Arquivo do mês: julho 2011

DIANTE DO INTRANSPONÍVEL

Ao longo de pouco mais de 42 anos de vida aprendi, é evidente, algumas lições. Somos, cada um de nós, produto de cada um dos segundos vividos desde o nascimento, e é desinfluente dizer que ainda acredito no amealhar de cada um dos segundos vividos nas vidas pretéritas – não vem ao caso, não faz diferença para o que quero lhes dizer e isso aqui não é, definitivamente, palanque para pregações de qualquer natureza. Vou me ater, pois, ao mais simples.

Eu sou produto direto do meio em que vivi, e quantas vezes debrucei-me neste balcão virtual para lhes fazer minhas confissões (e, creiam, as faço precipuamente para mim mesmo, num exercício doloroso e prazeroso de arejar a alma, de exorcizar meus fantasmas, de compreender meus medos e de buscar ser e estar melhor)…

Nasci em 69 num hospital que fica de frente pro morro do Borel – e isso já diz, a mim, muita coisa. Primeiro filho de pais absolutamente fabulosos (meus amigos, os que me têm por perto, não me deixam mentir), nasci e cresci na Tijuca, forjado no asfalto das ruas, debaixo da saia de uma penca de mulheres, no concreto dos estádios de futebol, nas rodas de samba, nos balcões dos bares, nos centros espíritas que freqüentei, vendo papai receber caboclo dentro de casa, indo a terreiros de umbanda e candomblé quando me dava na telha. Fui criando minha particular visão de mundo, conheci a morte de perto quando vi minha bisavó desaparecer em 1982, morei durante um tempo na Lagoa, quando fui um exilado absoluto, mudei-me de volta pra Tijuca em 1999 e na Tijuca estou até hoje, torcendo pra que tenhamos um cemitério por aqui, como disse Luiz Antonio Simas em brilhante arrazoado (aqui), a fim de que eu não saia daqui nem mesmo depois de morto, quando a morte decidir vir me buscar.

Feito o não tão curto intróito, vamos em frente.

Diante do intransponível – seja ele uma dor lancinante, o fim de um namoro, a primeira derrota no jogo de botão, a morte de alguém muito amado, o fracasso do time em uma final de campeonato… – só há duas possibilidades, e não me venham com tratados a fim de derrubar minha certeza: ou encara-se o inevitável, o instransponível, de cabeça erguida, com bom-humor, ânimo e coragem, ou curva-se diante dele, cabisbaixo, com sinais de depressão, desânimo e medo. Qualquer coisa diferente disso é papo pra boi dormir.

E por que lhes digo isso, além da evidência de que falo de mim para mim a fim de me manter bem? Porque ontem estive com o Neco, um amigo querido, que me convidou para um almoço que acabou se estendendo até o final da tarde. Vimo-nos, na esquina da rua do Mercado com a rua do Rosário, e fomos imediatamente dois bonecos infláveis de posto de gasolina, brandindo os braços diante da alegria daquele encontro. Disse-me o Neco, sorrisão estampado no rosto?

– Como você tá, velhão?

Fui um derramado – troço, confesso, corriqueiro.

Saí dissertando justamente sobre isso, sobre a necessidade, imperiosa e urgente, do ânimo absoluto diante do intransponível. Repeti, de certa forma, o que venho dizendo aos meus, aos mais-de-perto, aos que constituem a muralha que protege minha cidadela. Aos que não terão, jamais, dedos apontados em minha direção, aos que jamais proferirão, diante de mim, sentenças prontas e fabricadas por sistemas que nunca me disseram nada ao coração – sistemas que dão valor ao que conheço apenas como palavra e letra fria: arrependimento, culpa, remorso.

Essa tática simples – e ao mesmo tempo difícil pacas de aplicar! – de manter-me pronto diante do intransponível rendeu-me, até hoje, mais de 42 anos depois de ter vindo ao mundo diante do morro do Borel, um bocado de histórias bonitas pra contar. Sempre preferi o riso à lágrima (embora eu chore cada vez mais, puramente de emoção diante da beleza das coisas, das saudades que guardo), o bom-humor à carranca, o braço aberto à sisudez, a leveza à dor, por aí.

