Eu, do alto dos meus 42 anos (e cada vez mais velho, e cada vez mais múmia, e cada vez mais distante do menino de calças curtas e camisa listrada de minha infância, minha infância cada vez mais velha, cada vez mais um quadro num museu imaginário…), posso dizer, sem medo do erro, que se sou um voraz leitor de Nelson Rodrigues (só leio Nelson Rodrigues, e nisso também o imito desbragadamente, ele que dizia, seguramente fazendo troça, que só lia Dostoiévski) sou um seguidor, na medida de minhas (parcas) possibilidades, do poeta-maior, Vinicius de Moraes (e não pretendo iniciar discussão alguma sobre se é, ou não, o velho Vina, nosso poeta maior).
Não me lembro, nem a fórceps, em que ano aconteceu o que vou lhes dizer… Mas estava eu, bem moço ainda (e ao escrever “bem moço ainda” sinto o ranger dos ossos do braço a indicar o avanço de minha idade), no Chico´s Bar, um piano-bar que havia na Lagoa, zona sul da cidade. Lá estava eu assistindo, sozinho, a um show da cantora (uma de nossas maiores cantoras!) Leny Andrade.
Eu fiz questão de frisar que estava sozinho porque à certa época eu achava que havia um certo charme nisso. Mais que isso, meus contemporâneos (e eu nem na faculdade estava, ainda estava cursando o segundo grau, e hoje nem se fala mais “segundo grau”…) não gostavam de bossa-nova, não gostavam da Leny Andrade (alguns, boçais, sequer sabiam quem era a portentosa Leny Andrade – e penso que, de tão boçais, ainda não sabem).
Lá estava eu – como vinha lhes dizendo.
Terminado um dos shows – eu fui a mais de um, mais de um! – encostei-me no balcão do Chico´s Bar e pedi uma dose de uísque. Eu achava – hoje acho mais – fabuloso beber uísque (imitava Vinícius, o copo cheio de gelo, uísque até a borda…), e lá fui eu beber uísque no final do espetáculo. Nesse específico dia a que me refiro, juntou-se a mim, no balcão, o baixista da banda – Jacaré.
Pausa: eu era olhado como uma espécie de mascote nesses lugares. O mais novo. E eu devia ter (seguramente tinha) olhos atentos demais (chamando a atenção), num misto de deslumbramento, medo, desejo de mergulhar na noite, sei lá (estou divagando demais, confesso).
Chegou-se ao balcão uma mulher. Eu – como fazia cenas, como fazia cenas (acho que até hoje as faço) – cantava “e por falar em saudade, onde anda você, onde andam seus olhos que a gente não vê…” e aquelas pessoas sequer sabiam (claro que sabiam!) que eu não tinha quilometragem rodada pra cantar aquilo daquele jeito, com aquela cara, com aquele peso… (rio, agora, de mim mesmo, lembrando com nitidez impressionante de tudo isso), bebendo o uísque como se bebesse o passado. Mais uma dose, mais outra dose, o Jacaré fazendo companhia, até que ele resolveu me apresentar à tal mulher. Gilda, ele disse. A última mulher do Vinícius. A cena fica um pouco confusa nesse momento (à rara falta de memória soma-se o fato, certo, de que eu devia estar ligeiramente embriagado…) e eu me lembro, apenas, que eles riam da situação, com um certo carinho que denotava zelo e uma ponta de admiração por aquele moleque (sim, ainda que com 18 anos de idade, eu era um moleque naquele ambiente sisudo do Chico´s Bar) brincando de gente grande.
Ela me chamou de Dudu, à certa altura. E eu disse – vão tomando nota do papelão! – que eu queria ser o Vinícius de Moraes. Lembro – disso com bastante clareza! – que alguém puxou Canto de Ossanha, de Baden Powell e Vinícius de Moraes… O balcão estava apinhado de gente, as mesas ocupadas, fez-se o coro.
Eu, ali, cantava “… pergunte pro seu orixá, amor só é bom se doer, pergunte pro seu orixá, amor só é bom se doer…”.
Pensar nisso, lembrar disso mais de vinte e cinco anos depois, me faz rir – ligeiramente emocionado, confesso. Hoje, precisamente hoje, outubro de 2011, poucos meses depois de ver desaparecer a mulher com quem vivi, fusionado, por quase 12 anos, depois de lembrar o quanto amei até aqui (e falo do amor abrangente, não falo apenas do amor que por ela nutri, falo do amor pelas mulheres, do amor em estado bruto que move o homem, que move o mundo), sinto uma espécie de alegria por conta do dever até aqui cumprido.
Nunca – com a ênfase szegeriana! – abri mão de viver o amor da forma mais bruta – e sempre pude perceber que orixá estava certo, é infinitamente mais bonito quando dói. Nunca quis o mais-fácil em detrimento do mais-bonito, e é impressionante como até nisso a espiral da vida mantém coerência: o mais-bonito é sempre o mais-difícil, por isso o gozo é mais intenso. Nunca quis o superficial em detrimento do mais-fundo. Nunca quis não ser o homem que aquele garoto debruçado no balcão do Chico´s Bar sonhava ser – eu mesmo, do jeito que sou.
Hoje, embora mais só do que nunca – e ao mesmo tempo tão melhor, tão mais inteiro porque muito mais cioso de meus compromissos imemoriais – não me arrependo de rigorosamente nada. Nem do que está por vir – se é que me faço entender, eu que creio num moto contínuo que dói tanto quanto o amor.
Até.