BARREADO DE MORRETES, A RECEITA

No menu à direita do blog há a Cozinha do Buteco na qual exibo, até agora, 19 receitas ditadas à minha moda. Nenhuma delas, meus poucos mas fiéis leitores, me deu tanto prazer quanto a vigésima – que preparei desde a manhã de sábado para servir no almoço do domingo: a do Barreado de Morretes. Faço, antes de irmos à receita propriamente dita, pequeno intróito pra que vocês compreendam a dimensão que a coisa tomou em mim.

Quem me conhece, sabe: desde o final de dezembro de 2012 divido teto, a vida, os sonhos, com a Morena – a quem conheci no Rio de Janeiro, a quem fui conhecendo aos poucos durante todo o ano graças à ponte aérea Rio x Curitiba x Rio e a quem rendi (mais uma) homenagem quando decidi preparar o Barreado de Morretes, prato típico – o prinicipal – do seu Paraná.

Obsessivo que sou, e depois de ter provado in loco o Barreado de Morretes (um prato de sabor impressionante), pus na cabeça que o preparia no Ri0 de Janeiro. Li muito. Pesquisei muito e indico, para quem for curioso e apreciador do tema, o trabalho “Barreado: sabor, história e cultura no litoral paranaense”, de autoria de Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, que se baseia “na pesquisa realizada quando da elaboração da tese de doutorado em História pela Universidade Federal do Paraná, intitulada Cozinhando a tradição: festa, cultura e história no litoral paranaense, que compreendeu uma revisão bibliográfica sobre história do Paraná, com particular enfoque na alimentação, o levantamento de documentos em bibliotecas e arquivos públicos (incluindo folders, materiais de divulgação institucional e de restaurantes), além de quarenta e quatro entrevistas de História Oral. O Barreado, prato típico do litoral paranaense, é caracterizado como iguaria culinária e também como símbolo de sua região, tendo este artigo como foco o crescimento da oferta comercial desse prato nos municípios de Antonina, Morretes e Paranaguá.” (pode ser lido, na íntegra, aqui).

E por que tanto esmero? Tanta pesquisa? Tanto cuidado? Porque são muitas as lendas que cercam o preparo do Barreado, um prato que pode levar até 24 horas pra ficar pronto! Porque eu queria fazê-lo como homenagem e como presente pra ela, que deixou o Paraná que tanto ama pra vir viver comigo no Rio de Janeiro. Porque queria sua avaliação, porque queria convidar um casal de amigos queridos, Ana Maria e Rodrigo Gava (de quem já lhes falei aqui), eles também paranaenses, e foi assim que decidimos, eu e a Morena, que seria finalmente no domingo o grande dia (completavam a mesa o pequeno Benjamin, Sonia – cozinheira de mão cheia! – e Marcela).

Vamos ao rito.

Comprei um panela de barro capixaba (como a que você pode ver adiante) e tratei de, uns dias antes, curá-la: pus a panela no fogo alto com bastante azeite e deixei ferver, pincelando-a por dentro, com paciência, do fundo à borda (incluindo a tampa por dentro) e assim ficou por mais ou menos meia-hora. Tirei do fogo, deixei esfriar, dispensei o azeite e lavei-a bem, com bastante água e sabão: estava pronta pra usar.

Na sexta-feira à tarde fui ao açougue e aqui faço um parênteses. É cada vez mais difícil encontrar um açougue de verdade com açougueiros de verdade, daqueles que amam o ofício… Nada mais detestável do que os açougues dos supermercados, que tratam a carne sem o cuidado que só mesmo um profissional zeloso sabe tratar. Dei essa sorte: graças à Flávia, que incorpora, dia-a-dia, o espírito carioca e tijucano de forma comovente, conheci o açougue Vila Nova de Gaia, na rua Haddock Lobo, comandado pelo seu Daniel, um português que cuida da carne com um carinho que só vendo!

E vale outra nota: são muitas e muito díspares as receitas de Barreado! Vali-me da sensibilidade que adquiri graças à paixão que tenho pelo ato de cozinhar e fui adaptando tudo o que li ao meu gosto, ao meu feitio, em busca do que pretendi ser um Barreado de Morretes de fazer chorar um paranaense!

