Anteontem, domingo, 27 de setembro, foi dia de São Cosme e São Damião, dia das crianças, das visíveis e das invisíveis, dia dos erês, dia de festa no Brasil que ainda resiste e insiste em ser brasileiro, macumbeiro, festeiro, Brasil por inteiro e sem vergonha alguma.
Preciso lhes contar, antes de qualquer coisa, do olhar que está, ainda, dentro de mim. Distribuindo doces, ao lado de meu mano Felipe Quintans, vi um par de mãozinhas negras estendidas em direção à janela do carro e uns olhos de azeviche, bonitos de doer e brilhando, pedindo um saquinho de Cosme e Damião. Uma única mão, peluda, deu um tapa na pequenina mão da criança e o homem de terno, seu pai, com uma Bíblia debaixo do braço, disse, entre dentes e colérico, um estúpido “não, filha!” em direção a nós. Partimos deixando pra trás os olhinhos brilhantes e marejados diante da intransigência e da ignorância daquele homem, o anti-crioulo. São os pentecostais, meus poucos mas fiéis leitores, que pululam por aí esfaqueando o Brasil e suas mais caras tradições. Mas vamos ao que interessa.
Preparei ontem, com a ajuda de uma porção de amigos queridos, um caruru na Tijuca, no meio da rua, para que nosso domingo fosse perfeito (como de fato foi). E quero dividir com vocês, mantendo uma tradição do BUTECO, a receita do caruru que estava – modéstia à parte – delicioso.
Quem me lê, sabe. Cozinhar é antes de tudo, um ritual. E o ritual começou no sábado de manhã, bem cedo, quando fui, na companhia de Felipe Quintans e Luiz Antonio Simas, comprar os ingredientes na Feira de São Cristóvão. Vão tomando nota! Receita pra 30, 40 pessoas.
Compramos 5 quilos de quiabo, um vidro de 500ml de azeite de dendê, 2 gengibres graúdos, 5 pimentas dedo-de-moça (das gordas!), 2,5kg de camarão seco defumado, 1kg de camarão salgado, 5 cebolas grandes, 2 kg de amendoim com casca e 1kg de castanha de caju. À noite, em casa, já ouvindo Mariene de Castro cantar pros erês, assei os amendoins e deixei esfriar, no forno mesmo.
Domingo, cedinho, fui à feira com Diego Moreira e Luiz Antonio Simas comprar o resto dos ingredientes, fresquinhos. Na barraca do Fernando, atendido como de costume pelo Fábio, na Vicente Licínio, compramos 2 maços de cheiro verde, um de coentro, e na peixaria do Vicente, o maior peixeiro do planeta, 2 kg de camarão.
Mão na massa!

Descascamos os amendoins, já na base da Original geladíssima, diante do PETIT PAULETE, glorioso buteco na Barão de Iguatemi. Fui à cozinha, acendi o defumador pra incensar o ambiente, processei os amendoins e as castanhas de caju. Numa travessa grande, reservei a farofa que resultou do troço. Depois, processei os camarões defumados (depois de bem lavados), reservando a massa, cor de telha molhada (e cheirosíssima!). Logo depois, o mesmo processo com os camarões salgados, também bem lavados, o que gerou uma espécie de purê de consistência pastosa. Reservadíssimo.
Com o auxílio do Paulete e do Fábio, cozinheiro da casa, cortamos em rodelas os quiabos, depois de bem lavados, ligeiramente postos de molho na água fria, secos posteriormente e reservados numa panela grande. Importante deixar sete quiabos inteiros – mistérios e regras da cozinha brasileira que não ousei desrespeitar.
Ralei os gengibres, piquei as cebolas grosseiramente, o cheiro verde, o coentro e as pimentas dedo-de-moça (reservei duas, pra decorar o prato). Tudo separadinho à espera do sinal verde.
A cozinha, a essa altura, já tomada por um cheiro indizível e pela música toda ela consagrada à festa. Zeca Pagodinho, João Nogueira, Mariene de Castro, Maria Bethânia, curimba da boa, e abri o vidro de azeite de dendê.
E tome cerveja!
Dada a largada!
Numa panela bem grande, despejei quase metade do azeite de dendê, acendi o fogo médio e deitei a cebola sobre o azeite. Com uma colher de pau, fui mexendo bem devagar observando a festa de cheiros e cores, a cebola ganhando o dourado do dendê, a panela fumegando e a criançada em festa em órbitas invísiveis a olho nu.

