Arquivo do mês: agosto 2011

O RIO, POR LUIZ ANTONIO SIMAS

Já que falei hoje, mais cedo, aqui, sobre o Rio de Janeiro, essa cidade absolutamente fora de série, decidi transcrever alguns trechos de uma recente entrevista que demos, eu e Luiz Antonio Simas, professor maiúsculo as 24h do dia, justamente sobre o Rio. É evidente que as transcrições são todas de falas do Simas, que estava, inclusive, emocionadíssimo nesse dia. Exaltou-se, falou alto, foi veemente quando expôs, de forma despudorada, sua paixão pela cidade em que vive.

“Quando eu falo pra alguém conhecer o Rio de Janeiro, a primeira coisa que eu digo é o seguinte: já é uma cidade interessante pra você conhecer, porque é uma cidade absolutamente improvável. Se você observa, por exemplo, a característica da geografia do Rio, aqui não era pra você ter cidade nenhuma! Porque isso aqui era pântano, era montanha, era alagadiço, era o mar invadindo tudo… Então pra você construir uma cidade aqui, você teve que furar morro pra fazer túnel, você teve que drenar pântano, então é uma cidade absolutamente inusitada. E eu acho que o Rio é a cidade mais sincera do Brasil. Por que? Por conta dessa geografia muito peculiar do Rio… a montanha, o mar… O Rio é uma cidade, por exemplo, que não tem aquela noção clássica de periferia. Quando você chega, por exemplo, a São Paulo, a Belo Horizonte, você tem um centro, você tem uma região que é habitada por uma classe média, por uma classe média-alta, e aí você vai lá pro inferno e lá no inferno você tem a periferia…. A periferia do Rio de Janeiro tá dentro da cidade! O Leblon, que é o bairro de IPTU mais caro, Ipanema, que tem IPTU mais caro… Só que Ipanema tá convivendo com o Pavão-Pavãozinho, o Leblon tá convivendo com o Vidigal, aqui na Tijuca a gente tá convivendo com o Borel, tá convivendo com a Formiga, tá convivendo com o morro do Salgueiro, a gente tá convivendo com o Turano, a gente tá convivendo com a Casa Branca… E isso deu ao Rio de Janeiro uma peculiaridade cultural absolutamente maravilhosa… Isso é muito sério! Quando o Noel Rosa morreu, que é um ícone da nossa cidade… o Zé Ramos da Mangueira fez um samba pro Noel Rosa! O Noel Rosa era o branco, o Noel Rosa era o estudante de Medicina, o Noel Rosa era o aluno do São Bento que subia o morro da Mangueira porque era do lado da Vila Isabel, onde ele morava, um bairro que tinha operário, que tinha classe média… Aí o Zé Ramos faz o samba quando o Noel morre, ele diz (cantando):Chegou a capital do samba / Dando boa noite com alegria / Viemos apresentar o que a Mangueira tem / Mocidade, samba e harmonia / Nossas baianas com seus colares e guias / Até parece que estou na Bahia”. Aí ele diz: “Da cidade alta da Mangueira / Avisto a Vila, sinto saudades de alguém…”. Sinto saudades de alguém! É o Noel! É do Noel! Ele tá lá do alto do morro da Mangueira, e da cidade alta da Mangueira ele enxerga Vila Isabel! Ele enxerga o bairro onde viveu o sujeito de classe média, o Noel Rosa…Que aí subiu o morro, e aí o morro desceu… Então isso deu ao Rio de Janeiro uma peculiaridade! A nossa cidade é uma cidade única! É uma cidade que misturou tudo, é uma cidade de cultura de fronteira, é uma cidade em que a periferia tá dentro dela, o Rio de Janeiro não é uma cidade covarde! Todas as críticas que fazem à minha cidade do Rio de Janeiro são críticas que me fazem cada vez mais gostar do Rio de Janeiro! Porque o Rio de Janeiro não esconde! O Rio de Janeiro é aquilo que ele é mesmo! Eu chamaria um sujeito pra conhecer o Rio de Janeiro, primeiro, pra conhecer uma cidade que é rigorosamente peculiar. Você não vai encontrar outra com essa característica que o Rio tem!

A formação do Rio é muito parecida com Salvador, com São Luis do Maranhão, com o Recife… Na verdade, foram os grandes portos de recebimento de escravos no Brasil… Se você considerar que a gente teve 388 anos de escravidão, quase 4 séculos, a cidade é essencialmente uma cidade de rua, uma cidade negra, que tem essa característica…Aqui, pro Rio, vieram muitos bantos, depois chegam os yorubás, e os saberes africanos tem uma característica peculiar que é a seguinte: a cultura, a vida, ela se passa muito no espaço da rua, no espaço do mercado, a casa é um detalhe! Então o Rio de Janeiro tem uma tradição que eu acho que herdou da África… como Salvador tem, como São Luis tem… como Havana, em Cuba, tem… Esse detalhe é interessante… é uma cidade de rua, é uma cidade de mercado, em que o encontro é no espaço público… De certa maneira, o espaço de civilização entre os africanos é o espaço público. A vida ali se passa na rua… Você chega à Nigéria, à Angola, ao Congo, a rua é o espaço de convívio. E o Rio é uma cidade de rua, as coisas acontecem na rua, é a cidade do mercado, da feira… o Rio é uma das quatro grandes cidades do Brasil que eu chamo de cidades que têm como patrono, Elegbara, Exu… a entidade que cuida da rua, da esquina… Daí a ligação com Salvador, que é conhecida como a Roma Negra…

