Arquivo do mês: setembro 2011

SUICÍDIO NO BAR DO MARRECO

(texto de 04 de janeiro de 2011, é publicado apenas hoje em respeito à memória de José Roberto)

Quem me lê sabe: todos os dias, indo e vindo do trabalho, passo no bar do Marreco pra me inteirar das novidades. Buteco é um microcosmo fabuloso do mundo, hospital de almas na definição extremada de um fraterno amigo, ágora do povo mais simples, arena das tragédias humanas, confessionário pagão dos mais abjetos pecadores, onde o salaminho é a hóstia sagrada, o limão é a água-benta e a cerveja, ao lado da cachaça, cumpre o papel do vinho consagrado. É onde se reúne a multidão de fiéis, de andrajos, de solitários e de criminosos, de perversos, de santos encarnados, de gente comum – e é em busca disso tudo que subo, todos os dias, o degrau único que separa o território sagrado da calçada da Haddock Lobo.

Pois ontem, por volta das sete da noite, ancorei naquele balcão que tatuou em meu braço uma marca que não sai. E havia, ali, um único assunto boiando sobre as cabeças da assistência: o suicídio do Zé Roberto.

O Zé Roberto tinha entre 40 e 42 anos, era o que apostava o povo ali reunido. Bebia todos os dias, era um tremendo boa-praça e casado com a Maria Rita, com quem dividia um conjugado na rua Caruso, na mesmíssima esquina. Foi justo a Maria Rita que, por volta das cinco horas, no final daquela tarde, descera aos atropelos as escadas do pequeno prédio sem elevador. Avançara sobre o balcão, porto-seguro do morto de segunda a segunda, e brandia uns papéis nas mãos trêmulas, gritando palavras desconexas e não se dirigindo a ninguém especificamente:

– Quem é Leonor?! Quem é Leonor?! – gritava enquanto babava uma baba elástica e bovina, rodrigueana por óbvio, diante do olhar atônito da multidão.

Foi o Marreco – que saiu depressa de dentro do balcão – que conseguiu domar a viúva em desespero. Deu-lhe – o Jorge me contou em detalhes – um tapa no rosto e disse:

– Que Leonor, dona Maria Rita? O que aconteceu?

Sentou-se a viúva numa das banquetas de madeira – e ela estava com coriza por conta do choro convulsivo. Um qualquer ofereceu-lhe um guardanapo para assoar o nariz e ela, rispidamente, recusou, secando a coriza com a manga do casaquinho bege que vestia. Olhou em volta – tinha os olhos inchados – e não viu uma única mulher. Voltou a repetir, dessa vez mais baixo:

– Quem é Leonor?! Quem?

Seu Brasil, síndico informal da área, não perdeu a chance da piada, que soou mal:

– … e o beijo de uma mulata, chamada Leonor ou Dagmar! – cantando o samba de Bosco e Blanc.

Maria Rita foi seca:

– O Zé Roberto se matou.

Houve um burburinho impressionante, um alarido (apud Nelson Rodrigues, sempre!) de copos sobre o balcão de vidro, um temporal de “ohs” e “ahs”, e aquela chuva previsível de “como?” e “por que?”.

Ofereceram conhaque à recentíssima viúva e ela bebeu num só gole. Um ainda tentou ser mais gentil e perguntou se ela queria água com açúcar. Foi ríspida de novo:

– Mais conhaque.

E deu início ao relato:

– Cheguei do trabalho e encontrei o Zé Roberto vestido com a camisa do Corinthians deitado no chão da sala, em torno de uma poça de sangue…

– Do Corinthians?! – seu Brasil de novo, fazendo a justificável intervenção, afinal Zé Roberto era Flamengo doente.

– Do Corinthians… – os olhos pareciam vazados como os de um cego de nascença.

Prosseguiu:

– Papai era policial, eu fiquei com a arma que pertencia a ele… Nunca quis me desfazer, sabe? – fungou.

– Foi tiro? – disse o Jorge.

– No coração.

– Era mesmo um getulista! – ergueu um brinde, o seu Brasil.

A assistência passou um pito coletivo no velho. E ela continuou, sem largar o calhamaço de papel e chorando baixinho:

– Zé Roberto era brizolista, seu Brasil… Mas, enfim… Nunca brigamos… Nunca… – e caiu num choro de ópera.

