Arquivo do mês: março 2006

31 DE MARÇO DE 1964

“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu

Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro

Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente?

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

Você vai se dar mal
Etc. e tal”

(Chico Buarque)

Chega a ser ligeiramente impressionante a atualidade da letra desse “Apesar de Você”, do Chico, que nega, peremptoriamente, ter dirigido a canção a qualquer um dos gorilas que estiveram no poder entre 1964 e 1970, quando foi composta.

Eu, particularmente, não acredito.

E cantaria hoje, aos gritos, dentro dos ouvidos de boa quantidade dos políticos de merda que ainda ocupa cargos públicos. Ainda que pelo voto.

Até.

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A XÊNIA E O SZEGERI

“Eu vou voltar aos velhos tempos de mim

vestir de novo o meu casaco marrom”

(Danilo Caymmi – Renato Corrêa – Guarabyra)

Escrevo ainda em estado de choque e explico.

Cheguei ontem do trabalho por volta das 19h, depois de um dia inteiro tomado por compromissos, cansado, a fim de um bom descanso. E fui, depois do banho, ao computador para ler uma coisa ou outra em busca de distração (Dani não estava, ainda, em casa). E foi o início de meu drama. Não. Drama, não. Foi o início do meu choque. Isso! Isso! Choque parece-me perfeito. O mesmo choque que você, meu fiel leitor, sofreu no instante em que deparou-se com essa senhora grisalha com esses olhos de “tô te vendo, hein…”, bem lânguida.

Fui ao blog do meu irmão Szegeri. E – sinto o mesmíssimo choque agora, escrevendo sobre o troço – deparei-me com um arremesso ao passado protagonizado por ele. Num texto que ele chamou “Xênia e você”. E quando eu li “Xênia e você”, ou melhor, quando eu li apenas o nome “Xênia” (feio pra burro, diga-se de passagem), tive uma série de arrancos travados no peito. Vou explicando, vou explicando.

Meu primeiro choque foi sonoro. Eu fiquei repetindo (lembrem-se que sofro de TOC) o nome “Xênia” como se fosse um mantra (a empregada confessou-me, horas depois, que pensou seriamente em pedir demissão ao me ver andando em círculos na sala repetindo o nome feio) sem ligar o nome à pessoa.

Daí deu-se a luz. Sim! Xênia! Aquela apresentadora da TV Bandeirantes, programa que fazia um tremendo sucesso no ano de 1977!

Segundo e, talvez, maior choque. Foi quando eu li a seguinte frase escrita por ele, Fernando José Szegeri (escrevo seu nome inteiro para que tudo cresça em dramaticidade): “Quando eu era criança, morávamos numa casa de bairro onde eu, (…)”.

Não sei se vocês já captaram a razão do meu choque praticamente anafilático e quase fatal. Fernando José Szegeri já foi criança.

Vejam bem uma coisa. Para mim, que o conheço já há uns 10 anos, o Szegeri nasceu da forma como é hoje.

Barbado. Peludo. Gordo. Já funcionário público e já sonhando com a aposentadoria. O Szegeri, para mim, foi contemporâneo do Borba Gato, o bandeirante paulista. Foi, conta a lenda (que repete-se até hoje), o que mais chorou quando enterrou o amigo, a quem chamava de Borbinha, em 1718. Em 9 de janeiro de 1822, foi Fernando José Szegeri quem deu uma força a D. Pedro I para que ele se mantivesse no Brasil contrariando as ordens das Cortes Portuguesas. Daí meu choque, absoluto, diante dessa confissão.

Mas há mais! Há ainda mais!

Novo choque ao ler a frase com que Fernando José Szegeri fecha o texto: “Mas hoje, imobilizado no trânsito, sapatos encharcados, deu uma tremenda vontade de ouvir a voz da Xênia embaixo de um túnel de almofadas e esperar minha mãe trazer uma bandeja bem cheirosa com misto quente e nescau batido no leite.”

Vejam bem! Foram confissões demais, e ao mesmo tempo, para que meu combalido coração a tudo absorvesse.

Depois de confessar-se criança um dia (ainda acho que ele mente nesse trecho), ele teve, ontem, debaixo de um temporal paulista, a nostalgia do túnel de almofadas e da bandejinha com misto quente e Nescau batido no leite.

Não sei se vocês hão de concordar comigo. Mas eis aí um quadro impossível de ser composto.

O funcionário público exemplar, Fernando José Szegeri, escondido debaixo de um monte de almofadas esperando dona Cecília chegar com seu lanchinho.

Impossível. Um quadro inverossímel.

Só creio – e está lançado o desafio – com farta prova documental.

Até.

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O REI E EU

“Eu sou terrível, vou lhe contar
Não vai ser mole me acompanhar”

(Roberto Carlos – Erasmo Carlos)

Vamos hoje, como diria minha sumida comadre Mariana Blanc, fazer a linha confissão.

Eu e Roberto Carlos temos algo em comum. Não é uma cobertura na Urca, não é um iate atracado na Marina da Glória, não é uma mãe de nome Laura, nada disso. Sofremos, ambos, de TOC.

E que beleza isso dito assim! TOC! Chega a soar simpático. Dá pra ouvir o muxoxo de uns, “puxa vida, queria ter TOC também!”.