Se você chegasse no Rio de Janeiro em 1910, você ia observar o seguinte: está surgindo o samba urbano, tal como o conhecemos hoje, como manifestação cultural de comunidades negras… quem faz samba em 1910 é o preto! É o cara que tá batendo tambor, são as macumbas na casa da Tia Ciata, tá rolando aquele babado entre os negros. E o futebol era praticado rigorosamente por branco. Então em 1910, é o branco joga bola e é o preto faz samba. Se você viaja um pouquinho no tempo e chega ao início dos anos 30, o grande ídolo do futebol no Rio de Janeiro é um preto, é Leônidas da Silva, e o grande sambista é um branco de classe média, o Noel Rosa. O Rio é a cidade que permitiu ao branco fazer samba e ao preto jogar bola! Os dois se conheceram, porque o Leônidas chegou a morar em Vila Isabel, o Noel era de 1910, o Leônidas de 1913… É uma circulação tensa e intensa…”

É por isso que eu sempre digo e agora repito: sou um sujeito de sorte por desfrutar do convívio com esse brasileiro máximo que é Luiz Antonio Simas!

Até.

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SALVE, O RIO DE JANEIRO!

“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”. Foi como acordei hoje, com gosto de sangue na boca, com dores de corte na carne, com uma saudade indizível e determinado a (re)começar, minha sina, eu acho, desde 1969, e lá se vão mais de 42 anos de tropeços e de um compromisso permanente no sentido de me manter bem, animado, aprumado, feliz na medida do possível, que aos 42 anos não tenho mais a tola ilusão de que a felicidade é constante – não é. O ânimo, sim, e não quero, e não posso, e não vou perdê-lo. Sou, afinal e sobretudo, um homem que faz planos e fazer planos é manter-se vivo, na mais ampla acepção da palavra, e meu plano de hoje incluía mudança abrupta nos rumos da minha condução de vida no que diz respeito, precipuamente, à saúde. Foram muitos anos fumando, foram muitos anos bebendo de forma desregrada, foram muitas noites em claro, foram muitos os atropelos, os sustos, as dores, foram incontáveis também os colos que me chegaram, os melhores sustos, as melhores surpresas, os melhores amores. Sempre soube subverter as chamadas curvas descendentes e reverter isso era, como já lhes disse, meu plano de hoje.

Eu já estava caminhando, todas as manhãs, aqui mesmo na Tijuca. Ninguém mais tijucano que eu, mas não é exatamente, a Tijuca, o cenário ideal para o exercício das manhãs. Fui dormir decidido a pegar o carro bem cedo e atravessar o Rebouças para caminhar na Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos mais bonitos – se não o mais bonito! – pedaços da cidade.

E fui, confesso, durante os quase 90 minutos que levei pra dar uma volta inteira no espelho d´água, um sujeito em estado de graça diante da beleza estupenda que há de sobra na Cidade Maravilhosa.

Às 6h11min da manhã, depois de exatos 10min entre a Tijuca e a Lagoa, eu já estava com o carro estacionado na altura da Fonte da Saudade, quando não me contive: tive de fazer a primeira fotografia do dia. O Morro Dois Irmãos, a Pedra da Gávea, e essa intensa luz absurda que “quase arromba a retina de quem vê”.

Mais à frente, já na altura da Curva do Calombo, pouco depois da baia de treinamento do remo do Botafogo, outra visão estonteante: os mesmos morros, agora refletidos nas águas da Lagoa me davam a certeza da minha escolha, tão simples, tão ao alcance das minhas mãos, tantas vezes adiada…

Caminhando ainda mais, cheguei na altura do Corte do Cantagalo, próximo ao pier de onde saem os tradicionais pedalinhos. O sol dava sinais de que subiria, em poucos minutos, por trás do Corte,  e já eram outras as cores dos morros, dos prédios, já era outra a cor do espelho d´água, e eu ali já suava de forma abjeta. Caminhar ali, naquele ritmo, sem os sinais de trânsito que eu enfrentava na Tijuca, sem a necessidade de atravessar as ruas, parando apenas para ganhar fôlego, fotografar e beber água de côco, foi um prêmio que me permitirei usufruir de hoje em diante.

Estava eu na altura do Caiçaras, próximo ao Canal do Jardim de Alah, caminhando em direção à Fonte da Saudade, de costas para o Corte, quando percebi uma boa quantidade de pessoas – muita gente caminha na Lagoa, por óbvio! – fotografando algo por trás de mim.

