(texto de 04 de janeiro de 2011, é publicado apenas hoje em respeito à memória de José Roberto)
Quem me lê sabe: todos os dias, indo e vindo do trabalho, passo no bar do Marreco pra me inteirar das novidades. Buteco é um microcosmo fabuloso do mundo, hospital de almas na definição extremada de um fraterno amigo, ágora do povo mais simples, arena das tragédias humanas, confessionário pagão dos mais abjetos pecadores, onde o salaminho é a hóstia sagrada, o limão é a água-benta e a cerveja, ao lado da cachaça, cumpre o papel do vinho consagrado. É onde se reúne a multidão de fiéis, de andrajos, de solitários e de criminosos, de perversos, de santos encarnados, de gente comum – e é em busca disso tudo que subo, todos os dias, o degrau único que separa o território sagrado da calçada da Haddock Lobo.
Pois ontem, por volta das sete da noite, ancorei naquele balcão que tatuou em meu braço uma marca que não sai. E havia, ali, um único assunto boiando sobre as cabeças da assistência: o suicídio do Zé Roberto.
O Zé Roberto tinha entre 40 e 42 anos, era o que apostava o povo ali reunido. Bebia todos os dias, era um tremendo boa-praça e casado com a Maria Rita, com quem dividia um conjugado na rua Caruso, na mesmíssima esquina. Foi justo a Maria Rita que, por volta das cinco horas, no final daquela tarde, descera aos atropelos as escadas do pequeno prédio sem elevador. Avançara sobre o balcão, porto-seguro do morto de segunda a segunda, e brandia uns papéis nas mãos trêmulas, gritando palavras desconexas e não se dirigindo a ninguém especificamente:
– Quem é Leonor?! Quem é Leonor?! – gritava enquanto babava uma baba elástica e bovina, rodrigueana por óbvio, diante do olhar atônito da multidão.
Foi o Marreco – que saiu depressa de dentro do balcão – que conseguiu domar a viúva em desespero. Deu-lhe – o Jorge me contou em detalhes – um tapa no rosto e disse:
– Que Leonor, dona Maria Rita? O que aconteceu?
Sentou-se a viúva numa das banquetas de madeira – e ela estava com coriza por conta do choro convulsivo. Um qualquer ofereceu-lhe um guardanapo para assoar o nariz e ela, rispidamente, recusou, secando a coriza com a manga do casaquinho bege que vestia. Olhou em volta – tinha os olhos inchados – e não viu uma única mulher. Voltou a repetir, dessa vez mais baixo:
– Quem é Leonor?! Quem?
Seu Brasil, síndico informal da área, não perdeu a chance da piada, que soou mal:
– … e o beijo de uma mulata, chamada Leonor ou Dagmar! – cantando o samba de Bosco e Blanc.
Maria Rita foi seca:
– O Zé Roberto se matou.
Houve um burburinho impressionante, um alarido (apud Nelson Rodrigues, sempre!) de copos sobre o balcão de vidro, um temporal de “ohs” e “ahs”, e aquela chuva previsível de “como?” e “por que?”.
Ofereceram conhaque à recentíssima viúva e ela bebeu num só gole. Um ainda tentou ser mais gentil e perguntou se ela queria água com açúcar. Foi ríspida de novo:
– Mais conhaque.
E deu início ao relato:
– Cheguei do trabalho e encontrei o Zé Roberto vestido com a camisa do Corinthians deitado no chão da sala, em torno de uma poça de sangue…
– Do Corinthians?! – seu Brasil de novo, fazendo a justificável intervenção, afinal Zé Roberto era Flamengo doente.
– Do Corinthians… – os olhos pareciam vazados como os de um cego de nascença.
Prosseguiu:
– Papai era policial, eu fiquei com a arma que pertencia a ele… Nunca quis me desfazer, sabe? – fungou.
– Foi tiro? – disse o Jorge.
– No coração.
– Era mesmo um getulista! – ergueu um brinde, o seu Brasil.