Quando as cebolas já estavam bem douradas, coradas, transparentes, joguei a farofa do amendoim e da castanha de caju, ao mesmíssimo tempo. Mexi, mexi, mexi bem devagar, abaixei um bocado o fogo, fazendo com que o azeite se incorporasse, sem pressa, à farofa. Que aroma, que aroma, que aroma!
Quando anunciava secar demais, a massa, eu despejava um bocadinho mais de azeite de dendê, à moda Caymmi.
E sem pressa, sempre, à moda baiana.
Enquanto eu cozinhava, o couro comia do lado de fora. Os amigos chegando, a cerveja saltando estupidamente gelada – Brahma Extra, Heineken, Original… – e a expectativa de que a molecada chegaria junto pra nos dar o axé que buscávamos todos, ali naquele canto aprazível da Tijuca.
Eu, com meu inseparável pano de prato no ombro, suava dentro daquela cozinha que me remetia à velha São Salvador e sua culinária absolutamente fantástica!

O próximo passo?
Despejar na panela a farofa dos camarões defumados. Um espetáculo de cor!
O caruru vai ganhando corpo, vai ganhando cor, vai ganhando cheiro, e é imprescindível não parar de mexer, oi, que é pra não embolar!
O fogo é mantido baixo e, a cada sinal de secar, azeite de dendê na veia da panela.
A colher de pau tem de mexer fundo, no fundo, tem de cavucar os cantos da panela, tem de recolher o azeite que fica na beirada e é preciso, sempre, que se dê um gole na cerveja mantida gelada no copo. Faz parte, faz sempre parte. Eu, que cozinho frequentemente com uísque, não abri mão da cerveja, e apenas da cerveja, durante o preparo do caruru, que fiz rezando – preciso confessar.

Próximo passo?
Despejar todo o quiabo picado dentro da panela.
Não esquecer, não esquecer!, de deixar sete quiabos inteiros pro arremate final.
É preciso paciência nessa hora (e sempre).
Há que se mexer muito devagar, incorporando os quiabos à massa.
Os quiabos vão soltando água, aos poucos, e mexer incansavelmente é um dos segredos dessa etapa.

Uns minutinhos depois, com os quiabos já no clima do caruru, é hora de despejar o creme resultante do processamento dos camarões salgados.
E hora de mexer com vigor, já que o creme é pouco diante do volume da massa na panela.
Fogo baixo – não esquecer disso jamais.

Um bom número de minutos depois – e sua intuição deve estar aguçada nessa hora -, quando a mistura já estiver bem homogênea, é a hora de pôr o gengibre ralado.
Mexer bem, imaginando uma nega baiana que saiba mexer, que saiba mexer, que saiba mexer.

Um pouco depois, e já estamos quase terminando, a pimenta dedo-de-moça cortada em rodelas.
Com ela ainda na superfície, regue-a com o azeite de dendê.
Depois, mexa.

Hora de colocar os camarões frescos, mexer muito de leve e curtir o pegar a cor.
Pôr um bocado mais de dendê, mexer muito no fundo da panela, assentar o caruru.
Desligar o fogo, tampar a panela, pedir a proteção dos deuses, deixar descansando uns 15, 20 minutos, avisar a toda a gente que o prato está pronto, beber mais uma cerveja, retirar a tampa, colocar sobre o caruru os 7 quiabos inteiros, as 2 pimentas dedo-de-moça também inteiras e servir.

Sirva e aproveite.
Coma o caruru, ofereça a todo mundo, a Dois-Dois, aos erês, e tenha fé. Muita fé. Sempre.
Agradeça a graça de ser brasileiro, de ter nascido e de viver no Brasil, e coma com orgulho e com a certeza de estar dividindo o prato e a alma com gente querida, que dá ainda mais sabor e prazer à vida.

Até.