Virei-me e era o sol, gigantesco, sem nuvens à sua frente, subindo por trás do Corte do Cantagalo.

Quase uma hora após o início da caminhada, parei pra beber uma água de côco em frente à Hípica, pouco depois do Clube Naval, paguei 3 reais num côco geladíssimo, chorei um bocado – sou incorrigível, pioro a olhos vistos… – e senti o sopro da satisfação por estar vivendo, mais uma vez (foram tantos, e tantos, e tantos…) um recomeço.

Ri de mim mesmo quando perguntei a ela, mentalmente (para evitar que o vendedor de côco me pusesse, com razão, na conta dos loucos), se eu estava cumprindo minha palavra, caminhando àquela hora, na Lagoa, em busca do melhor pra mim.

Uma hora e 24 minutos depois, cheguei ao ponto de partida.

Suando em bicas.

Cansado, mas feliz.

E sentindo-me um privilegiado por viver aqui, na cidade mais bonita do mundo.

Até.

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OS BOTEQUINS CARIOCAS

Dia desses eu estava ancorado no balcão do Rebouças, tremendo pé-sujo no Jardim Botânico, com meu compadre Leo Bochat. Contou-me o Leo o que me pareceu ser uma notícia alvissareira, embora nem ele mesmo soubesse confirmar a coisa: mas parece que o Poder Público, mais precisamente a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, está para organizar uma série de debates visando preservar, de verdade (e já explico o “de verdade”), essa verdadeira instituição brasileira, carioquíssima por natureza: o botequim. Eu disse “de verdade” porque essa mesma Prefeitura, há muitos anos, lançou o hoje controverso Guia Rio Botequim, legítimo quando nasceu e deformado ao longo dos anos. Explico, mais: com o passar do tempo, patrocinadores, investidores, homens de marketing (um dos maiores males do último século), em nome da preservação do botequim, passaram a destruir, sem dó nem piedade, o legítimo pé-sujo carioca em nome da modernidade e da adequação do espaço às exigências dos consumidores (que jamais freqüentaram botequins, diga-se de passagem). Arrisco dizer que tratar o botequim como espaço de consumo é o mesmo que tratar o futebol como entretenimento. Vai daí que começaram a pipocar discursos absolutamente impensáveis para o troço: um que se dizia amante dos botequins mais vagabundos passou a se preocupar mais com o limão do mictório do que com o limão da casa; outro, que se dizia um ferrenho bebedor de Brahma, de Antarctica, passou a exigir carta de cerveja nos butecos; outro, ainda, passou a exigir treinamento para os atendentes de balcão… e a coisa foi degringolando, o tal Guia Rio Botequim passou a ser um verdadeiro “vade-mécum de otário”, como diz meu mano Fernando Szegeri, e fomos vendo desaparecer, aos poucos, inúmeros botequins que eram verdadeiros patrimônios da cidade, a segunda casa do povo mais simples, mais humilde, que tem no botequim, como afirma o brasileiro máximo, Luiz Antonio Simas, seu espaço de discussão, de vivência, de convívio, de resistência.

O que parece ter movido o Poder Público para pretender organizar as tais discussões foi justamente esse susto, que pode ter sido tarde: não há mais a Casa Brasil, na Praça São Salvador, nem a Adeguinha, que ficava ao lado, ambas engolidas pela sanha do Belmonte, a grande rede que estuprou, primeiramente, no princípio de suas atividades nocivas e assassinas, o legítimo Belmonte, na Praia do Flamengo, para ali erguer a primeira de suas lojas (sim, são lojas), hoje espalhadas pela cidade, como metástase. Não há mais um sem fim de pés-sujos na Lapa, totalmente descaracterizada por mentiras em forma de bar, igualmente como metástase.

Resiste, entretanto, um ou outro estabelecimento. Resiste o Bar Brasil, na Mem de Sá, mas até quando? Resiste o Armazém Senado, mas até quando? Resiste o Bar Rebouças, mas até quando? Parece que nasceu daí a iniciativa da Prefeitura, que buscará meios efetivos para proteger esse grande patrimônio da cidade do Rio de Janeiro. E faço breve digressão, de novo, sobre esse portento que é o pé-sujo (há tempos não falo sobre o tema).

“Buteco é templo”, é frase lapidar e conhecida, de Aldir Blanc. É o “hospital das almas”, numa apaixonada e exagerada definição de Felipe Quintans, nosso Cereal. Essa instituição, carioca por natureza, está por aí, no Brasil inteiro, como porto seguro de gente que gosta de gente – não de pose. Estive em Campinas, por exemplo, no ano passado, e Bruno Ribeiro levou-me a seu pé-sujo preferido, e ali estava o Brasil em estado bruto, e ali senti-me em casa. Em São Paulo, há uns meses, Fernando Szegeri apresentou-me o bar da dona Lola (não sei o nome do bar, nem mesmo sei se há nome para o bar, e eis aí uma das características do genuíno pé-sujo), e ali também estava o Brasil a escorrer das paredes e do imenso balcão de mármore, cada vez mais uma raridade. Aqui no Rio, no meu pedaço, na minha Tijuca, são muitos os que resistem bravamente à modernidade – mas até quando?, eu me pergunto.