A assistência passou um pito coletivo no velho. E ela continuou, sem largar o calhamaço de papel e chorando baixinho:
– Zé Roberto era brizolista, seu Brasil… Mas, enfim… Nunca brigamos… Nunca… – e caiu num choro de ópera.
Novamente dezenas de garçons espontâneos ofereceram conhaque, limão da casa, lencinho, e ela foi retomando a calma:
– Não havia razão pra ele fazer o que fez… – tornou a chorar aos soluços.
Fez-se respeitoso silêncio e ela continuou:
– Não me deu um sinal! Saiu pra trabalhar hoje, perguntei se ele queria que eu fizesse lasanha pro jantar… ele adora… adorava… – chorou mais forte de novo.
Olhava pros papéis, agora:
– Olhei nos bolsos da bermuda, olhei no bolso da camisa que ele usou pra ir trabalhar hoje, que estava sobre o sofá, nos documentos do táxi… Nada. Mas achei isso na gaveta do quarto de empregada onde ele guarda… guardava os badulaques dele…
Poucos conseguiram disfarçar o ímpeto de arrancar a carta das mãos de Maria Rita. Ela chamara a polícia antes de descer e a polícia havia acabado de chegar. Chamou o Jorge num canto e disse, baixinho:
– Jorge, tu era o melhor amigo do Zé. Quem é Leonor?
Zé a puxou pra fora do bar. Atravessou a rua e debaixo da marquise da farmácia, disse:
– Maria Rita, juro – fez o sinal com os dedos – que eu não sei quem é. O Zé andou falando de uns tempos pra cá de uma tal de Leonor, mesmo, mas dizia que não a conhecia pessoalmente, que a viu, um único dia, uma única vez, passando aqui na Haddock Lobo, vestida com a camisa do Corinthians… Não tenho como te ajudar… Por que?
– Como não conhecia? Como sabia o nome da mulher, sujeito?
– Estou te contando o que eu sei. Juro! – e repetiu o gesto plástico da jura.
Maria Rita – que além de tudo era cunhada do Jorge, casado com sua irmã mais velha – estendeu a carta:
– Achei essa carta, Jorginho… Nesse envelope, sem endereço… É pra tal da Leonor… Datada de dezembro, de dois meses atrás… Nem sobrenome tem… Não sei se quero mostrar isso pra polícia… Ficar com fama de… Não quero, Jorginho… Promete que dá cabo nisso?
Jorge, circunspecto e em tom de promessa solene:
– Prometo! – tomou a carta das mãos de Maria Rita.
Jorge deu, de certa forma, cabo da carta. Não mostrou pra ninguém no bar, inventou um troço qualquer pra assistência que acompanhava a pequena palestra sob a marquise da farmácia. Em bar é assim: a tragédia dura o tempo exato da presença dos envolvidos. Duas horas depois a polícia já tinha ido embora, o rabecão já transportara o defunto pro IML e só se falava em futebol quando eu cheguei.
Jorge me chamou num canto, contou-me o ocorrido à tarde e por fim me entregou a carta. E disse:
– Meu professor, você que é o contador das nossas histórias, vai gostar disso aqui. Depois você me conta tudo, viu?
Há coisas que não têm, mesmo, explicação. Não sei quem é a Leonor, só conhecia o Zé Roberto dos papos à toa no balcão do Marreco, e o Jorge – um sessentão que vai muito com a minha cara – teve uma grande idéia me entregando essa declaração de amor ligeiramente tosca, eis que sem endereço certo, muito bem escrita (eu tinha ligeiro preconceito com o Zé, a quem julgava um homem sem qualquer cultura) e bonita de doer. Vai que a tal da Leonor lê isso aqui?