Pois no açougue eu comprei (para 10 pessoas): 1kg de patinho, 1kg de bola de pá, 1kg de acém, 1 kg de peito e 1kg de chã. Seu Daniel tratou de limpá-las o mais que pôde (as carnes têm de ir muito limpas para a panela) e entregou-me as cinco peças de carne inteiras para que eu mesmo, na manhã do sábado, pudesse cortá-las à moda e terminar de limpá-las.

E você ainda vai precisar de: dois pacotes de bacon em tiras, louro fresco, cominho em pó, seis cebolas das grandes, duas cabeças de alho, 500g de farinha de mandioca crua, 500g de farinha de mandioca torrada, banana, água e muita, muita, muita paciência!

Aqui, o quilo de patinho. Com cada uma das peças o procedimento é o mesmo. Limpá-las, tirar a gordura, os nervos mais expostos, e cortá-las em peças retangulares com dois dedos de altura no máximo, três dedos de largura e cinco de comprimento (há quem prefira cortar em cubos).

1 patinho

Aqui, o quilo de bola da pá, também chamado no Rio de miolo da paleta (em alguns lugares é chamada de posta gorda, e recomendo muito este site, o SIC – Serviço de Informação da Carne, aqui, onde se aprende muito sobre os vários nomes que as carnes têm Brasil afora).

2 bola da pá

Depois tratei de cortar, e limpar, o quilo de acém, que é chamado lombo de agulha no Paraná.

3 acém

Tratei de fazer o mesmo com o quilo do peito…

4 peito

E por fim, com o quilo do chã (ou coxão mole).

5 chã

Com os 5kg de carne já fatiados, preparei a marinada: no liqüidificador bati água, duas cebolas, cinco dentes de alho e algumas folhas de louro. Usei um recipiente grande que podia ser bem vedado e cobri toda a carne com o líquido perfumadíssimo… e fiquei mexendo, de meia em meia-hora… e isso durante seis horas.

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Quem cozinha sabe o aroma que toma conta da cozinha, da casa, quando você abre a tampa de uma marinada… A foto abaixo foi feita no exato instante em que abri, por volta das 17h de sábado, a geladeira que guardava as carnes e os temperos…

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Era hora, finalmente, de começar a tratar da montagem das carnes e dos temperos no interior da panela. Note, você, que a panela está sobre uma chapa de ferro que será muito útil no decorrer da madrugada…

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Primeiro passo: forrar o fundo da panela com as tiras de bacon para evitar que a carne pegue no fundo da panela durante o cozimento. Afinal, serão muitas horas no fogo e grande parte delas com a panela tampada e vedada pelo “barro” que teremos de fazer com farinha e água!

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Depois de forrar todo o fundo da panela, cuidando para que fiquem muito próximas umas das outras, as tiras, pus uma segunda camada de tiras de bacon, quase querendo subir pelas paredes da panela.

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Próximo passo? Cubra toda a camada de bacon com os pedaços de carne (não é para empilhar as carnes, apenas uma camada de carnes sobre o bacon). Sobre as carnes, as cebolas cortadas em pedaços bem generosos, alho picado, cominho, louro… e mais uma camada de carne… e mais cebola, e mais alho, e mais cominho, e mais louro… e enquanto vai montando a panela, com uma colher de pau, e sem muita força, vá ajeitando as camadas, firmando tudo a fim de que fiquem, todos os ingredientes, bem compactos.

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E você vai fazer isso até quase atingir o alto da panela (imagem abaixo). Regue tudo com o líquido da marinada, cubra com mais folhas de louro, mais cominho, mais alho, mais cebola… e trate de ir pondo água aos poucos, devagar e sem pressa, para que a água desça pelos meandros das carnes, atinja o fundo do panela e fique, por fim, cobrindo tudo… é hora de pôr o sal. Eu usei 2 colheres de sopa de sal.

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Feito isso, é hora de barrear a panela. Despeje a farinha de mandioca numa bacia com água o bastante para formar uma massa que, moldada com as mãos, permita a vedação da panela (veja na imagem abaixo). Aperte bem de modo a vedar, completamente, os vãos entre a tampa e a panela.

Hora de acender o fogo alto.

E no fogo alto a panela ficará por uma hora. E já é hora de começar a cuidar do barro, afinal de contas você tem diante de si uma panela de pressão artesanal! Se surgir um furo (por onde vazará água quente), trate de fazer mais massa para tampá-lo. Depois de uma hora, mais duas horas de fogo médio.