Só no meu pedaço, no meu entorno, há o Matosinho, o Rex, o Almara, o Gonzaguinha, o Trás-Os-Montes, o Marreco, o Estudantil, o Rio-Brasília, o Nova America, o Columbinha, o Céu na Terra, o Pink, o Buteco do America, o Bar do Chico. Espaço de convívio de gente comum, pais-de-santo, paus-de-arara, passistas, flagelados, pingentes, balconistas – salve, Aldir Blanc!, de novo e sempre -, manicures, motoristas e trocadores de ônibus, biscateiros, apontadores do jogo do bicho, andrajos, advogados, jornalistas, gente que não quer nada além de uma cerveja gelada, um tira-gosto honesto, de um balcão pra apoiar o cotovelo pra jogar conversa fora, ver o futebol e discutir política, mulher, religião e tantas outras questões capazes de, naquele ambiente, salvar o mundo.

Torço muito pra que dê certo a iniciativa da Prefeitura – a ser verdadeira a informação que me foi passada pelo Leo Boechat. O Rio de Janeiro, penhoradamente, agradece.

Até.  

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ARMAÇÃO DOS BÚZIOS

Estive, como anunciei aqui, no último final de semana, em Búzios, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, na mais que aprazível Armação dos Búzios, e ainda tive a oportunidade de ir à Arraial do Cabo e a Cabo Frio, cidades que compõem aquele pedaço absolutamente fabuloso do Rio de Janeiro, distante pouco mais de uma hora e meia da capital. Pedi emprestada a casa de uma amiga que fica praticamente nas areias de Geribá, e pra lá parti, no final da tarde de sexta-feira, na melhor das companhias em busca de três dias de sol e sossego – no que fui absolutamente feliz, objetivo mais que cumprido.

O engarrafamento monstro na Ponte Rio-Niterói não teve a capacidade de me tirar o humor, mote absoluto do final de semana. Chegar em Búzios, paraíso trazido à tona depois da famosa viagem de Brigitte Bardot, a primeira delas em 1962, foi ter a certeza de que eu viveria ali, naqueles dias, momentos que me fariam, uma vez mais, agradecer aos deuses pelos desenhos que dão forma à minha vida. Cantar, como me disse Orunmilá, através de meu mano Luiz Antonio Simas, essa é minha sina.

Pois eu cantei, ainda que apenas eu ouvisse, quando tomamos a direção da rua das Pedras para jantarmos. Rodamos ali, fomos parar na Orla Bardot, e depois de duas tentativas-fiasco (um restaurante japonês cujo sushiman estava de férias! e um outro no qual se apresentava um sujeito com voz [péssima] e violão [mal tocado]) fomos ao Sawasdee, fabuloso restaurante de comida tailandesa inaugurado em Búzios em 1997. Sensacional.

O sábado amanheceu mais-que-azul e tomamos a direção de Arraial do Cabo, na Prainha, uma das mais lindas praias da região. Mar calmo, águas entre o azul e o verde, e depois de algumas horas por ali tomamos a direção da Praia do Forte, em Cabo Frio, onde ficamos até o meio da tarde, quando voltamos a Búzios, para a praia da Ferradura que, se estava ligeiramente suja por conta de alguma corrente, também não foi capaz de me tirar o sorriso do rosto e a capacidade de cantar.

O anoitecer em Geribá deu-me a certeza de um domingo ainda mais bonito, e amanhecemos na ainda selvagem praia da Tartaruga, penúltimo destino antes de mais uma ida à praia de Geribá, diante de casa. Piscina, meu canto íntimo e particular pra Rainha do Mar – Odoya! – banho, e a volta pra casa premiada por um pôr-do-sol de cinema visto da Ponte Rio-Niterói.

Esse sou eu, meus poucos mas fiéis leitores, percorrendo os caminhos que aparentemente são tortuosos, doídos e generosos – sobretudo! – em busca da intensa luz que me foi anunciada e que não tem me faltado.

Se tem um passeio que eu recomendo – sempre, sempre, sempre! – é esse: o Rio de Janeiro, como se não bastasse a beleza da cidade, da capital, tem na Região dos Lagos um tesouro a ser permanentemente explorado.

Até.

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BÚZIOS – ALDIR BLANC

A caminho de Búzios dentro de poucas horas, baixo a âncora até segunda-feira e deixo com vocês, meus poucos mas fiéis leitores, um de meus poemas preferidos de um de meus orixás vivos, Aldir Blanc, publicado em seu livro “Um cara bacana na 19a.”, editora Record, 1996. Um de meus preferidos, também, porque tive o privilégio de estar em Búzios, durante os tais três dias a que ele se refere no poema (os mesmos três dias que me aguardam por lá), em 1995, numa casa absolutamente indescritível na praia da Ferradura, alugada por nosso irmão em comum, o saudoso Marco Aurélio, que, como em milagre, transportou pra lá o escritório do Aldir, única exigência feita pelo Blanc para aceitar a proposta (irrecusável, diga-se). Eu, minha primeira mulher, Aldir e Mari, Mariana e Isabel (duas de suas filhas, a primeira minha comadre), Milena (minha afilhada), Pedro e Joana (dois de seus netos), Sérgio Touro e Gilda, Moacyr Luz com a mulher, e o Mello Menezes. Foram três dias, desses de ficção. A churrasqueira acesa durante as 72 horas, uma quantidade industrial de gelo, uísque, cerveja e caipirinha, e aquele mar que só vendo.