Mas basta dizer que sofremos de Transtorno Obsessivo Compulsivo e tudo toma ares gravíssimos. Mas nem tanto, nem tanto!, já que o troço chega a ser ligeiramente cômico. Quando deparei-me com o diagnóstico (que eu mesmo fiz, preciso dizer) decidi, a cada encontro, subir no banquinho e dizer a todos os presentes, na direção exatamente oposta a que papai gostaria que eu tomasse:

– Eu tenho TOC! – e danava a discorrer sobre os sintomas e meus comportamentos.

E eis minha surpresa.

Não foi uma, nem foram duas, três, quatro, cinco vezes. Perdi a conta. Ao final de minha pequena palestra sempre vinha alguém me procurar, sempre! E dizia com a mãozinha em concha no meu ouvido:

– Eu também sou assim! – e vinham os relatos, alguns bem piores que o meu. Bem piores!

Vamos a uma ou duas passagens pra manter o humor.

Comecei a achar que eu tinha algo estranho (meu mano Szegeri, tenho mesmo?, não, né?) quando, indo para o trabalho, esperando o mesmíssimo ônibus de todos os dias, o 406A, fiz algo que jamais supus fazer. Notem bem. Todos os dias eu tomo a condução no mesmo horário, quando o lotação (oi, Bia!) vem rigorosamente vazio. Entro, pago a passagem ao motorista e sento-me para ler. Como entro sempre no ônibus ermo, sem viva alma em termos de passageiro, nunca havia notado algo que notei, apenas, numa determinada ocasião que passo a lhes contar.

Fiz o sinal. Parou o ônibus. Paguei a passagem ao motorista. Passei pela roleta. E fui em direção ao meu lugar (jamais havia notado que o lugar era meu). E havia, naquele dia, um passageiro e justamente sentado no meu lugar.

O que faria um cidadão sem TOC?

Sentaria numa das mais de 20 poltronas disponíveis na condução.

Eu, não. Estaquei diante do pobre homem e fiquei, de pé, as mãos agarradas no apoio do teto, olhos cravados no invasor. E suava, suava, suava de um ódio e de um desconforto que não cabiam dentro do pequeno ônibus (o 406A é daqueles microônibus).

“Meu Deus, como eu vou fazer pra ler agora?”, “Vai ser insuportável ir de pé até o Largo do Machado…”, mas esses pensamentos não duraram nem dois minutos. Sentindo-se profundamente incomodado – o homem não tirava os olhos, de soslaio, de cima de mim, que furava sua pele com a ponta afiada de meus dois olhos – o homem levantou-se e sentou-se em outro canto.

Sentei-me, então, no meu lugar, espreguicei-me, disse um “ahhhhhh…” bem lento, abri o livro e comecei a ler. Ainda sorri em direção ao homem que estava com um olhar assustadíssimo e fiz um “obrigado” com a cabeça. O cara saltou no ponto seguinte, não sei se por ser, de fato, seu destino ou por medo (acho que por medo).

E vejam isso!

A mulher de um grande amigo (não digo quem é e pronto) dia desses, após minha confissão pública, chegou-se a mim e disse:

– Eu sou pior! Eu sou pior! – e sorria excitada esfregando as mãos.

– Conta, conta, conta! – devolvi, já de mãos dadas com ela, e dançávamos uma ciranda, rodando sem parar.

Antes de contar-lhes, uma coisa que me intrigou. Por que essa incidência tão grande de manifestações de TOC nos transportes públicos? Ainda vou me aprofundar no palpitante assunto.

Mas disse-me ela que vai para o trabalho, diriamente, de metrô, que toma na estação terminal, na Praça Saens Peña. E que nem precisou passar pelo sufoco que eu passei, vendo seu lugar ocupado por um forasteiro, para perceber que era estranho seu comportamento.

Porque ela não tem um banquinho preferido. Ela tem um vagão preferido e dentro desse vagão preferido, um banco preferido. Notem o requinte e a especialização da coisa!

Um dia, contou-me ela, o metrô chega na estação terminal vindo da zona sul. Todos saltam pelo lado direito do trem, para que só então abra-se a porta do lado esquerdo para o embarque dos passageiros. Ela nota, sôfrega, que um passageiro não se levanta. E justo no seu lugar. E o que fez a moça?

Não enfrentou o forasteiro, como eu fiz. Não.

Teve uma crise de choro incontrolável, voltou pra casa a pé, teve febre (ainda no caminho de casa) e ligou para o trabalho alegando um febrão e dores insuportáveis pelo corpo.

– Não consegui, Edu, simplesmente não consegui superar o trauma! Você está de parabéns, viu? Viu como eu sou bem pior! Bem pior! – e continuamos a ciranda.

Daí em diante percebi que meu TOC é levíssimo, levíssimo. Mas para evitar novas supresas, passei a andar alguns quarteirões para pegar a condução no ponto final.

Até.

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CÁSSIA (por Fernando Toledo)

“Eu só peço a Deus

um pouco de malandragem…”

(Cazuza – Frejat)

Pegando carona na idéia genial do meu irmão Szegeri, que reeditou um texto também genial do igualmente genial e saudoso Fernando Toledo, faço o mesmo aqui, hoje, no Buteco, transcrevendo o que ele escreveu, em 04 de janeiro de 2002, na revista “Sentando o Cacete”, que mantínhamos na grande rede. Ele fecha o texto, chamado “Cássia”, dizendo um “tchau” pra Cássia Eller, morta precocemente em dezembro de 2001. Estão os dois, agora, enchendo a cara por aí.