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Eu acendi o fogo às 19h20min. Portanto, a panela ficou em fogo alto até 20h20min e em fogo médio até 22h20min. Foi quando pus a panela sobre a chapa de ferro (já bem quente) em fogo baixo. Durante todo o tempo, auscultei a panela: pus o ouvido sobre o puxador da tampa para ouvir o ronco da água fervendo sem muita fúria. Acordei de hora em hora a fim de checar o estado do barro…

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Às 07h20min da manhã comecei a retirar, com cuidado, o barro em torno da tampa. Abri a panela e vi o espetáculo: as carnes ainda inteiras, já querendo se desfazer, o nível da água, claro, um pouco baixo, um cheiro impressionante invadindo a casa, tratei de mexer um bocado com uma colher de pau, corrigi o sal, pus mais água, tampei de novo a panela e barreei tudo de novo, levando-a de volta ao fogo, agora de médio para alto, sobre a chapa de ferro.

Foi quando começou, pra valer, a vazar a pressão.

E tome de barrear mais e mais a panela.

Por volta das 10h20min era essa a visão…

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Exatamente às 12h20min, ou seja… 17 horas depois… tirei de novo o barro da panela… E como dessa vez era muito, porque vazou muita água… o barro de farinha foi saindo aos blocos, quente, úmido por dentro, e nada, nada, nada!, pagará o prazer que foi ver os olhos marejados da Morena diante da panela finalmente aberta…

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A carne toda desfiada, “o cheiro de Morretes!”  – ela gritou na cozinha -, o caldo no ponto certo, a panela íntegra (são inúmeros os relatos de panelas que racham durante o fazimento), e – confesso – um tremendo orgulho de mim mesmo. Evocamos seus antepassados, brindamos a eles, convidamos todos a participarem da festa conosco, e a Morena arrumou tão linda, a mesa, e bebemos a cachaça de Morretes que ela me trouxe de presente no início de 2012, e fomos tratando de comemorar o feito (sim, um feito!) e de ajeitar a casa pra receber os de-sorte!

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À moda da Sonia, anfitriã de mão cheia, a Morena ajeitou na cozinha os limões, cajus, limas-da-Pérsia, kiwi, copos, açucar, uca, cumbuca de gelo, facas e mexedores e chegaram Sonia e Marcela e logo depois Ana Maria e Gava trazendo consigo o pequenino Benjamin – paranaense como os pais e como minha Morena.

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Foi um almoço e tanto. Ainda preparei, na panela de pedra sabão, um arroz carregado na cebola e no alho. E tratamos de comer o Barreado de Morretes à moda: farinha de mandioca forrando todo o prato coberta com o caldo do Barreado colhido com uma concha pra fazer um pirão. Bananas em rodelas, um pouco de arroz e aquela carne toda desfiada, perfeita (às favas, a modéstia!), numa visão de alucinar qualquer um que enlouqueça diante da vasta culinária brasileira.

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Meu agradecimento, por fim, à vó Branca – avó materna de minha Morena – que me trouxe de volta a delícia de ter avó. Foi pra ela que eu liguei, na noite do sábado, como quem não quer nada, pedindo que ela rezasse, lá de Ponta Grossa, pro meu Barreado de Morretes dar certo.

Até.

21 Comentários

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21 Respostas para “BARREADO DE MORRETES, A RECEITA

  1. É a primeira vez que dou as caras aqui. E o faço na intenção de ser justa – a justiça, minha fiel companheira. É que os que lerão esta receita não vão sentir os cheiros, não degustarão do sabor, e, quiçá, duvidarão das 19 horas de cozimento. Por isso, do alto dos meus 36 anos, na condição de paranaense que conhece esse gosto desde criança, de apaixonada por este prato, digo para quem quiser ouvir: foi assim, e foi o melhor Barreado que jamais comi em toda a vida.

  2. Marcão

    Eu estou impressionadíssimo. Sensacional!!!

    • Marcão: é de impressionar, mesmo. E lanço, daqui, o convite: venha ao Rio. Avise-me com razoável antecedência. Atravesse um final de semana em solo carioca. E eu preparo, para nós (a Morena vai adorar!), o Barreado de Morretes mais uma vez. Forte abraço.