“Armação de Búzios, entendi:
se você tem encantos, use-os.
Os meus se foram há muito tempo atrás.
Como um prisioneiro em Alcatraz,
sentia o cheiro iodado do mar,
ouvia a urgência das gaivotas
mas eu não podia
ou melhor, eu não sabia
– o que é a pior forma de não poder.

Armação de Búzios,
que mulheres!
Não o vulgar banquete
pra quatrocentos talheres.
Mulheres não são comida.
As mulheres são a alma
de tudo, a nossa alma repartida,
a minha alma.
As mulheres são tudo, eu não sou nada.
De madrugada, fico acordado pensando nelas,
depois durmo pra sonhar com elas
e acordo louco pra revê-las
– vivo assim
das primeiras andorinhas
às últimas estrelas.
Na praia do Forno,
a moça de flor nos cabelos
beijou a amiga na boca
e descobri, calmíssimo,
sem extra-sístole no coração:
eu sou sapato, Armação!

Bebi com o Ivan no Capitão,
comi ostras no Fernandão…
Chega de ão, Armação.

Três dias em ti, me olhei no espelho
e deu-se o teu milagre:
tinha dentes deslumbrantes,
um topete à John Travolta,
suíças, um bugre negro
e uma escolta de malucas
que me acompanhava aos bares.

Armação de Búzios,
Deus guarde os teus mares
enquanto por terra caído
arrumo as malas
e volto a ser um velho
mas, justiça seja feita,
com uma certa pose,
a aura de um Don Juan que se aposenta
depois de ter traçado a indígena mais bela.

Armação de Búzios,
meu muito obrigado.
Volto pra Muda um tanto alquebrado:
cada um sabe onde seu orgulho mela
mas deixei em ti um orgulho renovado.
Depois da Ferradura,
vou pro caralho a vela.”

Até.

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GAUCHE

“Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida!”. Quem não conhece isso, trecho de conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade? Em seu sensacional livro sobre o bairro de Vila Isabel, para a coleção Cantos do Rio, Aldir termina escrevendo: “Vai, Aldir, ser Blanc na vida, em nome da Vila!”. Vai daí que eu hoje acordei megalomaníaco. A Insônia, essa senhora egoísta que me fez companhia durante a noite, soprou em meu ouvido, alta madrugada, ao me ver chorar debruçado na janela:

– Vai, Edu, ser Goldenberg na vida.

Nada poético, reconheço. “Gauche” e “Blanc” melhor se encaixam na construção, o que me faz pensar que é preciso valer-se da língua francesa para dar graça ao troço. Mas não sou francês, meu sobrenome é judaico, sou brasileiro, tijucano, torcedor do Flamengo e do Salgueiro, e bem que gostei do sopro que ouvi à noite.

Vou, por isso, seguir minha sina. Vou seguir tropeçando e contabilizando as incontáveis cicatrizes que tenho, frutos de igualmente incontáveis tombos, todos eles incapazes de interromper minha saga particular, íntima e privada. Até quando?, me pergunto. Mas nem mesmo essa reflexão, raríssima, é capaz de me frear o ímpeto que nasceu junto comigo no longínquo abril de 69. Não me cobrem sanidade, eis que fui forjado pela mais absoluta falta de racionalidade. Não me cobrem equilíbrio, eis que vou do breu à luz, do calor insuportável das mãos unidas à geleira azul da solidão, em questão de segundos. Não me cobrem parcimônia, eis que só compreendo entrega quando intensa, profunda e cortante. Não me cobrem calma, quando o que eu quero é o carnaval. Não me cobrem paciência, eu só entendo tensão de músculos rasgados e doídos. Se amor só é bom se doer, a vida só é boa se sangrar. Não me cobrem cuidado, eu prefiro a decepção ao estado de alerta. Não me cobrem a sabedoria do velho marinheiro, sou mais chegado aos rompantes de Elegbara. Não me cobrem matar a sede com água mineral, prefiro saciá-la com oti. Não me peçam pra esperar o dia de amanhã ou pra celebrar a data que passou, eu sou capaz, sabe-se lá como, de dobrar o tempo e viver mais à frente o que já vivi, ou o que nunca vivi, e reviver o que só viverei daqui a muitos anos – ou nunca. Não me sugiram preces pra aplacar as saudades, eu prefiro cantar e fazer a cama da dor pra que ela se deite do meu lado. Não me cobrem coerência, eu sou dissidente de mim mesmo. Não me ditem as regras, eu as subverto todas. Não queiram de mim a maturidade dos 40 anos, permaneço de calças curtas e camisa listrada pronto pro próximo tropeço. E não me venham com a conversa de manter aceso em mim o menino que um dia eu fui, sinto-me velho como uma múmia e disposto a fazer coisas que nem quando menino eu fiz. Não me peçam a metade de nada, só sei oferecer o inteiro.