Novamente dezenas de garçons espontâneos ofereceram conhaque, limão da casa, lencinho, e ela foi retomando a calma:

– Não havia razão pra ele fazer o que fez… – tornou a chorar aos soluços.

Fez-se respeitoso silêncio e ela continuou:

– Não me deu um sinal! Saiu pra trabalhar hoje, perguntei se ele queria que eu fizesse lasanha pro jantar… ele adora… adorava… – chorou mais forte de novo.

Olhava pros papéis, agora:

– Olhei nos bolsos da bermuda, olhei no bolso da camisa que ele usou pra ir trabalhar hoje, que estava sobre o sofá, nos documentos do táxi… Nada. Mas achei isso na gaveta do quarto de empregada onde ele guarda… guardava os badulaques dele…

Poucos conseguiram disfarçar o ímpeto de arrancar a carta das mãos de Maria Rita. Ela chamara a polícia antes de descer e a polícia havia acabado de chegar. Chamou o Jorge num canto e disse, baixinho:

– Jorge, tu era o melhor amigo do Zé. Quem é Leonor?

Zé a puxou pra fora do bar. Atravessou a rua e debaixo da marquise da farmácia, disse:

– Maria Rita, juro – fez o sinal com os dedos – que eu não sei quem é. O Zé andou falando de uns tempos pra cá de uma tal de Leonor, mesmo, mas dizia que não a conhecia pessoalmente, que a viu, um único dia, uma única vez, passando aqui na Haddock Lobo, vestida com a camisa do Corinthians… Não tenho como te ajudar… Por que?

– Como não conhecia? Como sabia o nome da mulher, sujeito?

– Estou te contando o que eu sei. Juro! – e repetiu o gesto plástico da jura.

Maria Rita – que além de tudo era cunhada do Jorge, casado com sua irmã mais velha – estendeu a carta:

– Achei essa carta, Jorginho… Nesse envelope, sem endereço… É pra tal da Leonor… Datada de dezembro, de dois meses atrás… Nem sobrenome tem… Não sei se quero mostrar isso pra polícia… Ficar com fama de… Não quero, Jorginho… Promete que dá cabo nisso?

Jorge, circunspecto e em tom de promessa solene:

– Prometo! – tomou a carta das mãos de Maria Rita.

Jorge deu, de certa forma, cabo da carta. Não mostrou pra ninguém no bar, inventou um troço qualquer pra assistência que acompanhava a pequena palestra sob a marquise da farmácia. Em bar é assim: a tragédia dura o tempo exato da presença dos envolvidos. Duas horas depois a polícia já tinha ido embora, o rabecão já transportara o defunto pro IML e só se falava em futebol quando eu cheguei.

Jorge me chamou num canto, contou-me o ocorrido à tarde e por fim me entregou a carta. E disse:

– Meu professor, você que é o contador das nossas histórias, vai gostar disso aqui. Depois você me conta tudo, viu?

Há coisas que não têm, mesmo, explicação. Não sei quem é a Leonor, só conhecia o Zé Roberto dos papos à toa no balcão do Marreco, e o Jorge – um sessentão que vai muito com a minha cara – teve uma grande idéia me entregando essa declaração de amor ligeiramente tosca, eis que sem endereço certo, muito bem escrita (eu tinha ligeiro preconceito com o Zé, a quem julgava um homem sem qualquer cultura) e bonita de doer. Vai que a tal da Leonor lê isso aqui?

