ESPECIAL CARTOLA
Cartola 90, samba 2000
Em artigo de 1992 sobre Cartola, eu escrevi que, em época de seqüestro, ninguém agüenta mais a palavra resgate. Seqüestro de dólares, desviados de nossas contas em bancos que estouram para engordar poupanças de pilantras impunes em paraísos fiscais; seqüestro da prometida geração de empregos e das promessas do “mercado regulador”; seqüestro de estatísticas que desmintam os dados oficiais; seqüestros flagrantes de intenções de voto; seqüestro de cidadãos indefesos e até mesmo de órgãos; o seqüestro dos “ajustes fiscais”. Com a confirmação do novo reinado de Caô-tsé-Tunga (mentira, modorra e roubalheira sob um calor e uma recessão de deixar qualquer um de tanga), o sambola, ou sambobo, ou sambabaca é o hino do regime. Então, não falarei de resgate. Vou só procurar impedir que o legado de Cartola sofra seqüestro oportunista nas mãos de produtores que, se entendem pouco de batuque, são mestres na arte-manha de arrancar o couro.
O homem que é sinônimo de Estação Primeira de Mangueira, que escolheu o nome da Escola e suas cores, que foi o autor de seu primeiro samba-enredo nasceu, como no antigo samba, só pra chatear… no Catete. Houve confusão no nome de batismo, Angenor. Usava óculos escuros à noite. Deu uma recauchutada no nariz com a pele do traseiro. Até mesmo sobre a origem de seu apelido, Cartola, a história não coincide. Na de Jota Efegê, em Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira, volume 2: “…ganhou o apelido por usar como fantasia uma cartola de papelão com a qual formava nos sujos da gurizada, nos dias de carnaval”, ainda moleque na Zona Sul. Já o fascículo no. 17, Cartola / Nelson Cavaquinho, da primeira edição da História da Música Popular Brasileira, garante que, rapazola, trabalhando na construção civil, arranjou um chapéu-coco pra se proteger do pó de cimento que caia em sua cabeça. Daí, o apelido. Vida de compositor popular tem que ter várias versões. A gente fica achando que no país do Pensamento Único só figuras como Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça são reais. O resto é fantasia.
Cartola foi famoso nos anos 30. Vendeu sambas para Mário Reis e para Francisco Alves. Quando sumiu, foi trazido de volta à tona por um mito, Sérgio Porto. Não é mole ser resgatado (epa, olha a palavra aí) pela flor dos Ponte-Preta. O também lendário tio de Sérgio, Lúcio Rangel, chamava Cartola de Divino. Quando Sérgio Porto trouxe Cartola de volta, ele estava lavando carros na rua. Injustiças assim, como a que atingiu Cartola, compositor apreciado por Villa-Lobos, gravado por Leopoldo Stokovsky, citado em sambas de Herivelto Martins e de Pedro Caetano, considerado nosso maior compositor por Nelson Cavaquinho, amigo de Noel Rosa, parceiro de Sílvio Caldas, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, são freqüentes hoje, nesses tempos de sambesta.
Cartola comandou, com a mulher que salvou sua vida, uma das mais festivas casas noturnas de todos os tempos no Rio de Janeiro: o Zicartola. Fez dois discos imortais pela Discos Marcus Pereira, produzidos o primeiro pelo Pelão e o outro por Juarez Barroso, nomes históricos em nossa melhor produção musical, direção e regência do antológico Horondino José da Silva, o Dino Sete Cordas.
Em sua obra irretocável, por trás da economia de palavras, e às vezes sob o verniz romântico (que reforça o choque sentido), insinua-se o mais severo analista de quantos trataram o delicado tema das relações amorosas. Perto de Cartola, Lupiscínio Rodrigues era um otimista… Cartola reconhece que o amor é imprescindível ao poeta e ao samba. Só que não dá certo.
A lúcida amargura de O Mundo é um Moinho resume exemplarmente sua visão: chamada de amor logo no primeiro verso, a Musa leva uma tremenda descompostura: não sabe o rumo que irá tomar, deixará sua vida cair em cada esquina, e em pouco tempo não será mais o que é. O mundo, um moinho, vai triturar seus sonhos – que, acentue-se, são mesquinhos -, vai reduzir as ilusões a pó e, de cada amor, a herança será só o cinismo.
