Amanhã, 25 de janeiro de 2014, meu pai faz 70 anos de idade. E quando eu escrevo “meu pai faz 70 anos de idade” sou tomado, preciso fazer a confissão, por um tremor de alma, um frio na barriga, um embaçar de olhos, um tremor nas mãos e se faz necessário beber um pouquinho pra ter argumento, apud Aldir Blanc. Por isso eu bendigo tanto a garrafa de uísque que mantenho sempre por perto.
Meu pai – quem me lê, sabe – é um homem de hábitos simples, como seus pais, meus avós, judeus russos fugidos de Odessa, desembarcados no Brasil, moradores da rua Campos da Paz, depois da rua Santa Alexandrina, depois da rua Haddock Lobo. Meu avô era mascate, minha avó, dona-de-casa. Meu pai foi petroleiro – seu primeiro e último emprego.
Meu pai é um homem de emoções contidas mas capaz de protagonizar uma cena como essa, que lhes contei aqui, em julho de 2005:
“Já lhes contei que o Isaac, no início da década de 60, deu de cara com a mamãe numa festa em que ele era o penetra (uma rotina pra ele. Papai, Mauro, Pato e Babolina não passavam um único final de semana sem uma festa, sem uma penetrada clássica). Numa casa suntuosa na Rua Mariz e Barros, copo de Cuba Libre na mão, cigarro no canto da boca, papai não suportou ver o par de coxas morenas de mamãe deslizando degraus abaixo numa escada de mogno em caracol. Estacou ali, diante dela, os olhos dando voltas como um carrinho de montanha-russa, e ao som de “Georgia on my mind”, na voz do Ray Charles, disse-lhe ao pé do ouvido, “caso com você um dia!”. E assim foi feito.
Pois em determinado momento da noite, já era noite, papai, carregado na cerveja, pediu silêncio ao Fefê e a todos. Cambaleando, foi até o minisystem e catou um CD. E pôs pra tocar, justamente, Ray Charles cantando “Georgia on my mind”. E a cena foi de uma beleza tocante.
Sem que nenhum de nós entendesse nada, papai foi até os fundos do terraço e voltou com uma escada de carpinteiro, de madeira mesmo, e a escorou na caixa d´água. Com as mãos, fez um gesto pra que mamãe subisse os degraus (e mamãe o obedeceu, com certa dificuldade, carregadíssima na cerveja também). Daí fez outro sinal pra que ela descesse a escada. E quando mamãe pousou no chão, um papai com olhos marejados disse-lhe algo ao pé do ouvido e ficaram ali, os dois, dançando como se estivessem naquela casa da Mariz e Barros.”
Meu pai, cavalo de um bugre brasileiro, anteviu – dizem – meu nascimento.
Meu pai, homem de poucas palavras, sempre demonstrou seus sentimentos através de suas ações – quase sempre em silêncio. E eu custei muito a ler seus silêncios.
Meu pai, no dia 30 de agosto de 2008, um sábado, saiu pra beber cerveja comigo de manhã, na rua do Matoso, mais precisamente no Matosinho, um pé-sujo da área (foto abaixo).
Poucos dias depois dessa cerveja que bebemos praticamente em silêncio – faço a confissão tardia – Fernando Szegeri recebeu a foto que ilustra este texto e me disse, por e-mail:
“Por alguma razão estranha que me escapa, choro há 15 minutos vendo as fotos da vossa barba grisalha…”
Pouco depois, emendou noutro e-mail:
“Lembra aquela imensa mensagem imensa que te mandei uns tempos atrás (quase dois anos), dizendo que eu sentia que minha juventude terminara?
Os teus olhos, mano querido, o teu semblante, dizem hoje exatamente o mesmo de ti.”
Pois eu, na véspera dos 70 anos de meu pai, sinto-me jovem, ao menos mais jovem do que naquela manhã de 2008.