“A sensibilidade é algo curioso: ao mesmo tempo em que é o canal que nos permite acessar o mundo, apreendê-lo, senti-lo e captá-lo, ao mesmo tempo é um veneno que pode, em altas doses, fazer com que o mesmo se apresente como um caos doloroso e incompreensível, machucando-nos a cada instante, sem dar um segundinho sequer de colher-de-chá: um rolo compressor recoberto de espinhos incandescentes a passar de forma ininterrupta, promovendo uma verdadeira overdose sensorial. Àqueles atingidos por esta praga, restam poucas opções: se embotar como seres humanos, ignorando propositalmente a existência da mesma, se tornando a cada dia menos e menos humanos, se coisificando, enfim, ou buscar um alívio qualquer, algo que faça a tempestade sossegar um pouco e que dê um pouco de mansidão às ondas. E que possa proporcionar um pouco de tranqüilidade interior (mesmo que forjada), de forma a ordenar um pouco a linguagem e tornar inteligível o discurso – até para si mesmos.

A obra de Arte é exatamente a ordenação do caos interior, das ondas desconexas, sob a forma de um discurso estético, captável pelo público e a crítica. A tradução do Universo externo ao artista, transmutado por suas idiossincrasias específicas, e devolvido, após esta transmutação, ao tal do Universo – cabendo a este aprová-lo esteticamente ou não, apreciá-lo, julgá-lo, ou, simplesmente, ignorá-lo. A angústia, ou seja, o motor que operou essa reação química, esta transformação do Universo Real (comum a todos) em Universo Verdadeiro (aquele em que crê o artista criador, o que ele sente), não pode, nunca, ser totalmente tocada pelo público consumidor. Apenas sua conseqüência (ou seja, a obra final) é oferecida, sendo, pois, esta angústia, apenas possível de ser pressentida – e nunca, em toda a sua dimensão, compreendida ou vivida por parte do público.

A verdadeira angústia é sempre uma incógnita.

Muitas vezes esta angústia se mostra, para o seu possuidor, algo incomensurável, o tal rolo compressor citado no primeiro parágrafo. Nestas ocasiões, o artista experimenta o desespero, a incapacidade de se ordenar, de continuar respirando em um meio que se afigura ininteligível, e que considera este seu mesmo desespero como também ininteligível. E daí surge sua inadequação, sua necessidade de um paliativo qualquer, de um flit paralisante que possa fazer as coisas sossegarem um pouco e adquirirem até um certo sentido. Temperamentos radicais, atitudes extremadas e/ou auto-destrutivas, álcool, drogas et um monte de coeteras muitas vezes são utilizados com este fim. E o artista passa por simples porra-louca, visto que os motivos que gritam em seu interior são apenas seus: são, como disse antes, incógnitas para os que o cercam. A inadequação aumenta à medida que, paradoxalmente, se busca minimizá-la. E cresce a bola de neve. Não quero ser leviano e afirmar que as drogas tenham sido o motivo da morte de Cássia Eller: conversei com um neurologista e ele me disse que, daqui do lado de fora, sem exames, laudos etc., seria impossível aventar possibilidades. Quero apenas tentar compreender a Cássia, tentar pelo menos roçar de leve seu inferno interior, ouvir pelo menos o sussurro de seus gritos de angústia. Dar um pequeno aceno de mão e poder dizer que sim, Cássia, eu entendo. Lamento profundamente, chego a ficar puto com o acontecido, mas não com você. Que lamento que tenhamos nos distanciado tanto de nossa sensibilidade que nos seja extremamente difícil esse vislumbre de compreensão; que o mesmo requeira teorizações e uma enorme quebração de cuca, quando o natural seria que, simplesmente, erguêssemos um copo de cerveja em sua homenagem e brindássemos à sua Arte, a sua atitude, a sua extrema liberdade, ousadia e coragem, enfim.

Em vez disso, ficamos por aqui consultando alfarrábios em nossos escritórios e, hipocritamente – de leve, para que ninguém perceba –, morrendo de inveja de todas essas suas qualidades.

Tchau, Cássia.”

E até, digo eu.

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>EU, ESTRANGEIRO NA BARRA

>

“E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento”

(Caetano Veloso)

Passei, no sábado passado, por estranhíssima experiência. Já lhes disse milhares de vezes que só vou à Barra da Tijuca (cada vez menos da Tijuca, diga-se de passagem, e cada vez mais americanizada) para visitar a Magali, a irmã que eu não tive, e cia.. Nada mais me seduz naquele pedaço do Rio de Janeiro. Aliás, justiça seja feita, um pedaço belíssimo e a fotografia não me deixa mentir. Mas nada ali é Rio de Janeiro e eu sou capaz de ser mais amplo e dizer que nada ali é brasileiro. Da patética Estátua da Liberdade em frente ao (vão tomando nota!) New York City Center, passando pelo Barra Garden, Barra Mall, Barra Medical Center e por outras babaquices e você definitivamente sente-se fora da ordem. Pois bem. Fui, no sábado, deixar a Sorriso Maracanã às oito e meia da manhã no (vão tomando nota!) Barra Tower para um compromisso de trabalho que duraria até às cinco da tarde. Como eu iria buscá-la, pensei: vou ficar na praia, lendo, depois vou ver as meninas na Magali, depois venho buscá-la. E assim fiz. E eis que aí deu-se a estranhíssima experiência.

Antes, porém, breve explicação para que tudo “make sense” (isso vai em homenagem ao Szegeri, contaminado pelos arrancos em inglês que escapam da Maracanã, vez por outra, e para que fique ainda mais coerente com o cenário).