Quando notar, a Musa estará à beira do abismo, cavado por ela própria. Não há esperança, votos de estima e consideração, uma única palavra amiga de despedida.
Em As Rosas Não Falam, o poeta chega ao extremo do lirismo e destrói seu arroubo em dois versos:
Queixo-me as rosas
mas, que bobagem, as rosas não falam.
Em seguida, um verbo sofisticado soa com toda naturalidade na letra do sambista e o clima lírico se reconstrói:
Simplesmente as rosas exalam
o perfume que roubam de ti.
A letra termina contradizendo a esperança que, no início, batia em seu coração. É melhor que a musa veja os olhos tristonhos do cantor e sonhe por ele.
Esse tipo de tranqüila constatação do que é irrealizável no amor acompanha toda a trajetória do poeta:
Você não merece
mas isso acontece
……………………..
Se eu ainda pudesse fingir que te amo
ai, se eu pudesse
mas não quero…
Isso não acontece.
Melhor não chorar, mas, se for preciso, convém não dar bandeira, não fazer alarde: disfarça e chora. Mesmo assim, o teu pranto, ó linda senhora, vai molhar o deserto.
Chorar não adianta.
No politicamente incorreto Tive sim, Cartola reconhece que amou outra mulher tanto quanto a atual, que vivia contente ao lado dela, mas que prefere calar. Conversei sobre esse samba com D. Zica, que me contou, entre risadas, com grande simplicidade:
– Eu estava afim de arengar e ele quieto. Eu, criando caso de graça: tá pensando em outra? Ele lá, calado. Chacoalhei tanto que ele respondeu: “tive outros amores antes do teu, sim. E não quero mais falar nisso pra não te magoar”. Na madrugada seguinte, meu filho, nasceu o samba Tive sim.
Há pérolas menos cultivadas, como Assim Não Dá, Evandro Bóia na parceria:
Assim não dá, não dá não
Não vai dar, meu irmão
É doutor presidente
Doutor secretário
Doutor Tesoureiro
Só quem não é seu doutor
É aquele pretinho
Que varre o terreiro.
………………..
Já houve lá um concurso
Pra quem bate surdo
Tamborim e pandeiro
E eu fiz tanto esforço
Mas acabei perdendo
Pra um engenheiro
Justiça seja feita: parece uma tese do Tinhorão.
Toda a alegria foi perdida em Cordas de Aço, clássico absoluto de nossas noites boêmias. O violão compreende porquê. E, no entanto, é só o bojo perfeito soltar o som da madeira que todos voltam pra casa cantando.
Em Desfigurado, Cartola sai na frente, pioneiro de um tema que se tornaria caro a nossos compositores:
Meu coração…
É infeliz como um menor abandonado
O título Minha serve apenas para constatar que…
Minha
Ela não foi um só instante
Como mentiam as cartomantes
Como eram falsas as bolas de cristal
Talvez por isso o poeta grite Não quero mais amar a ninguém (Com Carlos Cachaça e Zé da Zilda).
Desejo impossível, porque…
Um vazio se faz em meu peito
………………….
Me faltando as tuas carícias
As noites são longas
E eu sinto mais frio
Procuro afogar no álcool a tua lembrança
Mas noto que é ridícula a minha vingança
O homem não dá refresco nem bebendo. Para desespero dos chatos, há também engajamento político em Cartola, como no Samba do Operário, em parceria com Nelson Sargento e Alfredo Português, onde o operário é um escravo, cuja voz é abafada e que só encontra exploração em todo lugar.
A mulher maltratada, que hoje tem até delegacia, não foi esquecida por Cartola.
Foi tanta pancada
que ele me deu
que estou toda doída
estou toda ferida
ninguém me socorreu
Mas, sendo criação de Cartola, não perde o senso prático:
Eu parei desta vez:
vou arranjar um português.
Pra encerrar essa parte, um pedacinho de um dos meus favoritos, Tempos Idos, com Carlos Cachaça:
O nosso samba, humilde samba…
Depois de percorrer todo o universo,
Com a mesma roupagem que saiu daqui
Exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamarati.