  3. Anderson Evangelista

    Toda essa epopéia deveria ser contada em um documentário. Acompanhei esse parto via Twitter e graças a Jah, a criança nasceu com saúde e sabor. Aguardemos as próximas aventuras culinárias do Super Edu e sua fiel escudeira, Morena. Abraços a todos.

  4. Christiane Brasil

    Confesso que fiquei com uma pontinha de inveja de quem teve o privilégio de provar de mais uma de suas receitas (eu o acompanho há muito tempo, e há muito tempo nutro essa pontinha de inveja que é fruto de muita admiração por sua trajetória, dentro e fora da cozinha do Buteco do Edu). Mas fiquei mesmo foi muito orgulhosa de ser uma de suas poucas mas fiéis leitoras, que não são tão “poucas” assim, e eu tenho certeza de que você sabe disso. Porque perceber você de novo envolvido pelo sentimento que você emana quando escreve, o amor, é um alento para os que gostam de você mesmo sem a sorte de conhecê-lo pessoalmente. Boa sorte a você e a Morena!

  5. olney figueiredo

    Vi a reportagem (ou documentário) sobre esse prato no canal SescTV; muito bacana a história sobre a origem e a manutenção da tradição dessa comida paranaense. Parabéns pela sua coragem e talento para enfrentar essa empreitada e, pelo visto, com muito sucesso. Deu água na boca…

  6. Rodrigo Azevedo

    Excelente! Adoro este prato!

    Rodrigo Azevedo +5521 8311-9142 http://www.aaa.com.br

    sent from my mobile

  7. Grande Edu. Saudades de Morretes e do barreado. Na época, quando desci a serra de trem, a cachaça de banana me animou a dançar o fandango. Parabéns.

  8. Mandou bem, hein Eduardo! Acabei de entrar no teu blog e dou de cara com esse post de um dos meus pratos favoritos. Depois de dar uma passada de olhos dos demais post receba meus parabéns. Curti o blog e tal. Vou começar a seguí-lo. Um abraço, Rodrigo.

  9. Meu Deus, que maravilha! Saudade do barreado de Morretes. O restaurante em que comi essa delícia ainda tinha um desnecessário rodízio de frutos do mar. Pra quê? Basta essa carne maravilhosa com farinha pra gente ser feliz!

  10. Marcos Cunha

    Parabéns pela dedicação. Barreado é um prato que requer muita paciência do cozinheiro. As várias etapas do processo e o longo tempo de cocção são desafios consideráveis para obtenção do resultado desejado, e pelo que vi, você transpôs esses obstáculos com mestria e elegância. Admiro tanto seu verve literária como esse teu lado de Chef. Mais uma vez, parabéns!

  11. maria margarida da silva

    como usar a panela de barro, pela primeira vez, agradeço quem puder me orientar. obs panela nova.

  12. Lí a sua receita, Você é um verdadeiro mestre culinário. Será que eu consigo fazer essa receita aqui em Ribeirão Preto? Terei a sua paciencia para esperar tanto tempo? Acho que não , Vou viajar até ai mais de 700 kilometros só para experimentar essa sua delicia. Me aguarde.

  13. Pingback: O SEGUNDO BARREADO DE MORRETES | BUTECO DO EDU

  14. Pingback: Barreado de Morretes - Receita do prato típico paranaense

  15. Carlos Couto

    Eu achava que o barreado não levava água, cozinhava na própria água das carnes. Enfim, o que importa é que deu certo.

  16. Rodrigo

    Confesso que me emocionei ao ler sua obra de arte culinária.
    Já fiz barreado algumas vezes, mas nunca em panela de barro.
    Sei que não fica a mesma coisa, mas muito parecido com o original.
    Parabéns!

  17. Jeferson A Cerantola

    Imagino que esse que você fez, cheio de “amor pelo que faz”, vale mais do que aqueles que servem em Morretes. Conheci Morretes há mais de 40 anos. Na época era um duro, sem grana. Hoje faço meus pratos, tudo com tempero natural que eu mesmo cultivo e uso com muita frequência meu fogão a lenha. Tudo sai muito bom. Enquanto cozinho vou degustando blues, bons vinhos e bons papos. A vida é isso, tudo com moderação. Vou fazer essa receita. Gostei. Tenho certeza que com esse mestre vai sair uma obra culinária perfeita. Forte abraço e sucesso.

  18. Kelly

    Parece dificil preparar, mas percebi q vale a pena😉

  19. Ler seus textos dá água na boca!

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