Quando nasceu o dia, hoje, quando o sol despontou sobre os edifícios (notem a falta de poesia e seu excesso, numa manhã tijucana), eu tinha a cara lavada, os olhos vermelhos, as mãos trêmulas, as pernas bambas, o coração acelerado em ligeiro descompasso, e estava dotado de uma coragem que, nem mesmo nos sonhos em que sou herói, eu nunca tive.

Talvez só mesmo meu mano Luiz Antonio Simas me compreenda: mas não por acaso, em todas as oportunidades que me foram dadas de estar diante de Ifá, Orunmilá me disse:

– Você é filho de Ogum, meu filho. Mas quem te sopra nos ouvidos, o tempo todo, é Exu.

Até.

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CENAS TIJUCANAS

Corria sei lá que domingo, não lembro nem a fórceps. Sei que era dia de Flamengo – e também não consigo me lembrar do adversário… – e dia também de jogo do Vasco, o que significa dizer que o Bar do Marreco, meu camarote preferido em nove dentre dez jogos, estava fervilhando de gente. O Marreco, um desses donos de botequim que parece ter sido criado pelo ficcionista, anunciou, pouco antes do começo do Brasileirão 2011:

– Rapaziada, assinei hoje o Net Congo! – que “combo” é palavra desconhecida do caboclo.

Eu havia cumprido o ritual de todos os domingos: havia ido à feira bem cedo, ao Mundial, ao Aconchego Carioca, marquei de almoçar no Rex com Felipinho e Leo Boechat e chegamos no bar pra ver o jogo faltando – o quê?! – menos de dez minutos pro começo da partida. Vamos ao cenário.

O bar tem uma TV de 29 polegadas que fica bem diante do balcão. No fundo, uma pequena, de 21 polegadas, que passa sempre um jogo diferente. Como Flamengo é Flamengo, o jogo do mais-querido passaria na TV maior, o do Vasco na TV dos fundos. Havia umas quarenta pessoas espremidas no recinto. Hino nacional sendo cantado na TV. Eu disse ao Marreco, já debruçado no balcão:

– Marreco! Empresta uma tomada pra carregar meu celular!

Sabe-se lá se antevendo a tragédia, disse o Marreco pro Boechat:

– O cara parece que não paga a conta de luz… vem todos os dias carregar esse celular aqui… – e não me respondeu. Passou por mim como uma flecha.

Determinado a carregar o telefone, que se esvaía, debrucei-me sobre o balcão e me deparei com um comovente emaranhado de fios diante de mim. Ao mesmo tempo em que disse – “Vou carregar aqui!” – encaixei o macho da tomada do carregador na fêmea de um dos benjamins espetados na tomada da parede (eu disse “um dos benjamins” porque eram uns 3 ou 4, um encaixado no outro, verdadeira armadilha à espera da tragédia incendiária). Faltavam menos de dois minutos pro começo do jogo, os times já se encontravam posicionados, a tensão pairava sobre as cabeças da assistência. No que espetei o carregador, deu-se a explosão. Não fui arremassado pra calçada porque fui escorado pelo Boechat. Subitamente, breu absoluto no bar. Silêncio. Não se ouvia as TVs, que desligaram. Não se ouvia o ronco do motor das geladeiras. Não se ouvia um pio vindo da assistência, assombrada diante do estrondo. O Leo, com as mãos na cabeça, sussurrou no meu ouvido:

– Não fosse a sua moral aqui e você estaria sendo linchado…

De fato era essa, a cena: eu estava cravado por mais de oitenta olhos que espumavam de ódio (a primeira foto abaixo não engana, eu e minha cara de “fiz-merda”, com o carregador ainda na mão!), mas ninguém foi capaz da agressão verbal. O Marreco me olhou com olhos de piedade. O Borracha, eletricista, na segunda foto abaixo, de camisa listrada, pediu calma do alto de seus mais de dois metros e passou a dar instruções ao próprio Marreco, desolado do lado de dentro do balcão, e ao Jair (ambos na mesma segunda foto), freqüentador honorário (o Jair está com a camisa do Flamengo), que pôs a mão na massa de fios derretidos.

O Borracha fez o possível e, é fato, em menos de cinco minutos as TVs estavam funcionando – com um adendo gravíssimo, entretanto: foi preciso fazer uma gambiarra (mais uma, diga-se) que obrigou o Marreco a manter a geladeira desligada para manter ligadas as TVs. Aí sim a cuíca começou a roncar:

– Ô, Marreco! A cerveja vai ficar quente, imbecil? – são doces, os freqüentadores do Marreco.