O teste do compositor popular não é só o do assobio. Na gafieira, eu vi e ouvi, ao vivo e a cores, o desconhecido a meu lado suspirar quando a orquestra atacou O Sol Nascerá (com Elton Medeiros):
– Ah, essa é a minha música…
E saiu procurando a dama para dançar.
O samba, na realidade, está aí, pra quem quiser ver e ouvir no premiadíssimo CD Bebadosamba, no show Bebadachama de Paulinho da Viola, no prêmio Shell que Zé Keti abiscoitou com a frase do milênio (“o bom dos prêmio é que a mulherada vem atrás”); o samba está na grande obra de Nei Lopes, em seu reduto de Vila Isabel, baluarte, como Candeia, da cultura negra; na luta pela vida de Wilson Moreira; na chama vencedora – e como esse artista foi injustiçado, meu Deus! – do fenômeno Walter Alfaiate, lotando casas de samba como o Candongueiro, Mãe Joana, etc, com quase 70 anos. O samba está presente em cada mês de fevereiro na Ressurreição do Carnaval, apesar de toda comercialização que o envolve, que tem sua morte anunciada anualmente pelos urubus mas que se recusa a abotoar o paletó de Comissão de Frente em nossa cultura.
Uma vez, participei de reunião para campanha publicitária tipo “Salve o Rio”. Na hora de escolher a música que representasse a cidade, disse um gênio do Markkkettinnnggg, a única profissão do mundo que ricocheteia:
– Só não concordo com um choro como tema. O choro acabou. Foi substituído pelo rap.
Há um vírus novo o ar: o Brasilheca. Ele transforma tudo que é bom em merreca.
Exemplo: você está entre a imagem do buzanfã da Tiazinha na tevê e a voz do Cartola no aparelho de som. Se escolher a primeira, a Brasilheca pegou você.
Alguns pretensiosos julgam que podem “fazer releituras” da obra de Cartola, em nome do progresso. Cito Stravinsky, em sua Poética Musical: “os mestres… são como poderosos faróis, para usar a expressão de Baudelaire, a cuja luz e calor desenvolve-se uma soma de tendências que serão partilhadas pela maioria de seus sucessores e que contribuem para formar a parcela de tradições que geram uma cultura. Esses grandes faróis… promovem a continuidade que dá sentido legítimo e verdadeiro a uma palavra que já se abusou muito, ao tipo de evolução que já foi reverenciada como uma deusa – deusa que acabou se revelando uma ilusão, seja dito de passagem, e tendo dado nascimento a um pequeno mito bastardo que muito se lhe assemelha, e que tem sido chamado de Progresso…”.
Quando a conversa é sobre samba, nada melhor que ouvir os amigos. Rildo Hora, o produtor de samba mais respeitado no pedaço, aluno querido do maestro Guerra Peixe, grande músico, me disse:
– O Cartola foi a melhor harmonia que já conheci dentro do samba. No violão, a mão esquerda da inteligência (só os brilhantes têm). A mão direita para escrever poesia – a lápis. Era muito positivo, falava o que pensava. Pontual. Marcava às 8h da manhã “pra ouvir o que é samba bom”. Assim foi comigo. Cheguei no morro às 8 em ponto, e lá estava ele, tomando conhaque Dreher. Cantou, ainda inédita, “As Rosas não Falam”.
Sobre Cartola, garante o compositor Moacyr Luz:
– Na minha juventude, de tanto ouvir Gershwin, Monk e Cole Porter, quando encontrei a música de Cartola, o susto foi maior. O intuitivo de Cartola, aliado ao conhecimento musical que também surpreendeu Villa-Lobos, é o que me comove: escuto Cartola como lição de casa, pra aprender, pra acreditar na música brasileira.
Nei Lopes, disfarçando seu imenso coração com uma crueza que encantaria nosso retratado, pondera:
– O Cartola eu conheci – de longe, em 1965, e um pouco mais de perto no final dos anos 70 – não era o mesmo Cartola componente do Bloco dos Arengueiros, biriteiro, batuqueiro, fundador da Estação Primeira de Mangueira, discriminado como “sambista de morro”, ao lado de Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, entre outros – não obstante ter chegado ao meio radiofônico, através de parcerias e interpretações como as de Noel Rosa e Francisco Alves, no início dos anos 30. O Cartola, então, que eu conheci não foi um sambista malandreado como Padeirinho, nem um porrista genial como Geraldo Babão, nem um militante negro como Candeia. Foi um artista refinado, elegante, compositor de sambas-canções antológicos como “As Rosas Não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Acontece”, etc. Gozando, enfim, até os 72 anos, dos merecidos frutos de uma ascensão social modesta, sim, mas altamente significativa.