Estou com 36 anos. E há 72 anos eu vou à praia em Ipanema. É bem verdade que durante um período da minha adolescência eu ia à praia na Barra, mas isso durou pouco e por isso omito o fato. Voltando. Há 72 anos eu vou à praia em Ipanema. Em frente à Barraca do Mineiro, o bom Miguel, entre a Vinicius de Moraes e a Farme de Amoedo. Obsessivo que sou, fico no mesmo metro quadrado de areia, sei de cor os prédios às minhas costas, as ilhas à minha frente, cumprimento o Dois Irmãos à minha direita, o Arpoador à minha esquerda, e todos os freqüentadores não me são estranhos. Ir à praia na Barra, depois de 72 anos, pareceu-me que seria levemente desconfortável.

E foi.

Sabem o que é ambiente hostil? Pois é. Sei que lhes parecerá pequena doença, e reconheço que pode ser, pode ser! Começando por estacionar o carro. Encontro uma vaga. Embico o carro. E vem um guardador. Não sendo o Paulo, meu guardador de fé em Ipanema, com quem deixo sem medo a chave do carro, já fico puto. Abaixo o vidro e digo:

– Que foi?

– Quer a vaga, meu patrão?

– É tua?

– Ô, patrão… devagar, patrão…

– Não sou teu patrão, malandro. Cadê o tíquete do estacionamento?

– Não tem, chefia…

– Então não tem dinheiro também. Bom dia.

Tomei o rumo da praia. Quase fui atropelado. A largura da Avenida Sernambetiba difere da largura da Vieira Souto, razão pela qual distrai-me e por pouco não fui pra Terra do Pé Junto. Cheguei à areia. E que horror. Que horror!

Toneladas de barracas de ambulantes. Mas tomem nota. Em Ipanema há a Barraca do Mineiro, a Barraca da Dilma, a Barraca do Uruguaio. Naquele breve trecho onde eu estava (em frente ao Barramares, pedaço da praia que é uma espécie de filial desativada da Praça Saens Peña, que aquilo era assim de tijucano!) as barracas que eu avistava eram a Brother´s Dream, Barra´s Point e Unforgetable. De chorar.

Lembrei-me do Dalton, que ficaria “puzzled” junto comigo. Tudo me era estranho. Cheguei a achar que o mar era doce. E tudo culminou quando, interrompendo minha leitura, um camarada a quem nunca havia visto na vida chegou-se e disse:

– Ô, brou… Eu vi que tu tem protetor solar aê… Dá pra emprestar?

Sem tirar os olhos do livro:

– Não.

– What? – disse o cara – O que é que custa, brother?

Daí tirei os olhos do livro:

– Custa R$15,00 em qualquer farmácia.

Ele saiu e senti-me calmíssimo. Vá entender.

Mudando o rumo da prosa, de pato a ganso.

Faz anos hoje, 27 de março, a Inês, a quem já tantas vezes referi-me aqui no Buteco. Eu e Dani a conhecemos no final do ano passado, ela que esteve por uns dias no Brasil, e depois de uma noitada rápida no Trapiche Gamboa, uma clássica passada no Capela (onde cantei com sotaque lusitano, lembram?), uma feijoada deliciosa no Bar do Mineiro em Santa Teresa e uma passadinha a jato no “Nem Muda Nem Sai de Cima” estabeleceu-se um bem querer mútuo que rende frutos.

Já lhes disse, por exemplo, que a Inês, que mora nos EUA, num gesto dulcíssimo, fez a ponte entre nós (eu e Dani) e seus pais (que provam que é mesmo pela árvore que se conhece o fruto) e durante nossa viagem a Portugal, em maio/junho, ficaremos por um ou dois dias em Setúbal, onde moram Próspero e Cidália. Não lhes disse, e digo agora, que mandou-nos carinhosíssima carta, manuscrita (!!!), com um CD com, vejam isso, 46 horas de música, suas preferidas. Um carinho só.

Pois então.

Todo mundo tem suas maluquices e suas obsessões, eu que o diga. A Inês é doida pelo amarelo, e vive a repetir isso.

Então, eu e a Sorriso Maracanã, de pé no balcão imaginário do Buteco, erguemos o copo à sua saúde e embarcamos no delírio da imagem, oferecendo a ela, através do monitor (haverá um dia em que isso será possível?) tulipas amarelas pela data de hoje. Muita saúde, muitas felicidades, Inês, e todo nosso carinho.

Até.

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>MINHA SENHORA!

>

“Estão nas mangas dos Senhores Ministros
Nas capas dos Senhores Magistrados
Nas golas dos Senhores Deputados
Nos fundilhos dos Senhores Vereadores
Nas perucas dos Senhores Senadores
Senhores! Senhores! Senhores!
Minha Senhora!
Senhores! Senhores!
Filha da Puta!
Bandido!
Corrupto!
Ladrão!
Sorrindo para a câmera
Sem saber que estamos vendo
Chorando que dá pena
Quando sabem que estão em cena
Sorrindo para as câmeras
Sem saber que são filmados
Um dia o sol ainda vai nascer quadrado

Isso não prova nada!
Sob pressão da opinião pública
É que não haveremos de tomar nenhuma decisão!
Vamos esperar que tudo caia no esquecimento
Aí então…
Faça-se a justiça!
Vamos arrumar vossas acomodações, Excelência.
Filha da Puta! Senhores! Corrupto!
Senhores! Bandido! Senhores! Ladrão!”

