(pra minha mãe, Maria Goldenberg)
Em 29 de novembro de 2011 escrevi Os assombros – aqui – e lá eu disse:
“Daí dei de divagar, de digressionar, e não tenho feito outra coisa, e cada vez com mais afinco, com mais apuro. Sou, de uns tempos pra cá, funcionário dedicado e exclusivo a serviço de mim mesmo, patrão implacável a exigir do empregado empenho máximo. Quantas vezes – esse, o foco de minha divagação depois de ouvir o Tom – nos surpreendemos diante desse susto, desse assombro, desse desassossego?
Não estou nem a falar do déjà vu, também corriqueiro: falo de algo mais concreto (porque mais evidente, embora inexplicável), mais intenso, mais bruto. Algo tão intangível quanto a saudade do que não vivemos ou, o que pode ser ainda mais angustiante, a saudade do por vir, algo que Vinicius de Moraes sugeriu quando escreveu “essa mão que tateia antes de ter”.
O que fazer diante desses assombros? O que fazer e como administrar essa angústia do querer-viver o que não se justifica pelos parâmetros quase sempre mesquinhos que utilizamos para balizar o que sentimos, o que fazemos, o que produzimos? Tom Jobim, ali, parecia assombrar-se com a beleza da melodia por ele composta dias antes – daí a blague que fez.
Tudo muito confuso – reconheço. Idéias lançadas, sem ordem, sobre o criado-mudo imaginário a meu lado.
Mas que fique aqui, como registro – para que eu volte ao tema e às minha reflexões. Fiquem, por enquanto, com este assombroso registro jobiniano.”
Volto, pois, hoje, ao tema.
E quero, nesse texto de hoje que talvez seja mais um através do qual me debruço sobre o tormentoso tema, me ater especificamente sobre esse “algo mais concreto (porque mais evidente, embora inexplicável), mais intenso, mais bruto. Algo tão intangível quanto a saudade do que não vivemos ou, o que pode ser ainda mais angustiante, a saudade do por vir, algo que Vinicius de Moraes sugeriu quando escreveu “essa mão que tateia antes de ter”.
Conheci, no dia 09 de julho de 2011 – mais que conhecer, a senti, como nunca – a dor. E foi uma dor – eis-me aqui, de novo, exibindo minhas vísceras, minha alma, nesse exercício ainda incompreensível para mim mesmo – tão intensa, tão violenta, tão castradora, que num primeiro momento vivi a experiência do torpor absoluto (o que fez com que eu fosse, nas primeiras semanas depois do trauma, um arremedo de mim mesmo). Vi-me, entretanto, aos poucos, de volta à realidade que, evidentemente, não me era familiar. Fui um estranho que a tudo e a todos estranhava. Dentre tantas experiências que a dor também trouxe, a que me traz agora pra diante do monitor, justamente o mote do que quero lhes dizer hoje.
O assombro – tudo me era um assombro. Tudo passou a ser um assombro. Eu mesmo era um assombro só.
E vai que daí, na esteira desse assombro, vêm as saudades. Notem: o meu assombro era o mesmo assombro da criança, um assombro com cores de falsa novidade – porque ainda que dele (do assombro) não me lembrasse, eis que a minha memória não alcança aquele menino de tenra idade a ter medos e assombros diante de tudo e de todos, não me era de todo inédito (o assombro é sempre o mesmo). As saudades me eram novas, essas, sim.
Eu passei a ter, também, saudade de tudo o que eu tinha vivido e que eu julgava enterrado pra sempre (inclusive dentro de mim). E eu passei a ter saudade do que eu ainda viveria se me fosse possível viver. Porque a vida me pareceu inviável e a saudade me parecia perene, doída, tatuada, como se preenchendo o espaço que me fora arrancado à espera da cicatriz capaz de suprir a ausência dos membros amputados. Os membros amputados deixaram à mostra os tecidos, os músculos, os ossos, e eu fui vivendo, ou querendo viver (por necessidade) a experiência (mais uma) de uma regressão que me levasse ao nada, a antes de mim mesmo.
Refazer o caminho é tarefa dura e ao mesmo tempo regeneradora. Dura, porque ainda que o retorno seja aliviante é também uma espécie de carimbo, de atestado, de ratificação de uma nova realidade – não, você não estava sonhando. E regeneradora porque perceber-se capaz de andar sozinho, porque reconhecer noutras mãos uma segurança que se julgava perdida, porque saber-se vivo – sim, você está vivo – é redentor. Milagroso, até.
Até.