Dos mais destacados músicos de sua geração, Jayme Vignolli, jovem líder do Água de Moringa, chama atenção para a harmonia em Cartola:
– Cartola é artesão requintado. O tratamento melódico de suas canções é notável. A melodia pode estar em constante movimento, como em “Autonomia” ao cantar: “Se eu tivesse autonomia / Se eu pudesse gritaria não vou, não quero” ou mais parada como em “Tempos Idos”, quando insiste praticamente na mesma nota cantando: “Consegui penetrar no Municipal / Depois de percorrer todo o Universo”, talvez o momento mais expressivo desse samba. Tudo no lugar e momento certos. Em “Acontece”, samba-canção antológico, não é diferente. A melodia se inicia em uma nota de tensão e segue com a tradicional fluência. Nesta mesma música Cartola demonstra ainda seu extremo bom gosto para o emprego da harmonia. Modula de uma tonalidade a outra distante e volta à tonalidade original com invejável naturalidade (Acontece que já não sei mais amar / Vai chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso acontece) parecendo que não modulou. Todas essas técnicas de elaboração (formal, melódica e harmônica) costumamos estudar nas Academias, Conservatórios e Escolas de Música por onde certamente o nosso nonagenário não passou e não precisou passar. Cartola é aquele peladeiro que de fato “brinca nas onze” e só faz golaço.
Nelson Rodrigues gozava os homens medíocres que se tornavam contínuos de si mesmo. Hoje, os neoliberais são locadores de si mesmos. No maremoto de oportunismo desesperado, há compositores que são divulgadores de si mesmos. Não é o caso de Cartola, de Nelson Cavaquinho, de Dorival Caymmi. Todos eles ouviram , em diferentes épocas de suas vidas, que “não estavam fazendo mais nada”. Os motivos, segundo os falastrões, variavam da preguiça à garrafa. Besteira. Eles sempre viveram em permanente estado de composição. Há a Marina que todos conhecem, provavelmente irmã de criação da Divina Dama do Cartola ou daquela outra mulher que foi um grande amor antes da Dona Zica. Pra nós, ouvintes e admiradores, essas músicas estão prontas, ficam em nossa memória afetiva como foram feitas. Mas, em Caymmi, Marina permanece mudando, assim como as musas de Cartola viveram enquanto ele viveu. O público, que morde-e-sopra aqueles a quem ama, só reconhece o compositor de violão na mão, de cotoco de lápis mordido garatujando no papel de embrulho. Mas cada composição tem um período pra nascer, de sofrimento, desassossego, porres – com esse é o oitavo butequim. Depois são gravadas, vão à luta, mas no coração incestuoso daqueles que pariram as crias-amantes elas pintam a boca, traem, contraem doenças e rugas – e são sempre belas, ainda que de um jeito meio mórbido. Só morrem com a gente.
O bacana é que o compositor, arauto e profeta da horda humana, não morre de todo e suas musas acabam aparecendo nos bares, nas horas de solidão, pra vampirisar benignamente o amigo ouvinte. Ao contrário do que pensam (e escrevem…) alguns basbaques, Cartola não morreu, Elis não morre – o tempo se rói com inveja deles.
Dizem que o samba está vivendo um momento complicado. Qual samba? O verdadeiro? O samba que bebeu em Cartola? Esse está redondo e formoso nas vozes de Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila, Monarco, Wilson das Neves (todo letrado por Paulinho Pinheiro), Sombrinha e Arlindo Cruz. CDs novos e diversos atestam sua força, dos Demônios da Garoa a Noca da Portela.
Canta o também mangueirense Nelson Sargento “samba agoniza mas não morre” porque, completa Cartola, “surge outro compositor”, como Dudu Nobre, “com o mesmo sangue nas veias”.
Por tudo isso, e apesar do boi-com-abóbora estar nas alturas, mais do que nunca é preciso tirar o chapéu pra Cartola.
Aldir Blanc