(P. Miklos, T. Bellotto, C.Gavin)

Vocês devem ouvir essa canção, dos Titãs, aqui. E ouçam olhando nos olhos dessa senhora. Olhem nos olhos dessa senhora, deputada federal por São Paulo, e percebam o cinismo desse sorriso. Olhem nos olhos dessa senhora que, na madrugada de ontem, comemorando a absolvição de mais um porco chafurdado na lama do valerioduto que enoja o País, deu de sambar, dançar, rebolar, com os dedinhos pra cima e com a bunda, enorme e imunda, rebolando pra lá e pra cá, sem saber que estava sendo filmada, afinal, já era tarde. Olhem nos olhos dessa senhora e tenham ódio dessa senhora, que o ódio nessas horas é santo remédio. Ódio, nessas horas, é prova de coerência de princípios. Ódio, nessas horas, serve para que gente como essa escrota (não me vem outra palavra à mente) sinta, ainda que à distância, o sentimento que o cidadão nutre com relação a vermes públicos como ela. Ela que hoje, cínica, pede desculpas ao povo brasileiro (que não a desculpa porra nenhuma) através do jornal “O Globo”, que publicou hoje, na primeira página, quatro fotos dessa lontra gorda rebolando e debochando da sua e da minha cara. Vocês me perdoem perder o prumo, deixar o chope de lado e socar, com raiva, o balcão imaginário do Buteco. Mas a coisa tá feia. E se me falta sobriedade pra falar sobre o episódio, deixo com vocês texto do Jorge Bastos Moreno, no mesmo “O Globo” de hoje:

“- Mano véio, aqui você só não vai ver é boi voar! – foi o que ouvi no primeiro dia em que cheguei ao Congresso, como repórter, em 1976, do então deputado paraibano Ernani Sátyro. Surdo, chamava todo mundo de “mano véio”.

E eu vi muita coisa.

Vi o Congresso ser fechado em 1977.

Vi parlamentares arrancados da tribuna pelas cassações da ditadura. Entre eles, Alencar Furtado, aquele que disse que sua luta era para que não houvesse lares em prantos: “filhos órfãos de pais vivos, ou mortos, talvez, quem sabe; órfãos do talvez ou do quem sabe”; viúvas de maridos mortos ou vivos, quem sabe, talvez; viúvas do quem sabe ou do talvez”.

Vi Ulysses Guimarães dizer: “ Tenho ódio à ditadura; ódio e nojo”.

Vi Tancredo chorar por JK.

Vi mães, viúvas e órfãos com cartazes de seus mortos e exilados clamarem por anistia.

Vi o doido manso Teotônio Vilela se rebelar contra o regime.

Vi a eleição de Tancredo, vi a Constituinte.

Vi momentos de tristezas e alegrias.

Nas tristezas, ouvia o Hino Nacional cantado com vozes enlutadas, sempre seguido nessas horas do coro “ a luta continua”.

A alegria ecoava em palmas e papel picados.

Mas nesta madrugada vi uma cena que nunca vou esquecer: a deputada Ângela Guadagnin (PT-SP) dançando, sambando como passista do agouro ao ver que o os votos apurados já davam pra salvar de cassação o deputado João Magno (PT-MG), um dos mensaleiros da Câmara.

Nem os canhões, fuzis e metralhadoras que tentaram desmoralizar pela força o Congresso superariam o escárnio da deputada. Longe do “Necrológio dos desiludidos do amor”, onde as amadas dançavam “um samba bravo, violento, sobre as tumbas deles”, a dança da deputada é o mais imoral dos emblemas da degradação da política brasileira.

Talvez a perplexidade foi que impediu o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, de exigir o devido respeito da deputada em pleno velório da Casa.”

Acabo de ouvir entrevista dessa senhora na CBN. De vomitar. Principalmente quando ela se justifica dizendo que é “uma pessoa humana”.

Até.

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TIJUCA

“Tenho impressa no meu rosto
e no peito, lado oposto ao direito, uma saudade
(que saudade!)…”

(Wilson Moreira – Nei Lopes)

Eis-me aí, nem um ano de idade, em 1969, na Praça Afonso Pena, na Tijuca, onde nasci e fui criado, entre as pernas de meu pai. E pra Tijuca, um poema:

Há na Tijuca, onde estão minhas raízes, e onde me basto,
uma tristeza indefinida, intrínseca, nenhum alento,
uma melancolia insuportável e um torpor nefasto,
que me angustiam quando inutilmente tento
suportar domingos que me asfixiam.
Há na Tijuca, principalmente aos domingos,
onde passei dias tão felizes,
torneios de bocha, porrinha, bingos,
gigolôs de folga, elegantes meretrizes,
bares vazios, corações baldios,
casamentos destruídos, adultérios, incestos,
restaurantes desonestos, bordéis frios,
macarronadas e toneladas de restos de dores
boiando sem rumo certo.
É sempre domingo na Tijuca.
E há sempre uma filha reprimida,
um rapaz que freqüenta clubes,
um homem de Rider, bermuda e meia,
encardida,
uma mulher de bobe no cabelo, feia,
sozinha na vida,
uns aposentados saudosistas que cantam,
famílias reunidas por força da rotina,
a tevê ligada, as festas, as bodas,
os quinze anos da menina que à tola mãe encantam,
as debutantes, as valsas, muitas virgens,
filas na churrascaria, avós e tias solteiras,
devaneios, overdoses, vertigens,
gaiolas de passarinhos,
fofocas, disse-me-disse,
mafuá,
vizinhos, vizinhos, vizinhos,
e minhas raízes, que por mais que eu tente,
não saem de lá.
Há na Tijuca um mórbido incentivo ao suicídio
e uma legião de suicidas que vagam tristes
pelas ruas da Tijuca aos domingos.

