, o assunto ficou esquecido.
Semana passada esteve lá, pessoalmente, uma vez mais, o proprietário. Mas dessa vez bateu à porta. Foi recebido efusivamente pelo casal que o convidou para entrar. O dono da casa, o inquilino, fez questão de perguntar:
– O senhor viu a roseira?! Viu que beleza?! Mais de trinta rosas abertas, fora os botões! De rosa eu entendo! – disse piscando pra mulher.
– Vi, vi, sim… – e tinha os olhos cabisbaixos.
Explicou o por quê da visita.
Havia vendido a casa, há coisa de uma semana. Para a tal construtora mesmo, que comprara, também, mais cinco casas na mesma calçada para subir um espigão. Fez-se silêncio naquela sala de onde se avistava a roseira. O ex-proprietário estendeu em direção ao inquilino a notificação já assinada pela empresa, a nova proprietária, concedendo noventa dias para a desocupação do imóvel. Pouco se disse. Ofereceram ao homem um café, um chá, mas ele não aceitou. Levantou-se, despediu-se, mas repetiu-se a cena de anos antes.
O inquilino atravessou a porta da sala, caminhou pelo alpendre, com os punhos cerrados travando o choro, e foi até os pés da roseira, de onde chamou seu senhorio.
– E a roseira? E a história de seu pai?
O homem partiu sem nem olhar pra trás, chorando de soluçar e pedindo desculpas, visivelmente constrangido.
Quando – eis a pergunta que eu faço – alguém terá coragem de dizer não ao dinheiro, de dizer não à especulação, de dizer não à ganância para manter de pé – que seja – uma roseira, uma história de vida, um roseiral de lembranças e de memórias?
Até.