Sempre fui bom nisso. De certa forma sempre preguei ou executei atos visando à transformação ou derrubada da ordem estabelecida, sempre fui revolucionário. De certa forma sempre expressei minhas idéias, pensamentos e opiniões opostos ou profundamente diferentes dos da maioria que, por isso mesmo, freqüentemente se sentiu ameaçada. De certa forma sempre agi de maneira a perturbar, tumultuar as instituições, sempre fui contra a ordem, desejei o caos, fui perturbador e agitador. Subversivo, além de polemista e dissidente de mim mesmo.

Mamãe conta – é uma de suas histórias preferidas, dessas que todas as famílias têm – que quando fui a meu primeiro jogo no Maracanã sozinho, completamente sozinho, sem meu pai, ela ficou me esperando chegar na varanda do apartamento. O jogo começara às nove, pouco depois das onze dobrei a esquina. Mamãe conta (lembro-me muito vagamente disso) que eu percebi que ela estava à minha espera, e ela apagou as luzes e foi pro quarto, fingir que estava dormindo. Conta, mais, que eu entrei, bati em seu quarto e a convoquei pra uma conversa na sala. Em resumo, eu disse a ela que eu nunca mais sairia sozinho se isso significasse preocupação pra ela. E que eu achava uma tremenda sacanagem ela acabar com minha alegria, deixando-me também preocupado com sua preocupação, algo assim. Pois quando mamãe termina de contar isso, ela diz (mamãe é muito pouco parcial…):

– Que lição! Que lição! Que lição que o Edu me deu!

Fato é que, dia desses, convoquei mamãe pra uma conversa de novo. Deitei-me em seu colo, chorei pra burro, falei de mim. Que lição! Que lição! Que lição que mamãe me deu! Subvertendo o tempo, fui ali, já velho, a criança indefesa, de calças curtas e camisa listrada, no colo quente da melhor mãe do mundo: pedindo conselho, pedindo perdão, pedindo sua benção.

Que nunca – eis o que eu queria lhes dizer -, mesmo diante do que parece intransponível, me faltou.

Até.

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O PRIMEIRO OLHAR

É evidente que eu não me lembro do slide do meu primeiro olhar nem dos primeiros olhos que cruzaram com os meus. Foram os de minha mãe, entretanto. Mamãe, que me esperou com medo e ansiedade – como lhes contei aqui – até hoje tem olhos de dar à luz quando me vê. Lembro-me, com impressionante nitidez, dos olhos e do olhar de minha bisavó diante de mim, atrás dos óculos – olhos de sabedoria e de um carinho infinito. Lembro-me dos olhos e do olhar de minha avó diante do primeiro neto. Lembro-me dos olhos e do olhar de cada uma das mulheres com quem cruzei pelo caminho. Olhos de cumplicidade, muitas vezes. Olhos de oceanos de medo e olhos de cais e de segurança. Olhos da babá. Olhos das empregadas de mamãe, olhos da mulher de mármore que me convocava, às vezes, pro quarto dos fundos. Os olhos das professoras, os olhos das passistas que meu pai me mostrou tantas vezes, em tantos carnavais, os olhos de minha comadre que foi minha mãe noutra altura, os olhos de minhas afilhadas e os olhos de suas mães, tão generosas, que me entregaram suas melhores porções. Todos refletidos nos meus olhos de menino, hoje com ptose – mas de menino, ainda. Meus olhos pequenos, permanentemente úmidos e prontos pra chorar. Os olhos da primeira namorada, os olhos da menina com quem descobri o amor, os olhos de susto e de surpresa. Os olhos, esses labirintos que, dizem, diminuindo a potência e os mistérios do olhar, são o espelho da alma. São mais que isso. São o infinito, os olhos. São os olhos que denunciam, são os olhos que entregam, são os olhos que põem por terra, muitas vezes, o dissimular dos gestos e das falas. Não me esqueço dos olhos, de todos os olhos. E não me esqueço, e isso é impressionante, de meu próprio olhar – quase sempre boiando e em busca da luz dos olhos alheios. Não me esqueço, sobretudo, dos olhos que meus olhos viram quando vi o desejo plantado nos olhos que cruzaram os meus. São meus olhos, repositório dos meus registros, permanentemente em busca dessa luz que me impulsiona, que me renova, que me mantém vivo, que olha pra trás com olhos de gratidão e que olha pra frente com olhos de esperança. São meus olhos, querendo balbuciar o inexprimível. São meus olhos, que não me traem. São meus olhos encharcados, como agora, em busca dos olhos que me acalentam. São meus olhos, melhores intérpretes de mim, meus tradutores, poço misterioso que guarda meus amores e minhas dores. São meus olhos suburbanos, tijucanos, minha retina que também não me trai. São meus olhos que me dizem, hoje, a cada manhã, pra que eu siga em frente, ainda que eu tropece, em busca dos olhos capazes de me apagar filmes geniais, rebobinar o século, meus velhos carnavais, minha melancolia. Buarquianamente. É o que tenho feito, cumpridor obediente que sou da sina que me foi entregue, como roteiro, no longínquo abril de 69. Foram necessários quase treze anos pra que esses olhos chegassem mais perto, e um pouco mais de vinte e oito, depois de sua chegada, pra que eu os descobrisse. Quando eu os vi, pela primeira vez, eu já sabia.