Há nas praças da Tijuca uma tristeza de preces dominicais,
e uma comunhão funesta,
e a Tijuca não presta,
e a Tijuca dói tanto,
a Tijuca, meu canto,
meus ais…
E é sempre domingo na Tijuca…
E é tudo tão pequeno na Tijuca…
E faz tanto calor na Tijuca…
E há, ainda, muito tédio na Tijuca, onde o tempo não passa,
onde o tempo se arrasta e não pode mover-se…
Não fosse o tempo dos noventa sagrados minutos dos jogos
aos domingos, no Maracanã,
e a Tijuca seria um nada, um silêncio ensurdecedor,
um inferno de asfalto e sangue.
É sempre domingo na Tijuca.
E faz sempre domingo na Tijuca.
E a Tijuca é um mangue.
E minhas raízes que de lá não saem…
E ainda que saiam, hão de retornar sempre,
como um bumerangue,
vítimas da arapuca que a Tijuca arma.
A Tijuca
é meu inevitável e inexorável carma.

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RABADA, A RECEITA

Toca de tatu, lingüiça e paio e boi zebu
Rabada com angu, rabo-de-saia…
(João Bosco – Aldir Blanc)

(pro Marcelo Coelho, de novo)

Lembrem-se que quando eu escrevi, aqui no Buteco, a receita da minha feijoada, aqui, pedida pelo meu dileto amigo Coelho, mencionei que ele havia, na mesmíssima oportunidade, aflito, pedido também a receita da rabada (eu ia dizer “da minha rabada” mas não pegaria bem).

E, escoltado pela belíssima fotografia da rabada que preparei na casa de papai e mamãe, passo a ensinar (oh, maldita pretensão!) ao Coelho, e a todos os que gostam da coisa, como preparo o prato, e vai na medida para 10 pessoas.

Antes de mais nada, é preciso decidir fazer a rabada no mínimo com quatro dias de antecedência, que é esse o tempo que a carne leva, na geladeira, dentro da vinha d´alhos. Então, mano Coelho, se você pensar na rabada pra um domingo (o ideal! o ideal!), compre tudo na quarta-feira pois na quinta à noitinha você terá de começar o preparo do prato.

Vamos às compras antes. Para a vinha d´alhos são 3 garrafas de vinho tinto (seco, pelamordedeus!), 1 litro d´água, 5 cebolas de casca bem escura (as argentinas!) cortadas em quatro, 8 dentes de alho inteiros, folhas de louro fresco (eu ponho umas 10), 3 ramos de tomilho, 1 maço de cebolinha e um maço de salsinha picadas, e uma colher de café de pimenta-do-reino preta em grão.

Para a rabada propriamente dita, muna-se de paciência. Esqueça os supermercados para comprar a carne. Os mercados metem a rabada de qualquer jeito na serra elétrica e estraçalham tudo. Prefira um açougue. De preferência com um cabeça branca no comando. Ele seguramente vai piscar o olho quando você fizer o pedido e vai dizer:

– Esse entende das coisas!

É o seguinte: peça a ele 3kg de rabada cortada na junção dos ossos. Eis um dos segredos. Assim, mesmo bastante cozida, a carne não vai soltar completamente do osso. Vá por mim. Tenha ainda por perto óleo de milho, uma 1 cebola picada, 4 dentes de alho picados, 1 maço de coentro picado, 1 maço de manjericão picado, além de sal e pimenta-do-reino moída na hora, a gosto.

E para a polenta, acompanhamento ideal, você vai precisar de umas 10 xícaras de chá do líquido da vinha d´alhos, 3 xícaras de fubá de milho, 3 colheres de sopa de manteiga sem sal e sal a gosto.

Comprou tudo? Vamos em frente.

Quinta-feira à noite, num belo copo, umas 5 pedras de gelo e uma boa dose de um 8 anos. Pegue uma senhora bacia plástica com tampa (vende-se a rodo isso hoje em dia) e coloque toda a rabada. Cubra tudo com todos os ingredientes da vinha d´alhos. Vá sacando o cheiro, malandro, inebriante… Depois tampe e ponha na geladeira. Na sexta e no sábado, umas duas vezes ao dia, você vai lá na geladeira, põe a bacia pra fora, destampa – o uísque sempre ao lado! – e sente o aroma, mexendo para distribuir bem a vinha d´alhos.

Sábado à noite você retira, uma por uma, a rabada da bacia, reservando a vinha d´alhos. Com uma toalha que você jamais voltará a usar, enxugue – mesmo! – peça por peça. Enxugou? Deixa numa bacia à parte.

Coe toda a vinha d´alhos e guarde o líquido.

Daí pega o panelão. Ponha o óleo, uns 100ml, não sei, tem que ter olho! Refogue a cebola e o alho, até começarem a dourar. Daí vá pondo, devagar, a rabada, dourando uma por uma… Veja você que tem que ser uma senhora panela!!!!! Vá pondo, aos poucos, até cobrir, a água da vinha d´alhos, lembrando de separar as 10 xícaras pra fazer a polenta no final! A rabada está coberta?

Então coloque os tomates, o manjericão e o coentro, aliás, é esse exato momento que a fotografia mostra!

Você vai deixar umas 3 horas cozinhando em fogo baixo, mas sempre de olho, até a carne se desprender do osso (não soltar totalmente!), acrescentando água sempre que necessário. Ficou pronto? Tira a panela do fogo, deixa esfriar um bocado e deixe na geladeira umas seis horas, até que a gordura excedente endureça na superfície.