“Leonor, Leonor, Leonor: escrevo três vezes teu nome em sinal do meu amor. Sou casado há quase quinze anos, Leonor (vou repetir demais seu nome, Leonor, é só o que tenho feito desde o dia em que eu a vi), e eu a vi há coisa de umas semanas no Rio-Brasília, o botequim do Jorge na Almirante Gavião, numa mesa grande com o que me pareceram ser seus pais, seu filho (e você é tão nova, Leonor!), seu irmão e alguns amigos, um deles conhecido meu do bar do Marreco, que fica perto da Almirante Gavião. Nunca perguntei sobre você, Leonor, acho que ele não vai muito comigo, nosso santo não cruza. Eu vou dar cabo da minha vida, Leonor, porque desde que eu a vi eu sofro, sabe, Leonor? Sofro porque eu sou taxista embora seja formado em Direito, sem nunca ter exercido a profissão por falta de determinação. Meu pai era taxista e a autonomia do carro foi tudo o que ele me deixou. Sendo taxista, e morando aqui no Rio, casado e sem filhos, bem mais velho que você, nunca vou conseguir casar-me contigo, Leonor, que é o que eu verdadeiramente queria. Você deve estar se perguntando o porquê disso, né, Leonor? Por que é que um sujeito que só a viu uma única vez na vida (e minha vida é sofrida, Leonor) tem essa determinação. Não saberia te dizer, viu, Leonor? Mas eu vou tentar. Minha mulher é dona de casa, Leonor, e não tivemos filhos. Minha mulher não me ama, eu acho, e eu acho a minha vida um tormento: é do táxi pro bar, do bar pra casa, de casa pro táxi e assim eu vou fingindo que vivo. Eu vi tanta luz nos teus olhos, Leonor, eu vi tanta vida no teu sorriso, eu vi tanta vida no sorriso de quem te cercava, Leonor, e eu não sou um sujeito capaz de me enganar, viu?, que eu vivi minhas melhores horas dos últimos anos naquele sábado em que te vi. Fiz uma coisa feia, sabe? Sentei-me na mesa mais próxima, fiquei bebendo e prestando atenção na conversa. Descobri que você mora em São Paulo, que tem um irmão, que seu filho não tem muita paciência pra ficar em bar, e descobri que você é Corinthians. Eu adoro futebol, Leonor, meu pai era Fluminense e ele me levou novinho pra ver aquele jogo da invasão corinthiana no Maracanã, em 74, eu era um menino ainda. Eu sou Flamengo mas desde aquele dia em que te vi eu decidi que vou morrer vestido de Corinthians, sabe? Eu sou devoto de São Jorge, e eu acho mesmo que o Corinthians é uma religião. Eu comprei a camisa do Corinthians e levei pra benzer na igreja de Quintino, Leonor, e pedi a São Jorge que me guardasse com ele quando eu morresse, sabe? Eu acredito que é errado a gente se matar, sabe, Leonor?, mas eu pedi a ele que me guardasse mesmo assim, e ele gosta demais de mim. São Jorge é guerreiro, é padroeiro do Corinthians e eu ouvi um dia, não lembro onde foi, que tem um lugar no céu só pra corinthiano, acho que foi numa resenha da Tupi, a rádio que eu ouço o dia inteiro no táxi. Fiz um pedido meio absurdo, Leonor, mas também é absurdo amor à primeira vista, não é o que dizem? Pedi a São Jorge que me guardasse com ele, só pra você me conhecer, daqui a muitos anos, muitos anos, Leonor, quando você estiver bem velhinha e morrer de morte natural, que eu não acho que ninguém deva se matar, acho muito feio alguém se matar, você não faria isso e eu não desejo que você morra de doença nenhuma, quero que você morra de velhice mesmo que é pra embelezar o mundo ainda por muito tempo. Quem tem a luz que você tem nos olhos nem pensa nisso, né? Daí eu acredito que eu encontre você no tal parque São Jorge que dizem haver no céu. Eu vou morrer vestido de Corinthians pra que me seja permitido estar ali, entre vocês, eu sei que vocês são uma nação, Leonor. Não quero que você se sinta minimamente culpada, Leonor, até porque essa carta nunca vai chegar às suas mãos. Mas quero que São Jorge me veja escrevendo, que minha mulher a encontre pra entender um pouco do meu gesto insano movido por amor e que meus amigos de bar me perdoem por estar vestindo a camisa do Corinthians, coisa que eles vão tomar como heresia. Heresia, Leonor, foi eu ter nascido tão depois de você e tão longe. Todo meu amor, José Roberto.”

Até.