Até.

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CENAS TIJUCANAS

(publicado no Jornal do Brasil em agosto de 2008)

Meu compadre Leo Boechat, pai da pequena Helena, ela que é minha mais recente paixão derramada, é testemunha auditiva (e vocês entenderão mais à frente porque não digo “testemunha ocular”) do que vou lhes dizer, sem medo do erro: na Tijuca tudo se vê, tudo se sabe, e segredo é um troço que não existe. Um dia desses, há coisa de – o quê?! – uns dois anos, o maior conhecedor de cervejas estrangeiras que conheço, resolveu fazer um bonito com a então namorada, hoje sua mulher, justamente a mãe da pequena e doce Helena. Em um sábado pela manhã, fazia um tremendo sol, tomaram o metrô em Botafogo em direção à Tijuca, de mãos dadas – ele é um romântico. Leo prometera apresentar à namorada a mais fabulosa empada de camarão da paróquia. Notem bem que reside, em seu gesto, uma profunda, comovente e destemida declaração despudorada de amor. O Leo não pode nem sentir o cheiro de camarão que inicia, de pronto, um processo gravíssimo de edema agudo de glote, desses fatais. Mas vamos em frente. Saltaram na estação Afonso Pena, reconheceram o terreno – velhos, velhas, crianças, babás, vendedores de pipoca, algodão doce, o furdunço armado – e seguiram a pé pela rua de mesmo nome, Afonso Pena, rumo ao Salete. Vai daí que eu passava de carro pela Gonçalves Crespo, uma de suas perpendiculares, quando o avistei e, ato contínuo, telefonei pro Leo.

– O que faz você na minha terra? – disse eu depois do alô de praxe.

O Leo parecia uma piorra em busca de mim (eu a tudo assistia pelo retrovisor do carro).

– Onde você está? – ele disse com voz de quem não acreditava naquilo, olhando pra cima, em volta, sem êxito em sua procura.

– Na Tijuca tudo se vê, tudo se sabe… vais aonde?

E ele, depois de cochichar um “não acredito…” – que eu consegui ouvir – disse:

– Ao Salete.

– Ótimo! Ótima pedida! Siga em frente, mais 200 metros e você chega. Nessa mesma calçada. Seja bem chegado ao bairro. Um abraço! – e desliguei.

O Leo passou semanas querendo saber como aquilo se dera (e está sabendo apenas agora, lendo isso). Teve, contou-me depois a mãe da pequena Helena, um princípio do tal edema de glote com o susto que levou, susto que ele interpretou como uma invasão de privacidade, uma violação do seu sagrado direito de ir e vir, esses troços.

Mas isso não foi nada, não foi nada. Perto do que a Tijuca pode produzir em matéria de inviolabilidade da vida alheia, foi brincadeira de criança.

Contar-lhes-ei uma bem pior (ou melhor, é uma questão de ponto de visto e de ângulo de observação), que dá sólido sustento ao que eu lhes disse sobre a inexistência de segredo ou sigilo, na Tijuca. Na Tijuca, digo sem temer o equívoco, o simples e seminal olhar que anuncia a traição é princípio e prenúncio do furacão que devassará a vida dos futuros amantes, soprado pelas bocas linguarudas que são, convenhamos, uma tradição do bairro. Vamos aos fatos.

Bebia eu, há coisa de uns meses, no Bar do Marreco, espelunca comovente na esquina de Caruso com Haddock Lobo, na fabulosa companhia de Zé Sergio, numa de suas incursões tijucanas, egresso dos cafundós de Niterói. Aliás, eu, Zé Sergio e um amigo cujo nome preservarei em razão da natureza da coisa.

