Já que falei hoje, mais cedo, aqui, sobre o Rio de Janeiro, essa cidade absolutamente fora de série, decidi transcrever alguns trechos de uma recente entrevista que demos, eu e Luiz Antonio Simas, professor maiúsculo as 24h do dia, justamente sobre o Rio. É evidente que as transcrições são todas de falas do Simas, que estava, inclusive, emocionadíssimo nesse dia. Exaltou-se, falou alto, foi veemente quando expôs, de forma despudorada, sua paixão pela cidade em que vive.
“Quando eu falo pra alguém conhecer o Rio de Janeiro, a primeira coisa que eu digo é o seguinte: já é uma cidade interessante pra você conhecer, porque é uma cidade absolutamente improvável. Se você observa, por exemplo, a característica da geografia do Rio, aqui não era pra você ter cidade nenhuma! Porque isso aqui era pântano, era montanha, era alagadiço, era o mar invadindo tudo… Então pra você construir uma cidade aqui, você teve que furar morro pra fazer túnel, você teve que drenar pântano, então é uma cidade absolutamente inusitada. E eu acho que o Rio é a cidade mais sincera do Brasil. Por que? Por conta dessa geografia muito peculiar do Rio… a montanha, o mar… O Rio é uma cidade, por exemplo, que não tem aquela noção clássica de periferia. Quando você chega, por exemplo, a São Paulo, a Belo Horizonte, você tem um centro, você tem uma região que é habitada por uma classe média, por uma classe média-alta, e aí você vai lá pro inferno e lá no inferno você tem a periferia…. A periferia do Rio de Janeiro tá dentro da cidade! O Leblon, que é o bairro de IPTU mais caro, Ipanema, que tem IPTU mais caro… Só que Ipanema tá convivendo com o Pavão-Pavãozinho, o Leblon tá convivendo com o Vidigal, aqui na Tijuca a gente tá convivendo com o Borel, tá convivendo com a Formiga, tá convivendo com o morro do Salgueiro, a gente tá convivendo com o Turano, a gente tá convivendo com a Casa Branca… E isso deu ao Rio de Janeiro uma peculiaridade cultural absolutamente maravilhosa… Isso é muito sério! Quando o Noel Rosa morreu, que é um ícone da nossa cidade… o Zé Ramos da Mangueira fez um samba pro Noel Rosa! O Noel Rosa era o branco, o Noel Rosa era o estudante de Medicina, o Noel Rosa era o aluno do São Bento que subia o morro da Mangueira porque era do lado da Vila Isabel, onde ele morava, um bairro que tinha operário, que tinha classe média… Aí o Zé Ramos faz o samba quando o Noel morre, ele diz (cantando): “Chegou a capital do samba / Dando boa noite com alegria / Viemos apresentar o que a Mangueira tem / Mocidade, samba e harmonia / Nossas baianas com seus colares e guias / Até parece que estou na Bahia”. Aí ele diz: “Da cidade alta da Mangueira / Avisto a Vila, sinto saudades de alguém…”. Sinto saudades de alguém! É o Noel! É do Noel! Ele tá lá do alto do morro da Mangueira, e da cidade alta da Mangueira ele enxerga Vila Isabel! Ele enxerga o bairro onde viveu o sujeito de classe média, o Noel Rosa…Que aí subiu o morro, e aí o morro desceu… Então isso deu ao Rio de Janeiro uma peculiaridade! A nossa cidade é uma cidade única! É uma cidade que misturou tudo, é uma cidade de cultura de fronteira, é uma cidade em que a periferia tá dentro dela, o Rio de Janeiro não é uma cidade covarde! Todas as críticas que fazem à minha cidade do Rio de Janeiro são críticas que me fazem cada vez mais gostar do Rio de Janeiro! Porque o Rio de Janeiro não esconde! O Rio de Janeiro é aquilo que ele é mesmo! Eu chamaria um sujeito pra conhecer o Rio de Janeiro, primeiro, pra conhecer uma cidade que é rigorosamente peculiar. Você não vai encontrar outra com essa característica que o Rio tem!
A formação do Rio é muito parecida com Salvador, com São Luis do Maranhão, com o Recife… Na verdade, foram os grandes portos de recebimento de escravos no Brasil… Se você considerar que a gente teve 388 anos de escravidão, quase 4 séculos, a cidade é essencialmente uma cidade de rua, uma cidade negra, que tem essa característica…Aqui, pro Rio, vieram muitos bantos, depois chegam os yorubás, e os saberes africanos tem uma característica peculiar que é a seguinte: a cultura, a vida, ela se passa muito no espaço da rua, no espaço do mercado, a casa é um detalhe! Então o Rio de Janeiro tem uma tradição que eu acho que herdou da África… como Salvador tem, como São Luis tem… como Havana, em Cuba, tem… Esse detalhe é interessante… é uma cidade de rua, é uma cidade de mercado, em que o encontro é no espaço público… De certa maneira, o espaço de civilização entre os africanos é o espaço público. A vida ali se passa na rua… Você chega à Nigéria, à Angola, ao Congo, a rua é o espaço de convívio. E o Rio é uma cidade de rua, as coisas acontecem na rua, é a cidade do mercado, da feira… o Rio é uma das quatro grandes cidades do Brasil que eu chamo de cidades que têm como patrono, Elegbara, Exu… a entidade que cuida da rua, da esquina… Daí a ligação com Salvador, que é conhecida como a Roma Negra…
Se você chegasse no Rio de Janeiro em 1910, você ia observar o seguinte: está surgindo o samba urbano, tal como o conhecemos hoje, como manifestação cultural de comunidades negras… quem faz samba em 1910 é o preto! É o cara que tá batendo tambor, são as macumbas na casa da Tia Ciata, tá rolando aquele babado entre os negros. E o futebol era praticado rigorosamente por branco. Então em 1910, é o branco joga bola e é o preto faz samba. Se você viaja um pouquinho no tempo e chega ao início dos anos 30, o grande ídolo do futebol no Rio de Janeiro é um preto, é Leônidas da Silva, e o grande sambista é um branco de classe média, o Noel Rosa. O Rio é a cidade que permitiu ao branco fazer samba e ao preto jogar bola! Os dois se conheceram, porque o Leônidas chegou a morar em Vila Isabel, o Noel era de 1910, o Leônidas de 1913… É uma circulação tensa e intensa…”
É por isso que eu sempre digo e agora repito: sou um sujeito de sorte por desfrutar do convívio com esse brasileiro máximo que é Luiz Antonio Simas!
Até.