Ontem comemorei aniversário, 45 anos!, com uma cabritada no Bar do Chico, na sacrossanta esquina da Afonso Pena com Pardal Mallet, que fez a assistência vaiar o cabrito do Capela em posição de sentido, porque o cabrito ensopado que o Chico serviu foi coisa muito, muito, muito séria! Encomendei o bicho na manhã de sexta-feira, Chico tratou de ir comprá-lo (vivo) na hora do almoço e ontem, quando chegaram à mesa as duas travessas com a criança, deu-se a balbúrdia: não sobraram nem os ossos!
Estava lá, claro, meu velho pai – “um judeu que serve de cavalo para o caboclo Tupinambá”, como dissera, na véspera (e por isso me considerando um cara de sorte), a irmã de um amigo meu.
Escrevi, ao longo das horas que antecederam o 27 de abril, um texto que, agora, republico com muito mais detalhes que me vieram ao longo do sábado, todo ele passado ao lado da Morena que, pacientemente, acompanhou (desde a madrugada passada, quando cantei e gargalhei feito Exu-Caveira, mesmo dormindo) o transe que enfrento a cada arremesso ao passado e do domingo.
Papai, o velho Isaac, é filho de Oizer Goldenberg e de Elisa Glicklich (Elisa Goldenberg depois de casada), os dois fugidos de Odessa, e judeus não-ortodoxos, ressalte-se. Papai é o filho mais novo (tem um único irmão), nasceu em 25 de janeiro de 1944 mas foi registrado apenas em março daquele ano como tendo nascido em março mesmo, conta a lenda de família que para fugir da multa que seria imposta a meu avô pelo atraso no registro.
Seu avô, meu bisavô a quem não conheci, foi prisioneiro de guerra nas mãos sujas dos nazistas e sobreviveu ao campo de concentração onde esteve preso. Outra lenda de família conta que mamãe, quando conheceu meu bisavô (Yona Glicklich), tendo este mostrado a ela o braço marcado e numerado, herança maldita da perseguição de Hitler, jogou no bicho, no milhar, o número tatuado na pele do avô de meu pai. A milhar deu na cabeça e mamãe faturou uma grana que, por remorso, doou inteira para uma instituição filantrópica.
Papai nasceu na rua Campos da Paz e cresceu no eixo Tijuca x Rio Comprido, foi amigo de infância do moleque Babolina (Jorge Ben, depois Jorge Benjor) e conheceu mamãe ainda na adolescência, numa festa na Marquês de Valença – na Tijuca. Teria dito ao avistar mamãe descendo as escadarias da casa:
– Vou me casar com ela.
E ao som de Ray Charles, quando mamãe chegou ao chão, disse a ela, olhos nos olhos:
– Vou me casar com você.
Casou-se, de fato, com minha mãe, em 22 de maio de 1968.
Passaram a noite de núpcias em Copacabana, num hotel na avenida Nossa Senhora de Copacabana que tá vivo ainda lá (Savoy Othon Travel, à época apenas Othon), e passaram a lua-de-mel em Teresópolis, sob intenso frio.
Consta que papai freqüentava o Divino, um bar da pesada na esquina da Haddock Lobo com a rua do Matoso, onde “toda confusão começou”. Sempre na companhia do Pato e do Babolina, papai tinha como mania roubar os copos dos liquidificadores do Divino enquanto se batia suco de abacate, e a confissão me foi feita pelo saudoso Paulo Amarelo – papai jamais confirmou, sempre desmentindo sem convicção alguma – durante um encontro ao acaso. Ao avistar meu pai, ao meu lado, Paulo Amarelo ficou branco e disse, apontando pro meu velho:
– Você é filho dele?!
Foi ele dizer isso e papai desaparecer entre a multidão (estávamos no lançamento do songbook do Aldir, no SESC Tijuca).
Papai estudava no La-Fayette (também na rua Haddock Lobo), mamãe no Colégio de Aplicação.
Durante o noivado, papai conheceu o caboclo Tupiara, que tinha como cavalo meu tio Carlos Henrique, o tio Hique, irmão de minha avó Mathilde, mãe de mamãe e espírita desde pouco depois do nascimento de Maria Florinda, sua única filha, numa gira de caboclos (mamãe ganhou esse nome em homenagem a Maria Florinda, irmã de minha avó, que morrera aos 15 anos, de tétano).
Consta que Tupiara, ao dar de cara com papai, disse:
– Ainda vamos trabalhar juntos, meu filho!
Vai daí que papai, já morando com mamãe na rua Barão de Mesquita, num apartamento cujo aluguel era maior que seu salário (o que fez com que ela afundasse em dívidas com agiotas) avistou um índio aos pés de sua cama no dia 26 de abril de 1969, a ele dizendo:
– O menino nasce amanhã! – e mamãe tinha previsão de que eu só viria ao mundo na segunda quinzena de maio.
Papai nem quis ir trabalhar na manhã do dia 27, mamãe insistiu, achou que papai estava enlouquecendo, e ele foi. Papai trabalhava na REDUC, em Duque de Caxias (mais tarde, depois de passar numa prova para a Petrobras, foi trabalhar na avenida Chile, no Centro, onde se aposentou em 1994), na Brigada de Incêndio, e lá chegando ouviu do chefe:
– Volte pra casa, Isaac, a bolsa de sua esposa estourou!
Estourou. Era eu chegando.
Eu que – os relatos da família são impressionantes – brinquei com índios imaginários a infância inteira.
Até que um dia papai teve o primeiro transe: era o caboclo Tupinambá, da mesma falange de Tupiara, que anos antes que lhe fizera o alerta.
Papai, que fez o Bar-Mitzvá mas que nunca foi muito com o judaísmo, com a ajuda de meu avô Oizer me submeteu ao brit milá, à boa e velha circuncisão, cerimônia conduzida por um rabino judeu ortodoxo. Consta que no dia da cerimônia do brit milá meu avô mandou plantar 3 árvores em Israel (o que anunciou à toda a assistência com orgulho) e que minha avó materna desmaiou por ter entendido que ele mandara matar 3 árabes em Israel. Nessa cerimônia, ganhei meu nome na religião judaica: Dan Ben-Moshe, o filho de Moisés, aquele que livrou o povo judeu da escravidão – ou “extraído das águas”, como preferem alguns.
Depois, o menino circuncisado foi batizado na Igreja Católica pelas mãos do Frei Angélico, na Igreja dos Capuchinhos, a poucos metros de onde hoje moro (na rua Haddock Lobo) – e no mesmo apartamento onde moraram, por muitos anos, meu avô e minha avó, Oizer e Elisa.
Menino, aprendi a rezar antes de dormir: “Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo. Tupinambá, Tupiara e Ogum do Mar, protegei a minha cabecinha.”.
Vira-e-mexe Tupinambá pinta no pedaço. Tupinambá, tendo como cavalo Isaac Goldenberg, já dançou e cantou em minha casa, já rodou defumador por todos os cantos do apartamento, já rezou minha Morena, já rezou a mim, e vou assim, vivendo e convivendo com essa coleção de fantasmas e de histórias que me moldaram e que me moldam ainda mais a cada arremesso violento em direção ao passado, como esse.
Saravá!