No domingo, quando for servir, retire a gordura da superfície (é bem fácil), leve ao fogo de novo, tempere com sal e pimenta e está prontíssimo!

Agora, a polenta. Eu ia lhe dizer como fazer polenta. Mas lembrei-me que você é casado com uma Terzi, camarada! Itália em estado bruto! E polenta é com eles! Divirta-se!

Até.

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>O JUIZ

>

“Ah, meu bom Juiz
Não bata este martelo nem dê a sentença
Antes de ouvir o que o meu samba diz…
Pois este homem nao é tão ruim quanto o senhor pensa…”

(Bezerra da Siva)

O Bigode entrou no bar aos berros:

– O Beto passou no concurso! O Beto passou no concurso!

Seu Osório, que não é lá muito chegado a euforias antes do almoço, espalmou a mão em direção ao Bigode, trovejou um caprichado arroto e berrou ainda mais alto:

– Que concurso, ô putão? E que Beto, animal?

– O Alberto Anil, seu Osório, filho da dona Olívia e do seu Radamés… Passou pra juiz!

– Aquele gordo? – perguntou Bule por trás do balcão.

Seu Osório, Bigode e Zezinho olharam ao mesmo tempo para o obeso Bule, rindo, e foi Bigode quem o respondeu:

– Ele mesmo. Mas não tão gordo quanto tu! – e deu de gargalhar.

No que foi interrompido pelo Bule:

– Experimenta me sacanear pra ver se tu bebe mais uma dose do teu conhaque na base do pendura…

– Foi mal, Bule, foi mal… E já que tu falou o nome do santo, desce um pra mim, vai…

Bule o serviu e Bigode virou num trago só. E continuou:

– E juiz federal, minha gente! Quem diria… Um juiz na nossa rua! E federal! E ó… parece que hoje o seu Radamés vai descer com o filho e com a dona Olívia pra uma comemoração aqui no bar, foi o que me disseram quando chegaram, agorinha mesmo. Tavam numa alegria de fazer gosto…

– Grandes merda – foi o gentil comentário do velho Osório.

Sacomossão as coisas na Vila, né? Em coisa de uma, duas horas, não se falava noutro assunto nas redondezas. O salão de beleza lotou, as senhoras querendo estar nos trinques pra tal festa anunciada pelo Bigode. E o buteco, lá pras seis, seis e meia, já estava lotado. Seis-com-Fome, Amorim, Vidal recém chegado do consultório, Quincas com o táxi estacionado diante do bar e meia dúzia de garrafas de cerveja no teto do carro, Amorim, no lugar de sempre, Zezinho com o mau humor característico, seu Osório de papo com Waldomiro, que não aparecia há várias semanas, tinha até cadeira de praia na calçada, tremenda expectativa pra entrada triunfal da família Anil.

Daí oito em ponto apontam na esquina os três: dona Olívia, Alberto no meio e seu Radamés, os três de mãos dadas, tendo dona Olívia, equilibrado na mão direita, um enorme prato com um bolo ostentando uma figura tosca segurando uma balança, a Justiça.

Explodiram aplausos, e foi um tal de puxa-saquismo de deixar lobista com vergonha:

– Bob, meu querido! – foi o que disse o Waldomiro que estava conhecendo o Alberto naquele instante.

– Ô, Alberto… eu sempre te disse que você levava jeito pra juiz… – disse com um cigarro pendendo da boca o Amorim que vivia dizendo, pra quem quisesse ouvir, durante as peladas, que em matéria de futebol o Alberto tinha talento, no máximo, pra ser o árbitro.

– Vem cá, vem, Betão!

– Excelência!

– Vade mecum!

E levou-se bem uns 15 minutos nessa papagaiada de querer agradar o moço.

Daí o Bule sugeriu, depois de pedir silêncio, antes de partirem o bolo:

– Seu Osório vai subir no banquinho e fazer um discurs…

Alberto irrompeu de dedo em riste e estacou diante do Bule:

– Nã-nã-ni-nã-não. Quem vai falar hoje sou eu.

Um “ohhhhhhhhhhhh” de espanto espocou na esquina.

Seu Osório arrotou assim que o Alberto, apoiando-se nos ombros do Zezinho e do Bule, subiu na cadeira, que o banquinho não ia agüentar o peso.

Alberto, segurando um martelo desses de amaciar carne, começou:

– Minha gente, meus vizinhos, meus amigos, meus afetos e meus desafetos…

Seu Osório só trovejando, coçando a orelha de pé no balcão, bicando sua cerveja, quando disse ao Bule:

– Lá vem merda.

– … quero me dirigir a você, Amorim, que nunca acreditou em mim. Estou aqui, Amorim. Estudei. Fiz a prova. E hoje sou Juiz Federal, com “j” e com “f” maiúsculos. Quero me dirigir a você, Bule, que vive reclamando do faturamento do bar, meu caro Bule… É difícil manter um bar, Bule? É. É muito difícil. Mas diziam que a prova que eu fiz era difícil. Mas estou aqui. Passei. Sou Juiz Federal…

E ficou nessa ladainha, nessa autopromoção constante, citando um por um, neguinho já bocejando, o bolo já quase no fim, quando seu Osório pediu a palavra. Assustado, Alberto interrompeu o discurso e todos voltaram, de novo, a prestar atenção no troço. Fez sinal com a mão pra que o Alberto descesse. Alberto desceu. E subiu, o velho Osório, no banquinho. Mandou um arroto federal e disse:

– Tenho mais de 60 anos, Excrescência, e abaixa esse nariz de merda quando falar comigo!