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GARRAFAS AO MAR

Quando as palavras me faltam, são poucos os que falam por mim. Um deles é Vinícius de Moraes, eis que sou viniciano até a alma: “Amigos meus, está chegando a hora / Em que a tristeza aproveita pra entrar / E todos nós vamos ter que ir embora / Pra vida lá fora continuar / Tem sempre aquele / Que toma mais uma no bar / Tem sempre um outro / Que vai direitinho pro lar / Mas tem também / Uma sala que está vazia / Sem luz, sem amor, sombria / Prontinha pro show voltar / E em novo dia / A gente ver novamente / A sala se encher de gente / Pra gente comemorar”. Eis que venho, então, ao balcão virtual que mantenho aqui, para lhes dizer que é chegada a hora. Há, confesso, certa incoerência no gesto de vir lhes dizer isso, no gesto programado de vir lhes dizer isso – confissão feita durante alta madrugada e programada para ser publicada às seis da manhã de um sábado. Mas eu acredito, e isso talvez seja uma tolice sem tamanho, que devo uma satisfação a tanta gente que vem, todos os dias, ler as besteiras (quase sempre são besteiras…) que escrevo. É chegada a hora, meus poucos mas fiéis leitores. A partir de segunda-feira, dia mundial de fazer promessas e de dar por iniciado todo e qualquer processo de transformação, seja lá do quê for, dia 19 de setembro, e até segunda ordem, mantenho-me afastado daqui. É bem verdade que no dia 27 de setembro, uma terça-feira, dia de saudar Dois-Dois, os erês, Cosme, Damião e Doum, vou aos festejos – que eu não sou besta de deixar passar em branco o 27 de setembro. Mantenho-me afastado daqui e de todas as redes virtuais das quais faço parte e nas quais, faço outra confissão, enredei-me mais do que quis. Mantenho-me afastado daqui e, por ser chegada a hora, afastado, de certa forma, do mundo real no qual, faço outra confissão, me expus mais do que pude suportar.

Por isso, as garrafas ao mar e meu apelo: eu preciso renascer das cinzas, como a azul-e-branco de Vila Isabel. Eu preciso estar longe dos bares, não estar em todos os lugares onde sempre estive, por vezes fazendo o papel do multifacetado, quase com o dom da ubiqüidade. Preciso, por um tempo, não ser mais o anfitrião permanentemente disponível. Preciso não mais ter os braços abertos, vou precisar deles em torno de mim. Preciso de uma rotina franciscana, preciso ser como o funcionário público mais autômato, preciso de silêncios ensurdecedores a fim de que eu me ouça e reconquiste a palavra que sempre me escapou, fácil, da cerca dos dentes – e ela um dia foi minha escrava, hoje é minha senhora e sofro como o mais fustigado dos escravos. Bem sei, também, o quanto atraí milhares de olhos ávidos por minhas tragédias e minhas dores. Se não me faltaram os que me foram indispensáveis e capazes de me aplacar o sofrimento, sobraram, de outro lado, os invejosos, os sórdidos, os soturnos, os infelizes. Pois as trarei – as tragédias e as dores, que hão de cessar – comigo, junto de mim, sem mais protagonizar o tolo exercício de dividi-las. Preciso largar o cigarro (e sou capaz de ouvir daqui as gargalhadas da incredulidade coletiva), preciso não beber, preciso perder peso, preciso fazer baixar a interminável pilha dos livros a ler, escrever mais, cozinhar mais, preciso ir ao cinema, ir à praia, ir à montanha, ir pro mato, viver cada dia como se fosse uma Quarta-Feira de Cinzas – quando estamos sempre no limite do esgotamento após a imolação contínua do Carnaval.

É como estou, enfim:  no limite do esgotamento. E eis que recebi o chamado do invisível e vou atendê-lo. Aos que de fato se preocupam com este que lhes escreve, não se preocupem – de fato. Notem que as palavras de Vinícius, das quais me vali para abrir a confissão de hoje, anunciam a chegada da tristeza e nossa fuga, a minha, por óbvio, pra vida lá fora continuar. Não há tristeza – creiam nisso. Há, e é por isso que me é impossível não atender, dessa vez, o gravíssimo chamado que recebi, um profundo esgotamento, uma intensa fadiga, uma necessidade inadiável de renascer.

Até.

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HOJE É DIA DE RAILÍDIA

Quem me lê sabe o quanto sou grato às mulheres que me entregaram, de certa forma, suas melhores porções, minhas comadres. Pois hoje é dia de Railídia Carvalho, uma de minhas comadres, mãe da Iara, minha pequena sereia de olhos cor de jaboticaba. Hoje é dia da Rai, como é carinhosamente chamada por quem a conhece, e não há quem conheça a Railídia e que por ela não se apaixone. Hoje é dia da Rai e é, portanto, dia de eu erguer o copo cheio de espessa espuma, depois de oferecer o primeiro gole a Elegbara, em homenagem a ela.