A tarde ainda reservava surpresas. Com menos de 15 minutos de jogo, a TV menor, a que passava o jogo do Vasco, do nada, aparentemente sozinha, passou a transmitir o insuportável programa do Fausto Silva. Foi quando caiu por terra o mito do pay-per-view do Marreco. Diante do justificado protesto da torcida cruzmaltina, apontando para um fio que rasgava o teto do bar, o Marreco disse, de olhos baixos:

– Essa TV é gato puxado da casa do seu Brasil…

Foi vaiado.

Um vascaíno foi pra calçada e gritou, olhando pra cima:

– Ô, Brasil! Põe no jogo do Vasco, porra!

O bom Brasil o atendeu. Palmas nos fundos do bar.

Veio o intervalo. E um grito:

– Desliga a TV e liga a geladeira! A cerveja está esquentando!

E assim foi feito.

Jogo terminado – o Flamengo venceu, o que fez com que os contratempos fossem absolutamente relevados -, ainda desceu o seu Brasil com duas panelas gigantescas, uma com camarão frito e outra com arroz de frutos do mar.

A título de curiosidade: a tomada do microondas, a tal que eu explodi, continua lá, do mesmo jeito, à espera da próxima tragédia.

Isso é Tijuca, meus poucos mas fiéis leitores.

Tijuca em estado bruto.

Até.

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AS MANHÃS SÃO ESPONTÂNEAS

Já há anos que eu acordo cedo, cedíssimo, e que o despertador, sempre pronto pra tocar às seis horas, é apenas uma música de fundo, incômoda, a me lembrar do horário – e os sinos da Igreja dos Capuchinhos vêm em seguida, produzindo a trilha sonora do homem que olha pela janela como quem espreita o infinito que a ausência de mar na Tijuca não realiza. Sou, aos 42 anos, novamente o menino que dorme sozinho no quarto à espera da manhã pra me dizer, siga! Sou, aos 42 anos, novamente o menino aprendendo a andar, tropeçando nas palavras, tentando balbuciar o inexprimível, como na manhã em que precisei recorrer a duas long-neck geladas pra tomar coragem junto com a cevada, o lúpulo e outros cereais, antes de dizer o que me parecia justamente inexprimível. Sou, de novo, o poltrão, o inseguro, o que tateia antes do segundo passo, e ao mesmo tempo sou o que permanentemente cai por conta da ansiedade do passo-a-mais. Sou o que se levanta à espera das mãos que hão de me conduzir, embora ofereça minhas mãos, permanentemente, como prova de amor. Olhar pela janela, a cada manhã, antes de bater a porta e sair em busca de caminhar a esmo, tem sido parte desse exercício de enxergar o mais-distante, o tal infinito que é infinitamente mais bonito diante do mar. Tem sido necessário para me fazer (re)dimensionar meu papel e minha missão, minha meta e meus objetivos, para entender meus desejos e compreender os festejos e essa emoção que me chega, dia após dia. É quando rezo – e eu rezo como quem fala, não sigo rito, não sigo nada que não seja o coração, esse meu velho coração tijucano, rubro-negro e suburbano, já tantas vezes em frangalhos e hoje cheio de esperança de viver de novo. Sou, de novo, o que-descobre. O que tem sede das novidades que estão aí para serem vividas. Sou, ainda, o mesmo homem de olhos úmidos incapaz de se manter indiferente às emoções que a vida nos reserva. Sou o homem pronto e disposto a viver o que já tinha como certo na conta do irrealizável, do não-vivido. Sou o homem com olhos de susto, com olhos de medo, com olhos que extravasam luz ao pensar no por-vir. Sou o homem de 69, aquele moleque de calças curtas e camisas listradas e este homem de hoje, o que tem mãos que tateiam o futuro como quem tateia e anseia pelo que nem eu mesmo, se me fosse dado o direito de moldá-lo, teria sido capaz de imaginar tão bonito.

Até.

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VELHAS RUAS

Vira e mexe me vem à cabeça o verso blanquiano “… velhas ruas, cansado da boemia, entre essas pedras, um dia, quero cair e morrer…”. Sou, como se vê, embora eu seja um sujeito em permanente estado de ânimo, um trágico (sempre fui um trágico). Desde que ouvi a tal canção pela primeira vez que eu não consigo andar em qualquer rua de paralelepípedo sem que me venha à mente:

– Quero cair e morrer…

É que ando, meus poucos mas fiéis leitores, e pra me valer um pouco mais da poesia do bardo, sentindo meu coração vacilando e saindo, às vezes, fora da velha cadência. É só um momento, bem sei. Mas eu, que faço disso aqui uma espécie de auto-divã no qual converso sozinho comigo mesmo (e tenho piedade aguda de minha pessoa, nessas horas…), não poderia deixar de lhes dizer isso.