“Leonor, Leonor, Leonor: escrevo três vezes teu nome em sinal do meu amor. Sou casado há quase quinze anos, Leonor (vou repetir demais seu nome, Leonor, é só o que tenho feito desde o dia em que eu a vi), e eu a vi há coisa de umas semanas no Rio-Brasília, o botequim do Jorge na Almirante Gavião, numa mesa grande com o que me pareceram ser seus pais, seu filho (e você é tão nova, Leonor!), seu irmão e alguns amigos, um deles conhecido meu do bar do Marreco, que fica perto da Almirante Gavião. Nunca perguntei sobre você, Leonor, acho que ele não vai muito comigo, nosso santo não cruza. Eu vou dar cabo da minha vida, Leonor, porque desde que eu a vi eu sofro, sabe, Leonor? Sofro porque eu sou taxista embora seja formado em Direito, sem nunca ter exercido a profissão por falta de determinação. Meu pai era taxista e a autonomia do carro foi tudo o que ele me deixou. Sendo taxista, e morando aqui no Rio, casado e sem filhos, bem mais velho que você, nunca vou conseguir casar-me contigo, Leonor, que é o que eu verdadeiramente queria. Você deve estar se perguntando o porquê disso, né, Leonor? Por que é que um sujeito que só a viu uma única vez na vida (e minha vida é sofrida, Leonor) tem essa determinação. Não saberia te dizer, viu, Leonor? Mas eu vou tentar. Minha mulher é dona de casa, Leonor, e não tivemos filhos. Minha mulher não me ama, eu acho, e eu acho a minha vida um tormento: é do táxi pro bar, do bar pra casa, de casa pro táxi e assim eu vou fingindo que vivo. Eu vi tanta luz nos teus olhos, Leonor, eu vi tanta vida no teu sorriso, eu vi tanta vida no sorriso de quem te cercava, Leonor, e eu não sou um sujeito capaz de me enganar, viu?, que eu vivi minhas melhores horas dos últimos anos naquele sábado em que te vi. Fiz uma coisa feia, sabe? Sentei-me na mesa mais próxima, fiquei bebendo e prestando atenção na conversa. Descobri que você mora em São Paulo, que tem um irmão, que seu filho não tem muita paciência pra ficar em bar, e descobri que você é Corinthians. Eu adoro futebol, Leonor, meu pai era Fluminense e ele me levou novinho pra ver aquele jogo da invasão corinthiana no Maracanã, em 74, eu era um menino ainda. Eu sou Flamengo mas desde aquele dia em que te vi eu decidi que vou morrer vestido de Corinthians, sabe? Eu sou devoto de São Jorge, e eu acho mesmo que o Corinthians é uma religião. Eu comprei a camisa do Corinthians e levei pra benzer na igreja de Quintino, Leonor, e pedi a São Jorge que me guardasse com ele quando eu morresse, sabe? Eu acredito que é errado a gente se matar, sabe, Leonor?, mas eu pedi a ele que me guardasse mesmo assim, e ele gosta demais de mim. São Jorge é guerreiro, é padroeiro do Corinthians e eu ouvi um dia, não lembro onde foi, que tem um lugar no céu só pra corinthiano, acho que foi numa resenha da Tupi, a rádio que eu ouço o dia inteiro no táxi. Fiz um pedido meio absurdo, Leonor, mas também é absurdo amor à primeira vista, não é o que dizem? Pedi a São Jorge que me guardasse com ele, só pra você me conhecer, daqui a muitos anos, muitos anos, Leonor, quando você estiver bem velhinha e morrer de morte natural, que eu não acho que ninguém deva se matar, acho muito feio alguém se matar, você não faria isso e eu não desejo que você morra de doença nenhuma, quero que você morra de velhice mesmo que é pra embelezar o mundo ainda por muito tempo. Quem tem a luz que você tem nos olhos nem pensa nisso, né? Daí eu acredito que eu encontre você no tal parque São Jorge que dizem haver no céu. Eu vou morrer vestido de Corinthians pra que me seja permitido estar ali, entre vocês, eu sei que vocês são uma nação, Leonor. Não quero que você se sinta minimamente culpada, Leonor, até porque essa carta nunca vai chegar às suas mãos. Mas quero que São Jorge me veja escrevendo, que minha mulher a encontre pra entender um pouco do meu gesto insano movido por amor e que meus amigos de bar me perdoem por estar vestindo a camisa do Corinthians, coisa que eles vão tomar como heresia. Heresia, Leonor, foi eu ter nascido tão depois de você e tão longe. Todo meu amor, José Roberto.”
Até.