Paraense, a Rai é a Amazônia em forma de mulher. É detentora dos segredos das matas e dos rios, dona da beleza, da brutalidade, da intensidade e da opulência do encontro das águas do Amazonas com o Atlântico. É filha de Oya, e como filha de Oya, a Rai venta – no mais literal sentido da palavra. Quem já viu a Rai cantar, como tantas vezes vi, sabe do que estou falando. A Rai é o Brasil cantando, é canto, é batuque, é reza, a Rai é capoeira, faz ventar e levantar poeira, é da umbanda, é do candomblé, a Rai é macumbeira. A Rai é bruxa, a Rai é feiticeira.

E é pra ela, e por ela, que hoje eu canto. Atravesso, hoje, os mais de 400 quilômetros que nos separam – eu no Rio, ela em São Paulo – para brindar com ela, para beber com ela, para cantar com ela, para chorar diante dela, eu – um inconrrigível… – que sempre me comovo diante de tanta boniteza.

Saravá, Railídia! Muito axé, minha comadre. E que a saúde, o amor e a fartura não lhe faltem nunca.

Até.

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EMBALA EU

Nunca tive medo do invisível. Deve ser porque eu fui anunciado por um caboclo da mata, Tupinambá, que no dia 26 de abril de 69 apareceu ao lado da cama de meus pais e disse a papai, que acordou:

– Curumim chega amanhã.

Já lhes contei a história. Mamãe, quando soube da tal aparição – troço inédito até aquele momento – disse a ele:

– Fui ao médico no começo da semana! É pra maio, é pra maio!

Papai, que trabalhava como plantonista da Refinaria Duque de Caxias, ainda teimou de não ir trabalhar. Foi convencido a ir. Ao chegar lá, encontrou o chefe, esbaforido, logo na entrada:

– Volta, meu filho! Estourou a bolsa da sua mulher!

Passei a infância dizendo a meus pais que eu brincava com pequenos índios no meu quarto. Eles, já escolados, não me desdiziam. Não me lembro disso, por óbvio, eu era um meninote, mas deve ser por isso que não tenho medo do invisível.

Deve ser também porque, em passado não tão remoto, encontrei-me com um determinado médico, já falecido (chamem vocês do que quiserem, espírito, fantasma…), fazendo de cavalo um amigo vivo, é evidente, que me pediu um favor: ele queria que eu localizasse seu trabalho final do curso de Medicina, no final do século XIX, na Biblioteca Nacional, na Cinelândia. Queria que eu desse seu nome completo às pesquisadoras, a época da conclusão do curso, fizesse uma pesquisa, encomendasse a microfilmagem do trabalho e remetesse o material para um certo museu. Fiz tudo isso. Nada foi encontrado. Voltei ao médico. Expliquei o imbróglio. E ele foi, digamos, mais direto. Pediu-me que anotasse o que ele iria dizer. Tomei nota de diversos indicativos: o tal trabalho estava no porão da Biblioteca Nacional, próximo da pilastra tal, na estante tal, na prateleira tal. Voltei às mocinhas que, foi impossível não perceber, me olharam com ar de piedade e me prometeram tentar localizar o trabalho.

Menos de uma semana depois, recebi um telefonema e fui convocado à Biblioteca. O trabalho havia sido encontrado. Exatamente naquele lugar.

– O senhor se importa de nos dizer como sabia a localização exata deste trabalho? – já microfilmado nas mãos de uma delas.

– Não. Não, se as senhoras não me julgarem louco.

– Como?

– O autor do trabalho me deu essas coordenadas.

Elas me julgaram louco. Mas o quê importa? Deve ser por isso, também, que não tenho medo do invisível.

Tenho medo, entretanto, tenho muito medo – me pergunto quem não tem… – de me machucar. Isso faz de mim, quase sempre, um obediente.

Pois dia desses, diante do invisível de novo, recebi um recado que me foi dado em tom grave: “O que está na sua boca é seu escravo; saiu, é seu senhor.”.

Eu, um obediente – repito – já tratei de rearranjar minhas posturas. Não tenho medo do invisível, é fato concreto. Tenho por ele, sei bem a quem procurar, é um danado de um respeito. E esse respeito, somado ao medo, esse sim, olímpico, de me machucar, me faz ser, hoje, um sujeito disposto a pisar devagar.