Sou eu, aos 42 anos de idade, e logo eu, que tantos arremessos ao passado sofro ao longo do tempo, sentindo, mais que o peso da idade (sou uma múmia que caminha serelepe), o peso bruto da vida bruta e toda a sua bagagem composta de lembranças, de dores, de medos, de ansiedade, de insegurança, desse misto entre a pureza da criança e a crueza da vida adulta, entre as esperanças e as frustrações, entre a calmaria e a turbulência, entre a cumeeira e o baixio, de perdas, de muitos ganhos, de amores que vêm, de amores que vão, de muitas alegrias, de momentos que se cravam em nós como flecha, essa boniteza infinita que a vida dá a todos nós. É preciso, mais que nunca é preciso, saber lidar com isso. Não nos resta outra opção. A vida está aí, queiramos ou não.

E eis que é essa a visão que tenho, permanente, da trilha que sigo na vida. Sigo pela imaginária rua de paralelepípedos, sinto nos ombros, sem que isso me incomode, o peso fabuloso e desejável da vida, sempre com medo, com certo medo, de que eu de fato caia e morra, embora seja inevitável, é evidente, que esse dia um dia chegue. Minha rua de paralelepípedos tem, entretanto, e é isso que me sustenta, e é isso que me dá de novo o compasso que o coração pareceu perder, uma nesga permanente de intensa luz a me guiar os passos.

Ouçam aqui, que o troço é bonito de doer, e foi escrito para sua mãe, Helena, a quem tive o prazer de conhecer, Aldir Blanc cantando Velhas Ruas.

Até.

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UÍSQUE, 8 ANOS

Fui com ele ao shopping mais próximo, a bem da verdade, pra fazer passar o tempo. O Flamengo entraria em campo às quatro da tarde, eu estava mesmo querendo beber alguma coisa pra preparar o coração pras emoções do jogo – poderíamos assumir a liderança do campeonato, o que de fato acabou acontecendo -, tomamos a direção do Outback, no subsolo e, diante da previsível fila, nos restou o balcão do bar. Antes, faço a confissão, fui constrangedoramente convencido por ele a comprar um desses jogos eletrônicos modernosos, depois de um argumento que, vindo de criança, dificilmente não me derruba:

– Eu quero tanto…

DVD do tal jogo comprado, lá fomos nós, então, pro balcão do bar.

Primeira frase:

– O que você vai beber?

– Um chope – eu disse.

– Chope? – e fez uma cara de quem me condenava pela escolha.

Emendou:

– Pede uma cachaça, uma tequila, um uísque.

– Por que?

– Você está num bar! Chope, você bebe sempre.

– Vou beber chope. E você?

E ele pediu o cardápio à moça do balcão.

Leu com atenção e abriu olhos e boca ao mesmo tempo, uma máscara.

– O que foi? – eu perguntei diante do que me pareceu um susto.

Não era susto. Era excitação:

– Eu já tenho nove anos! Nove anos!

– Sim, e daí?

Apontou pro Red Label, no cardápio, e disse, seriíssimo:

– Já posso beber esse uísque. É pra quem tem mais de 8 anos, ó! – e me apontou a legenda “8 anos”.

A moça do balcão guinchou de rir, eu expliquei a ele o que significava aquilo, rindo, e a cara de decepção foi, faço nova confissão, capaz de me apertar o peito. Ele contentou-se com refrigerante e levou um tempo até aceitar a idéia de que precisa esperar um bocado de tempo, ainda, pra dividir bebida com quem quer que seja.

O menino vai demais com a minha cara, e esse que vos escreve é, hoje, um sujeito que anda de quatro diante dele. Eu, padrinho de mais de uma dezena de crianças, aprendi (ou isso é nato, não sei…) a lidar com elas. Eu, que não sou pai, talvez por isso leve mais a sério do que a média o fabuloso encargo de ser padrinho, o “pai pequeno” dos pequenos e pequenas que me foram confiados. Ele, o moleque a que me refiro, não me foi exatamente confiado. Não sou padrinho dele, é o que quero lhes dizer.

Mas ele vai demais com a minha cara, como já lhes disse, e eu vou demais com a cara dele.

Paguei a conta do bar e tomamos, de mãos dadas, o rumo de casa para ver o jogo. Deitei-me no sofá e ele, grudado em mim como uma iguana, disse:

– Posso ver o jogo em cima de você?

– Pode!

Primeiro tempo, zero a zero. Aos 30 minutos do segundo tempo, eu já nervoso, bola na trave, o tempo passando, ele me cutucou na cabeça:

– Fica calmo, Edu! O Flamengo vai fazer o gol aos 44 minutos!

Dito e feito.

São aquelas coisas que, sem modéstia, só acontecem comigo.

Ele, hoje, muito presente na minha vida, me trouxe sua caixa de lápis de cor e me mostra cores novas a cada dia. Também por isso, como tantas vezes tenho dito, só tenho razões pra agradecer, minuto após minuto, os desenhos que a vida reserva pra mim. Sempre que os caminhos me foram doídos, abri uma picada na mata e pude respirar de novo. Talvez seja, como disse meu mano Luiz Antonio Simas, dia desses, fruto do movimento de pilar o pilão que Oxalá faz, transformando dor em beleza.

Até.

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