Falávamos sobre futebol, mulher, política, sobre a qualidade da comida que ali é servida, depois de preparada pelas mãos mágicas da Cátia, sobre a qualidade das moças que passavam, acompanhávamos atentos a movimentação do churrasco promovido pelo seu Brasil na calçada, quando nosso amigo, antecipando a despedida, disse batendo no relógio de pulso (ele é um antigo):

– Daqui a pouco tenho de ir. Faço um ano de namoro hoje, ela ficou de passar aqui pra me pegar… – e fez carinha de preocupado.

Não se passaram nem cinco minutos e chegou a moça, a quem não conhecíamos. Acenou do outro lado da rua e o malandro despediu-se, de fato. A moça, é preciso dizer para que a cena ganhe curvas e cores, era dessas de parar o trânsito e fazer o guarda engolir o apito. Dezenas de olhos seguiram os passos do casal caminhando pela calçada, na contramão do fluxo, depois que ela atravessou a rua ao encontro do namorado. Caminharam coisa de cinqüenta metros e, vupt!, sumiram. Seu Brasil anunciou abanando a brasa do carvão com um leque de papel:

– Entraram no Bariloche… Rapaz de sorte!

Uma senhora que bebia conhaque de pé no balcão deu seu parecer, coçando a cabeça com um palito:

– Feio pra diabo com um mulherão desses!

Dezenas de bocas gargalharam, a noite foi caindo, começou a ser servido o churrasco, Danilo desempenhando com maestria o papel de garçom, quando Zé Sergio, sacana que só ele, mandou a frase:

– Vamos mandar entregar uma garrafa de Sidra pro casal brindar à data!

Deu-se o reboliço. Em pouco tempo, a senhora do conhaque convocava os presentes para o rateio da garrafa. Recolhia o dinheiro de um, de outro, até que disse, entregando as notas e as moedas amealhadas pro Marreco:

– Já deu, já deu!

Foi quando o Zé fez cara de triste:

– Mas como vamos saber em quê quarto o casal está?

Eu, tijucano há várias encarnações, disse:

– Na Tijuca tudo se vê, na Tijuca tudo se sabe…

Seu Brasil sorriu, confirmando com a cabeça.

Liguei pro hotel:

– Boa tarde, minha senhora. Entrou aí, agora há pouco, um casal assim, assim, assado?

Ela confirmou.

– A senhora pode me dizer em que quarto eles estão?

Ela disse. Ela disse!

Chamei o Danilo, entreguei a ele a garrafa de Cereser, seu Brasil improvisou um balde de gelo com o material da faxina do bar, dei as devidas instruções ao nosso portador, o Zé pôs uma nota de cinco reais no bolso do cearense e lá se foi o caboclo.

Ele pintou de volta na área menos de dez minutos depois.

– E aí, e aí?! – o coro em uníssono.

– Ele mesmo atendeu a porta. De toalha.

Explosão no bar.

Uma hora e quinze depois, vem o casal abraçado pela rua. Atravessam antes de chegar na esquina. Ele embarca o avião no ônibus e vem em nossa direção, já sorrindo.

– Como é que vocês descobriram o número do nosso quarto, pô!?

Foi o Zé Sergio, já devidamente calibrado, que de pé, à imagem e semelhança de Dom Pedro no Grito do Ipiranga, disse para delírio da assistência:

– Na Tijuca, malandro, tudo se vê! Na Tijuca, tudo se sabe.

Tijuca, em estado bruto!

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ESSA GAGUEIRA INFANTIL

Sou viniciano até a alma. Impressionam-me, há anos – desde a primeira vez, quando li, ainda moleque – os versos “Resta essa imobilidade, essa economia de gestos / Essa inércia cada vez maior diante do Infinito / Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível / Essa irredutível recusa à poesia não vivida” do “O Haver”, poema-prece de Vinícius de Moraes que pode ser ouvido aqui, na voz do próprio com comovente violão e voz de Edu Lobo ao fundo. Impressiona-me, a bem da verdade, todo o poema-prece, ao qual já dei, ao longo da vida, as mais diversas interpretações, como deve ser, mesmo, com qualquer grande poema. Acho pouco provável – a obra é sempre maior que o homem que a produz – que o próprio Vinícius tivesse uma única explicação (como se fosse possível explicar o que inexplicável) para “O Haver”. O fato é que tenho lido e ouvido, muitas vezes, “O Haver”.