“Vira os olhos grandes de cima de mim pras ondas do mar”, é o que tenho pedido quando peço colo, cantando, e peço que me embalem (aqui), todas as manhãs. Peço que me me seja dada a benção, que eu esteja livre dos inimigos, peço proteção, peço que me sejam guiados os passos, quase sempre trôpegos, por onde eu caminhar.

Peço por mim. E por quem eu amo.

Até.

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CENAS TIJUCANAS

O tijucano é, por excelência, um fanático por seu pedaço de terra. Não vou aqui repetir aquele raciocínio modorrento que diz que o tijucano é o único, dentre todos os moradores de todos os bairros do Rio de Janeiro, que se denomina, se apresenta, se exalta, pelo nome do bairro. O que é fato inconteste é que o tijucano até enxerga vida além do túnel, mas uma vida que precisa ser vivida muito rapidamente e mesmo assim dentro de certas inflexíveis regras, e explico. O tijucano quer ir à praia; é evidente que ele precisa atravessar o túnel para sentar-se na areia diante do mar. Mas ele, sobretudo, só vai à praia no local onde há evidente concentração de tijucanos. E anseia, a cada mergulho, pela cervejinha no buteco ao lado de casa, depois da praia. Eu, por exemplo, a vida inteira, fui à praia em apenas dois lugares: quando eu namorava uma moça que morava na Barra, nos idos dos anos 80, ia à praia da Barra diante do “três e cem”, que é como era conhecido aquele trecho da areia em frente ao número 3.100 da avenida Sernambetiba, hoje avenida Lúcio Costa. Eu tomava o 233, ou o 234, na Tijuca, e subia o Alto da Boa Vista para encontrar exilados como eu – tijucanos, quase todos. Eu me sentia, confesso, num leprosário. As pessoas passavam – os novos-ricos da Barra, sobretudo – e nos olhavam com cara de nojo, que a Tijuca e seus moradores sempre sofreram hediondo preconceito por parte dos demais. Depois, quando passei a ir à Ipanema, fincava meus pés diante da barraca do Mineiro, o bom e doce Miguel, onde encontrava vizinhos, moradores do bairro, tijucanos – quase todos.

Tudo isso para lhes dizer que o tijucano é um radical. Essa segregação que sofremos desde o berço faz de nós uma espécie de exército da auto-salvação, como modus operandi necessário à preservação de nossa espécie. Somos radicais, e é sobre um radical – seu Brasil – que quero lhes falar hoje.

O seu Brasil, de quem já lhes falei algumas vezes, mora desde o final da década de 60 num prédio que fica na esquina da Haddock Lobo com a Caruso, que é a rua com a maior concentração por metro quadrado de construções art déco, o que nunca chamou a atenção da preconceituosa imprensa carioca. Em razão da geografia, o seu Brasil freqüenta o bar da esquina – hoje é o bar do Marreco – diariamente. E desde a década de 60. Homem de hábitos simples, grosso como poucos, não foram poucas as vezes que ouvi o seu Brasil esbravejando diante do balcão:

– Freqüento esse bar há mais de 50 anos. Nunca houve um dono tão ruim, tão estúpido, tão burro como esse Marreco! – e gritava isso com o polegar apontado em direção ao pobre-diabo.

O mais hilariante, após a agressão, sempre foi a reação dos demais cabeças-branca:

– O Brasil fala isso há mais de 50 anos, pra todos os donos dessa espelunca!

Vamos ao que quero lhes contar – envolvendo radicalismo.

Dia desses houve rodada do Brasileirão numa quarta-feira à noite. Antes de prosseguir, me permitam a construção do cenário.

O bar do Marreco tem duas televisões. Uma, grande, de 29 polegadas, que fica bem diante do balcão, no alto. Outra, pequena, de 14 polegadas, que fica nos fundos do bar, ao lado da entrada do banheiro. Sempre que há dois jogos envolvendo times cariocas, cada TV passa um jogo diferente. Já houve, ali, assembléias capazes de transformar a tribuna do Senado Federal em brincadeira de criança, sempre para decidir o método a ser empregado em dias de jogo.

– A TV maior passará o jogo do time que contar com o maior número de torcedores presentes no bar, contados 10 minutos antes da partida!