Aplausos, muitos aplausos, dona Olívia pálida e seu Radamés abanando a mulher. Alberto, vermelhíssimo, esboçava reagir mas a autoridade do seu Osório ali é impressionante. E ele continuou:

– Sem mais delongas, Alberto, tu me perdoe a intimidade, data vênia, mas vá pra pôta que o pariu com seu cargo, com sua pose, com sua empáfia…

E nem terminou o discurso.

A patuléia assobiava, gritava, carregava seu Osório no colo, e arremessava no pobre Alberto os farelos que restavam do bolo. Partiram pra casa dona Olívia, Alberto no meio e seu Radamés, tendo seu Osório gritado antes dos três atingirem a esquina seguinte:

– A Vila não quer abafar ninguém, ô putão! Por isso não vem querendo abafar, não, que aqui tu só se fode!

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O PASQUIM

“O meu pai era paulista
meu avô, pernambucano
o meu bisavô, mineiro
meu tataravô baiano…”

(Chico Buarque)

Na foto vê-se um grande amigo, Luiz Carlos Toledo, abraçado à coleção caprichosamente encardernada, de 12 volumes, mais um sacão desses de lixo industrial de quase um metro de altura contendo jornais ainda a encadernar. Ah, sim… a coleção é do legendário “O Pasquim”, e estão encadernados os anos de 1969 até 1974. Fora, não se esqueçam, todos os exemplares que estão no tal saco.

Ontem estivemos, eu e Dani, a convite do grande Toledo (que vem a ser o “Pai do Ilustrador”), no sítio onde ele e a Luciana se refugiam vez por outra, e ainda na companhia do Pedro (que vem a ser o “Ilustrador”) com a Diana e suas duas filhas, Bia e Nina. Saímos de casa por volta das 10h e chegamos lá pouco antes das 11h. O Toledo me provocando desde a semana anterior, quando fizera o convite:

– Vou te dar o presente do ano! Do ano!

A essa altura vocês já sabem. O malandro, num gesto que me fez ter vontades olímpicas de fumar de tão nervoso (não fumei), que me fez ter vontade de beber em pleno período de abstinência programada (bebi), entregou-me, um a um, os volumes, enormes como se vê, e ainda disse sorrindo:

– Ainda falta aquele saco! Ainda falta aquele saco!

E eu fazendo força pra não desabar diante do cara e da Luciana (Dani, já que moças são menos controladas nessa hora, já chorava), com a cara mais embasbacada do mundo diante daquele presente que nunca (dito com veemência) imaginei ganhar na vida.

Mas eis o momento em que desabei de vez, em que fiquei com as pernas bambas e os olhos que não desgrudavam do tesouro.

Eu, como vou dizer isso?, pra não cair no chão e abraçar aqueles livros, lancei-me nos braços do Toledo, diante dos olhos da Sorriso Maracanã e da Luciana, e só consegui dizer:

– Obrigado! – pra em seguida tascar-lhe um beijo de gratidão, de sei lá mais o quê (estava visivelmente eufórico), no pescoço.

E ele, mal disfarçando a emoção:

– Não sou eu que estou te dando…

E eu ainda abraçado ao cara.

– É meu pai.

Bem, façam uma idéia do que eu fui dali em diante, vocês que me conhecem. Luiz Carlos, arquiteto, filho do Aldary Toledo, um dos mais destacados arquitetos brasileiros, e um senhor artista plástico, estava ali, diante de mim, entregando a mim um tesouro guardado, com esmero, por seu pai, que lhe dera a coleção a certa altura da vida. E eu fiquei sem saber o que dizer, literalmente.

Mas há mais! Há mais! Ainda há mais!

Já semi-refeitos da “cerimônia de entrega”, já sentados e bicando uma cerveja (minha abstinência foi pras cucuias), eu folheava excitadíssimo o volume I, com a coleção do ano de 1969, quando “O Pasquim” foi lançado.

A capa do jornal número 01 é essa aí embaixo.

O dedo no alto é da Dani, felicíssima por mim.

Então. Eu folheava um por um e o Toledo valeu-se de sua autoridade:

– Pára de olhar isso agora, pô! – e riu.

Estava certíssimo. Eu estava tão absorto ali que não aproveitaria o dia.

E disse ele, olhando pra longe:

– Edu… Eu não poderia dar isso a mais ninguém. E você há de me prometer. Quando você fizer 60 anos, saberá a quem passar esse tesouro, como meu pai fez comigo, como faço agora contigo.

– Prometo, prometo… – também olhando pro mesmo longe que ele, dizendo por dentro ao seu Aldary, a quem conheci quando namorava a filha do “Pai do Ilustrador” (a vida e seus meandros…), que não o decepcionaria.

E ficamos ali bebendo, comendo uma lingüicinha mineira, mudamos o assunto, Pepê chegou com a Diana e as duas meninas, eu fiquei apaixonadíssimo pela Nina, e até a hora de irmos embora, todos, eu não estava exatamente ali, se me entendem.

Ah, e Toledo… Eu continuo sem saber o que te dizer.

Beijo (pra ele) e até (pra todos).

PS: hoje, dia 20 de março, é aniversário da Sônia, minha queridíssima Manguassônia, por quem ergo o copo no balcão imaginário do Buteco.

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