Eu, na véspera dos 70 anos de meu pai, por conta das linhas do novelo da vida que vivo há quase 45 anos, sinto-me como irmão de meu pai. Por conta, penso eu, do fato de eu estar, cada vez mais, entorpecido por silêncios. Por conta das mesmas dores, dos mesmos medos, por conta dos mesmos fantasmas que, nessas datas, se aproximam de nós (sou um fóbico quando se aproxima meu aniversário). Papai faz 70 anos. Em abril, faço 45. São números redondos. Vinte e cinco anos nos separam. Ontem mesmo eu estava em seu colo num dos bancos de madeira da Praça Afonso Pena, calças curtas, camisa listrada, a caminho do Salão América pra cortar cabelo pela primeira vez com o Raul, em março de 1970. Hoje cedo, antes de vir pro trabalho, fui ao Salão América fazer a barba com o Raul e vi, no caminho, meu pai e eu sentados no mesmo banco verde da fotografia que minha memória guardará para sempre. Amanhã, quando estivermos juntos, meus avós estarão conosco. Meus avós estão nos olhos de meu pai, cada vez mais presentes nos olhos de meu pai, os olhos de meu pai emoldurados pelos mesmos óculos que vestiam os olhos de meu avô, os olhos de meu pai com a mesma tristeza permanente dos olhos de minha avó, o sorriso do meu pai com a mesma espalhafatosa alegria que havia nos olhos azuis e nos cabelos brancos esvoaçantes de meu avô.
Não sei o que vou dizer pro meu pai amanhã, diante dele.
Mas a vontade que tenho é de fazê-lo saber o tanto de gratidão que tenho e que nutro por ele e por cada um desses dias que separam meu nascimento de seus 70 anos. E o tanto de fascínio que me causam os anos anteriores, de 1944 a 1969, sobre os quais pouco ou nada sei… prova definitiva de que é incomensurável o espaço que ele ocupa em mim. E o quanto eu desejo – quanto! – que ainda haja muitos anos pela frente para que estejamos sempre por perto… eu, ele, a Morena, mamãe, meus irmãos. Para brindarmos muitas vezes, sempre juntos. Como fizemos naquela manhã de agosto de 2008.
Saravá, meu velho!
Até.
Fui às lágrimas… Parabéns, Edu, sensacional reconhecimento. E parabéns, é claro, à seu pai. Li o texto duas vezes e a segunda, ouvindo Resposta ao Tempo. Foi forte. Parabéns de novo!
Comovida querido, muito comovida. Conheço bem esse lugar, do ponto de vista da coruja mãe e do ponto de vista da corujinha filha, que um dia fui. Vida longa pro nosso Isaac, pra você e para toda essa deliciosa família que aprendi a amar.
Beijo carinhoso,
Verinha
Grande abraço no Isaac!
Se vc faz 45 em abril e em março de 1970 já estava indo ao barbeiro para cortar cabelo, isso quer dizer que vc nasceu cabeludo.
Emocionante! Belíssima declaração de amor, admiração e respeito. Parabéns, camarada, parabéns, mestre Isaac.
Lindo! Parabéns ao Sr. Isaac e, claro, a você. É sempre um descanso ler suas postagens. Grande abraço!
Muito bacana essa verdadeira amizade entre pais e filhos! Parabéns a ambos.
Edu,
Primeira vez que me comunico. Esta história sobre seu pai trouxe-me recordações. Boas recordações. Sou de 1951 e morei até 1962 na Rua Afonso Pena, 91, de frente para a Praça. Ali, a minha infância foi maravilhosa!
Ainda havia as brincadeiras de pique-bandeira e carniça. O Jogo de bola na Praça não faltava, numa parte gramada. Muita bola. E o guarda corria atrás da gente para impedir, mas não conseguia.
Frequentei, também, o Salão América.
Tudo era muito bom!
Envio meus cumprimentos pelos ótimos textos e deixo meu abraço ao seu pai.
Felicidades para todos,
Alfredo Domingos.
Alfredo, transmiti só hoje (me perdoe o atraso…) seu abraço a meu velho pai. Pois saiba você que a praça Afonso Pena continua do mesmo jeito e o Salão America, onde cortei meu cabelo pela primeira vez em 1970, com 11 meses de idade, também. Um forte abraço e obrigado!