– A TV maior passará o jogo do time que melhor colocado estiver na tabela!

– A TV maior passará o jogo do time que contar com o maior número de torcedores presentes no bar, contados uma hora antes do apito inicial!

E o troço ganhava proporções de reunião do Conselho de Segurança da ONU. Nunca chegou-se à conclusão alguma, é essa a verdade. Mas é verdade, também, que é sempre o jogo do Flamengo que passa na TV maior. Ou porque é sempre a maior torcida presente, ou porque o Marreco é Flamengo, por aí.

Ocorre que, dia desses, lá estava o Brasil, diante do balcão, horas antes do jogo. Estava visivelmente de mau-humor. E deu de fazer a ameaça:

– Hoje vai passar o jogo do Vasco na TV maior e não se fala mais nisso. Eu venho nessa merda há mais de 50 anos, pô! Hoje eu não abro mão disso!

Houve vaia, apupo de auditório, o Marreco riu, o seu Brasil fechou a cara:

– Tô falando sério. Quem paga essa bosta de pacote da NET sou eu. Confessa aí, Marreco, safado! Hoje é o Vasco na TV grande!

O tempo foi passando, o bar foi enchendo, e deu-se o banzé. Minutos antes da partida o Marreco sintonizou a TV grande no jogo do Flamengo e pôs o jogo do Vasco pra passar na pequenina. O seu Brasil recebeu um Exu e saiu rodopiando pelo bar, cuspindo cachaça na direção da assistência. O Jair, rubro-negro, um poltrão olímpico, ainda fez o apelo:

– Marreco, troca aí. Só hoje…

Foi vaiado.

Os jogos rolando e seu Brasil fumando desbragadamente de olhos fechados, as mãos pra trás, dando consulta a quem recorria ao seu Tranca-Rua. Uma enfermeira do Salgado Filho, que sempre bate ponto no Marreco, deu a sentença:

– É seu Tranca-Rua, não tenho dúvida!

Veio o intervalo e seu Brasil, ainda incorporado, postou-se diante do balcão. Chamou o Marreco pra perto e soltou uma pesada baforada na fuça do caboclo. Bateu palma alto, as mãos em concha, aquele som seco pedindo silêncio. E mandou, na lata:

– Meu filho… Meu cavalo, o seu Brasil, nunca mais!, nunca mais!, tá ouvindo?, nunca mais põe os pés nesse terreiro! Nunca mais! – e era um grito de trovão, de dar medo.

Riscou no chão, com os pés no papel de pemba, seu ponto e gritou:

– Tá ouvindo, filho da puta?

O Marreco, branco como eu nunca vira, os olhos saltados pra fora como duas bolas de gude opacas, disse, trêmulo:

– Eu ponho o jogo do Vasco pra passar na maior, moço, no segundo tempo…

– Moço? Moço, não! Moço, não! – e deu de rir feito Exu-Caveira.

Seu Brasil, ainda no papel de cavalo, deu de rir e saiu dançando do bar, tomou a direção de casa e sumiu.

E é o seguinte, meus poucos mas fiéis leitores: isso já tem mais de dois meses. Seu Brasil passa por ali – caminho inevitável – todos os dias. Nem olha pra dentro do bar. Eu mesmo já vi o Marreco fazendo os mais patéticos apelos. Jurou comprar uma LCD gigantesca só pro velho, assinar o pacote da NET em HD, prometeu cerveja de graça durante seis meses, e nada de dobrar o bom Brasil que, é claro, cancelou o pagamento da mensalidade da NET – vivemos da vaquinha que fazemos entre os freqüentadores – e diz, pra quem quiser ouvir:

– Nunca mais ponho os pés naquele terreiro. Nunca mais!

Tijuca, meus caros, em estado bruto!

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DOIS MESES

Hoje, 09 de setembro de 2011, é impossível não lembrar que há dois meses, na noite de 09 de julho, perto da meia-noite, ela desapareceu – e vocês, meus poucos mas fiéis leitores, me perdoem por fazer disso aqui o meu divã íntimo, particular e privado. Cada um tem a própria receita pra combater a desgraça, e eu – já lhes disso isso centenas de vezes! – escrevo, precipuamente, pra mim mesmo. Sento-me, quase que diariamente, diante do monitor, e saio lanhando minha própria carne, fazendo verter meu próprio sangue, exibindo no varal imaginário minha alma. Faz-me um bem danado essa forma, que para muitos soa como excesso de exibição, de expurgar minhas dores, de exorcizar meus fantasmas, de fazer sarar as feridas.