Passei ontem, depois de muitos anos, minha primeira sexta-feira absolutamente só, em casa. Vivi, de forma brutal, a tal “intimidade perfeita com o silêncio”. Fui respeitoso com a noite, falei (sozinho) baixo, tive medo e me mantive, durante horas, imóvel entre os móveis dispostos de forma inédita e no cenário novo que a Vida desenhou pra mim. Fui, como em tantas outras oportunidades ao longo de meus 42 anos de vida, um menino querendo balbuciar o inexprimível. Chovia, fazia barulho, restava-me, naquele momento, a comunhão com os sons da rua e eu experimentei, de certa forma, a angústia da simultaneidade do tempo.  Chorei diante da beleza – porque a Vida, meus poucos mas fiéis leitores, é de uma boniteza indizível… Sonhei. Busquei transfigurar a realidade, subvertê-la, e enxerguei, alta madrugada, “essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas dão o nome de esperança”. Serei – sei que serei – capaz de “caminhar dentro do labirinto”. Serei – sei que serei – capaz de levantar “depois de cada queda”. E terei – sei que terei – “essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo infantil de ter pequenas coragens”.

Quero da Vida – como se fosse permitido fazer pedidos que sempre soam tolos diante do grande segredo que a caracteriza – as coisas mais simples. Quero manter-me assim: com medo – o medo é fundamental, desde que não nos paralise! – e com coragem.

Quero seguir caminhando. Amando, precipuamente. Vivendo meus arremessos ao passado como uma homenagem a tudo o que já vivi. Tolo é o homem que maldiz seu passado, tolo é o homem que maldiz qualquer acontecimento vivido, tolo é o homem que nega as experiências enfrentadas, eis que somos, hoje e agora, resultado do acúmulo de tudo – rigorosamente tudo – o que vivemos.

Tolo, também, é o homem que se prende ao que foi vivido, fazendo do passado as grades que o impedem de seguir em frente.

Eu quero mais – como diz o samba, de novo e sempre ele! – é botar meu bloco na rua.

Amanhã, domingo, vou ao Bar do Chico, cenário de minhas domingueiras desde há séculos, celebrar a Vida, celebrar a arte de todos os meus encontros e erguer um brinde a tudo o que já vivenciei ao longo de minhas existências a fim de que eu possa celebrar, ao lado dos meus, a festa que é uma de minhas marcas.

Esse brasileiro máximo que atende pelo nome de Luiz Antonio Simas costuma dizer que “terreiros e botequins são espaços de ritualização da vida; vida sem rito é falsa feito cerveja sem álcool e preto velho sem cachimbo.”.

Vamos, pois, amanhã, a esse rito pagão que tanto me comove.

Chinelo nos dedos, maracujá à mesa, muita Brahma gelada enchendo os engradados, muitos amigos nessa comunhão pagã que me comove, e se alguém perguntar por mim… diz que fui por aí.

Até.

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O VENTO DAS PEDRAS DO ARPOADOR

Eu não sou do Engenho do Dentro e tampouco ela vive no vento das pedras do Arpoador, mas as pedras imemoriais espancadas há milênios pelas ondas atlânticas que banham Copacabana e Ipanema me deram colo e fizeram carinho no meu cabelo na manhã do domingo passado, quando prossegui a empreitada em busca de mim mesmo no sumidouro do espelho que é a vida. Quem me visse de longe me poria, fácil, na conta dos loucos. Eu era só sorriso, quando na verdade a pequenez do mundo espera de mim a face enlutada. Eu falava e gesticulava como um carcamano tijucano, quando a morbidez do mundo espera de mim o silêncio e a introspecção. Eu fui, naquela manhã de domingo, um homem em estado de graça ensolarada, mais uma prova efetiva da minha capacidade de ser, ao mesmo tempo, polemista, dissidente de mim mesmo, subversivo ao extremo.

Desde o dia em que um de meus orixás vivos, Aldir Blanc, cravou-me na testa o epíteto definitivo – “dissidente de si mesmo” – que eu busco, como um louco, cumprir à risca o destino que essa dissidência permanente impõe a mim. E foi assim, dissidente, que deitei no colo de minha mãe pra que tivéssemos a mais bonita conversa que já tive com alguém em mais de 42 anos de vida. Foi assim, dissidente, que ergui o copo diante de meus pais, de meus irmãos, de minhas irmãs, de meus amigos e de minhas amigas mais queridas – minha cidadela!, minha muralha! – para um brinde à Vida, para um brinde ao renascer das cinzas, para um brinde aos caprichos que enfrentamos e que, muitas vezes, nos chegam com estranhamento.

