Ao longo de pouco mais de 42 anos de vida aprendi, é evidente, algumas lições. Somos, cada um de nós, produto de cada um dos segundos vividos desde o nascimento, e é desinfluente dizer que ainda acredito no amealhar de cada um dos segundos vividos nas vidas pretéritas – não vem ao caso, não faz diferença para o que quero lhes dizer e isso aqui não é, definitivamente, palanque para pregações de qualquer natureza. Vou me ater, pois, ao mais simples.
Eu sou produto direto do meio em que vivi, e quantas vezes debrucei-me neste balcão virtual para lhes fazer minhas confissões (e, creiam, as faço precipuamente para mim mesmo, num exercício doloroso e prazeroso de arejar a alma, de exorcizar meus fantasmas, de compreender meus medos e de buscar ser e estar melhor)…
Nasci em 69 num hospital que fica de frente pro morro do Borel – e isso já diz, a mim, muita coisa. Primeiro filho de pais absolutamente fabulosos (meus amigos, os que me têm por perto, não me deixam mentir), nasci e cresci na Tijuca, forjado no asfalto das ruas, debaixo da saia de uma penca de mulheres, no concreto dos estádios de futebol, nas rodas de samba, nos balcões dos bares, nos centros espíritas que freqüentei, vendo papai receber caboclo dentro de casa, indo a terreiros de umbanda e candomblé quando me dava na telha. Fui criando minha particular visão de mundo, conheci a morte de perto quando vi minha bisavó desaparecer em 1982, morei durante um tempo na Lagoa, quando fui um exilado absoluto, mudei-me de volta pra Tijuca em 1999 e na Tijuca estou até hoje, torcendo pra que tenhamos um cemitério por aqui, como disse Luiz Antonio Simas em brilhante arrazoado (aqui), a fim de que eu não saia daqui nem mesmo depois de morto, quando a morte decidir vir me buscar.
Feito o não tão curto intróito, vamos em frente.
Diante do intransponível – seja ele uma dor lancinante, o fim de um namoro, a primeira derrota no jogo de botão, a morte de alguém muito amado, o fracasso do time em uma final de campeonato… – só há duas possibilidades, e não me venham com tratados a fim de derrubar minha certeza: ou encara-se o inevitável, o instransponível, de cabeça erguida, com bom-humor, ânimo e coragem, ou curva-se diante dele, cabisbaixo, com sinais de depressão, desânimo e medo. Qualquer coisa diferente disso é papo pra boi dormir.
E por que lhes digo isso, além da evidência de que falo de mim para mim a fim de me manter bem? Porque ontem estive com o Neco, um amigo querido, que me convidou para um almoço que acabou se estendendo até o final da tarde. Vimo-nos, na esquina da rua do Mercado com a rua do Rosário, e fomos imediatamente dois bonecos infláveis de posto de gasolina, brandindo os braços diante da alegria daquele encontro. Disse-me o Neco, sorrisão estampado no rosto?
– Como você tá, velhão?
Fui um derramado – troço, confesso, corriqueiro.
Saí dissertando justamente sobre isso, sobre a necessidade, imperiosa e urgente, do ânimo absoluto diante do intransponível. Repeti, de certa forma, o que venho dizendo aos meus, aos mais-de-perto, aos que constituem a muralha que protege minha cidadela. Aos que não terão, jamais, dedos apontados em minha direção, aos que jamais proferirão, diante de mim, sentenças prontas e fabricadas por sistemas que nunca me disseram nada ao coração – sistemas que dão valor ao que conheço apenas como palavra e letra fria: arrependimento, culpa, remorso.
Essa tática simples – e ao mesmo tempo difícil pacas de aplicar! – de manter-me pronto diante do intransponível rendeu-me, até hoje, mais de 42 anos depois de ter vindo ao mundo diante do morro do Borel, um bocado de histórias bonitas pra contar. Sempre preferi o riso à lágrima (embora eu chore cada vez mais, puramente de emoção diante da beleza das coisas, das saudades que guardo), o bom-humor à carranca, o braço aberto à sisudez, a leveza à dor, por aí.
Sempre fui bom nisso. De certa forma sempre preguei ou executei atos visando à transformação ou derrubada da ordem estabelecida, sempre fui revolucionário. De certa forma sempre expressei minhas idéias, pensamentos e opiniões opostos ou profundamente diferentes dos da maioria que, por isso mesmo, freqüentemente se sentiu ameaçada. De certa forma sempre agi de maneira a perturbar, tumultuar as instituições, sempre fui contra a ordem, desejei o caos, fui perturbador e agitador. Subversivo, além de polemista e dissidente de mim mesmo.
Mamãe conta – é uma de suas histórias preferidas, dessas que todas as famílias têm – que quando fui a meu primeiro jogo no Maracanã sozinho, completamente sozinho, sem meu pai, ela ficou me esperando chegar na varanda do apartamento. O jogo começara às nove, pouco depois das onze dobrei a esquina. Mamãe conta (lembro-me muito vagamente disso) que eu percebi que ela estava à minha espera, e ela apagou as luzes e foi pro quarto, fingir que estava dormindo. Conta, mais, que eu entrei, bati em seu quarto e a convoquei pra uma conversa na sala. Em resumo, eu disse a ela que eu nunca mais sairia sozinho se isso significasse preocupação pra ela. E que eu achava uma tremenda sacanagem ela acabar com minha alegria, deixando-me também preocupado com sua preocupação, algo assim. Pois quando mamãe termina de contar isso, ela diz (mamãe é muito pouco parcial…):
– Que lição! Que lição! Que lição que o Edu me deu!
Fato é que, dia desses, convoquei mamãe pra uma conversa de novo. Deitei-me em seu colo, chorei pra burro, falei de mim. Que lição! Que lição! Que lição que mamãe me deu! Subvertendo o tempo, fui ali, já velho, a criança indefesa, de calças curtas e camisa listrada, no colo quente da melhor mãe do mundo: pedindo conselho, pedindo perdão, pedindo sua benção.
Que nunca – eis o que eu queria lhes dizer -, mesmo diante do que parece intransponível, me faltou.
Até.