O rugir do mar, naquela manhã ensolarada de domingo, era o eco do que rugia em mim.

Até.

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NOVO ENDEREÇO

Há dias que canto, pelas manhãs, assim que levanto, uma espécie de mantra pagão em ritmo de samba – salve, Hilda Macedo e Fernando Cerole!: “Se por acaso alguém perguntar por mim, diga que mudei de endereço: tô morando na rua da felicidade que faz esquina com recomeço”. Isso porque, apud Aldir Blanc, em toda a vida o samba foi cura pra minha doença. Como lhes disse ontem, aqui“enfrentei o momento que todos os que enfrentam a morte de perto têm de enfrentar: rearrumar a casa, rearranjar a vida, refazer os planos, caminhar – sempre. “. E nada disso pode ser feito sob o signo da tristeza ou da dor. É preciso coragem, meus poucos mas fiéis leitores, é preciso ânimo, e é por isso que recorro ao samba. Recorro ao samba porque é preciso, também, ter esperança. É preciso, muito, ter esperança, pois se até mesmo a tristeza – como nos ensinou o poeta – tem sempre a esperança de um dia não ser mais triste não, saravá, Vinícius de Moraes, saravá, Baden Powell!, não devemos subverter o processo capaz de nos redimir, sob pena de morrermos estando vivos. Vai daí que escancaro as janelas quando acordo, vai daí que canto enquanto passo meu café, vai daí que me comovo com as luminosas manhãs que me trazem tanta luz e sigo de cabeça erguida à espera do tempo buarquiano da delicadeza.

Até.

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INTENSA LUZ

Dias antes do sábado passado – eu sou, como já lhes disse diversas vezes, brasileiro até a alma em matéria de religião! – recebi a seguinte mensagem psicografada, ditada por um espírito que, pra me valer do meu tijucanismo, vai muito com a minha cara. Dizia, a mensagem: “A vida do espírito encarnado representa constante chamamento à compreensão do processo evolutivo do espírito. É preciso muita atenção para procurar compreender os acontecimentos e sua seqüência poder explicar. Coragem! Através de nuvens pesada, escuras, há intensa luz.”. Eu, que durante toda a trajetória dos últimos anos, busquei, à minha moda, compreender os acontecimentos com atenção suficiente para encontrar explicação para o porvir, jamais deixei de ter a companhia da coragem – e não perguntem onde encontrei forças para jamais esmorecer. Eis que vivi, do sábado pra cá, uma semana dura, sem deixar de ter, de novo, ânimo e coragem. Enfrentei o momento que todos os que enfrentam a morte de perto têm de enfrentar: rearrumar a casa, rearranjar a vida, refazer os planos, caminhar – sempre. Não me faltaram os meus, uma vez mais, e é rigorosamente desnecessário dizer o nome dos que não me faltaram: eles sabem que é a eles que me refiro. Minha mãe – eis a exceção, faço questão de citá-la – cuidou do apartamento desde a manhã da sexta-feira e quando eu cheguei no domingo, depois de um final de semana de auto-exílio forçado, encontrei cenário novo, irreconhecível, cores novas nas paredes, móveis em nova disposição, numa mágica que só mesmo mão de mãe é capaz de fazer. Se a morte é o revés do parto, apud Chico Buarque, mamãe deu à luz de novo, mais de 42 anos depois, ao seu primeiro filho, que veio ao mundo num longínquo abril de 1969 – através da transformação impressionante que plantou no canto em que moro há quase doze anos, mamãe fez morrer, de certa forma, o cenário que ficou impregnado de uma luz que se esvaiu. Mas como sou um homem de fé, permanentemente de fé, como bem me conhece o camarada que me mandou o recado que transcrevi, como ainda melhor me conhece a mulher que me trouxe à vida, percebi, também, no instante em que girei a chave na porta da casa transformada, a casa inundada pela intensa luz que me fora anunciada no tempo certo. E que não me faltem a fé, a coragem, o ânimo, para caminhar pelos caminhos que a Vida, essa senhora caprichosa que só ela, desenhar pra mim. Estará comigo, não tenho sombra de dúvida, a intensa luz que me dirá, a cada manhã, a cada dia (apud Francisco Bosco): nada foi em vão.

Até.      

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DANI

Eu já a conhecia há algum tempo, e eu já estava casado, quando ela foi passar uns anos em Londres. Por uma dessas coincidências que as evidências da vida mostram, com o passar dos anos, que não são exatamente coincidências, eu estava num bar, na Lapa, justo no dia de sua despedida do Brasil. Antes de ir embora, ela me entregou um cartão e disse:

– Se for a Londres, me procure!

Eu não fui a Londres. Mas em 1999, quase cinco anos depois, quando eu já estava separado, a reencontrei numa roda de samba em Vila Isabel, no aniversário de um amigo em comum, o Alfredinho, do Bip-Bip. Fui, confesso sem modéstia, um mestre na arte do cortejo. E eu não mentia, como vocês verão. Quando eu a disse que eu esperara muito por aquele encontro, ela riu como se estivesse diante da mais canalha das cantadas e disse:

– Sei…

Foi quando puxei da carteira o cartão que ela me dera cinco anos antes, na Lapa. Entreguei a ela e disse, de cabeça, o seu endereço em Londres. De mestre, não?

Começamos, ali, uma história que durou quase 12 anos.

Dani, a Sorriso Maracanã, apelido que foi dado por meu irmão de fé, Fernando Szegeri, foi oló na noite desse sábado, ontem, às 23h35min. Não cabe aqui – e jamais caberia – o relato de tudo o que vivemos. Foi muito, e foi intenso. Dani, a mulher que me ensinou a sorrir, enfrentou o câncer com uma dignidade que eu jamais supus ser possível. Aprendemos – e eu aprendi demais! – a fazer do dia-a-dia, desde o diagnóstico da doença, o último dia. Vivemos, com a intensidade que nos foi permitida, o amor na mais ampla acepção da palavra. Foi uma caminhada dura, que o câncer não dá refresco, e muito embora eu vivesse o drama particular entre as quatro paredes do nosso quarto, jamais – JAMAIS, com a ênfase szegeriana – a ouvi responder a quem quer que a perguntasse como ela estava, como ela ia, algo diferente disso:

– Melhor! Muito melhor! – e isso dito sempre com a moldura do mais luminoso sorriso que jamais se apagará em mim.

Escrevo agora, premido por uma saudade cortante, porque – como tantas vezes lhes disse – eu não poderia esperar o dia amanhecer sem agradecer a cada um dos que foram fundamentais e imprescindíveis para nós,  justo por conta do sentimento de gratidão que eu nutro por cada uma dessas pessoas que, seguramente, sabem que a elas me dirijo. Meus pais, alicerces sólidos da minha formação, sempre me ensinaram que eu fosse assim: grato por tudo de bom que me cerca. Não caberia aqui, também – porque foram muitos, graças aos deuses – dar o nome de um por um. Sei, e sei mesmo, que cada um sabe dessa minha gratidão, porque eu jamais deixei de dizer e manifestar meu mais sincero agradecimento por tudo.

Sou grato, inclusive, à Vida, essa dona caprichosa que nos pregou essa peça. A mesma Vida que a colocou em meu caminho. A mesma Vida que cuidou de chamá-la hoje pro Orum.

Cuido agora de mim e da saudade – sem tristeza alguma, creiam nisso. Sempre fiz do ânimo meu companheiro. E foi com ânimo que cantei pra ela, ontem à tarde, no quarto do hospital, justo porque ela me pediu:

– Canta pra mim…

“Sorri!
Ah, meu bem, sorri
Que o teu sorriso me ilumina
Amor, ah, meu grande amor
Juro por essa luz divina

Que o teu sorrir
É como raio de luar
A refletir
A mansidão do teu olhar

Meu Deus
Ah, meu Deus do céu
Conserve aceso esse sorriso
Ele é a luz de que eu preciso
Pra meu caminho iluminar

Luz de minh’alma
Chama que acalma
Que me incendeia sem queimar
Farol brilhando em alto mar
Salvando o amor de naufragar

Clarão de Lua, que se insinua
Pelos caminhos onde vou
Tamanha luz interior
Só pode ser amor…”

Esse samba, que ganhou contornos de “Tema para Dani” graças, também, ao Szegeri, era seu preferido (vejam aqui).

E como eu sou um homem de fé, um homem de festa, e como ela era festeira como eu, não cabe e não caberá tristeza por conta de sua partida. Dani, que foi bambear no infinito, como diz outro samba, não me perdoaria se eu não seguisse sorrindo, como ela me ensinou.

Meu amor e minha saudade.

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