Naquele momento, em que o atordoamento é inevitável, fui tomado pelo torpor do alívio e agi, e nem acho que equivocadamente, de maneira agudamente racional: mudei, por inteiro, a feição do apartamento em que vivemos por quase 12 anos, dei de me desfazer de todo e qualquer objeto que me remetesse, de pronto, à imagem dela, defumei a casa, guardei seus retratos espalhados pela casa, toquei a vida.

E foi voltando de carro de São Paulo, onde estou agora enquanto escrevo, que deu-se o baque em forma de uma placa, e explico: estava eu na altura de Barra Mansa quando avistei uma placa imensa dando conta de que eu estava a 1km da entrada de Volta Redonda, onde ela nasceu e onde foi enterrada. Vá tentar entender os mecanismos que nos comandam… Ao ler aquilo, parei no acostamento, bem perto do posto da Polícia Rodoviária, e caí num choro que fez com que um policial atravessasse a estrada em minha direção. Eu estava bem, disse a ele – preocupado com meu estado. Mas eu não estava.

De lá pra cá, e me parece evidente que isso tudo há de arrefecer com o passar do tempo, convivo com a mais bruta forma de saudade que jamais conheci. E conviver com essa saudade não é triste – é o que me repito quase a cada segundo. Já lhes disse, também, que o mais bonito sorriso do mundo, o mais impactante, é o dela (e uso o verbo no presente porque ele está aí, no imaginário de cada um dos que conviveram com ela, ou simplesmente dos que viram, ao menos uma vez, a Sorriso Maracanã fazendo jus ao apelido que lhe foi dado por meu mano Fernando Szegeri).

É ele, seu sorriso, que me vem à cabeça a cada minuto de saudade. E se as lágrimas me correm quase sempre quando a ela me remeto, por qualquer razão, e tem sido muitas as razões para tanto, há em mim, também, embora sem um milímetro daquele brilho, um sorriso escancarado no rosto e uma sensação, absurdamente confortadora, de que fui um privilegiado por tê-la a meu lado por tanto tempo. E por não ter deixado de dizer isso a ela um único dia.

A ela, Dani, a Sorriso Maracanã, clarão de lua, minha mais bonita saudade, meu beijo mais terno, meu abraço mais carinhoso. Ela que, tenho certeza absoluta, me lê, me vê e me compreende.

Até.

 

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PRA JORGE, EM VOZ ALTA

“Deus me perdoe essa intimidade: Jorge, me guarde no coração que a malvadeza desse mundo é grande em extensão e muita vez tem ar de anjo e garras de dragão…”. Eis-me aqui de novo, Jorge, me valendo da sabedoria de um irmão meu para me dirigir a você, que guarda minha casa. Ogum Onirê!

“O arquétipo de Ogum é o das pessoas violentas, briguentas e impulsivas, incapazes de perdoarem as ofensas de que foram vítimas. Das pessoas que perseguem energicamente seus objetivos e não se desencorajam facilmente. Daquelas que nos momentos difíceis triunfam onde qualquer outro teria abandonado o combate e perdido toda a esperança. Das que possuem humor mutável, passando de furiosos acessos de raiva ao mais tranquilo dos comportamentos. Finalmente, é o arquétipo das pessoas impetuosas e arrogantes, daquelas que se arriscam a melindrar os outros por uma certa falta de discrição quando lhe prestam serviços, mas que, devido à sinceridade e franqueza de suas intenções, tornam-se difíceis de serem odiadas”

Dê-me coragem, Jorge – a mesma coragem que nunca me faltou – e me guarde a fim de que eu triunfe a cada combate, que a vida é feita de permanentes combates e somos obrigados a combater desde os primeiros raios da manhã até o cair silencioso da noite mais profunda. Fica ao meu lado, São Jorge, com suas armas e seu perfil obstinado. Seca cada lágrima que me escorrer dos olhos, com a ponta da tua faca, que seja, a mesma ponta na qual toco minha língua a cada vez que te tomo como testemunha no correr da lida do dia-a-dia. Aprendi, Jorge, com outro filho teu, irmão meu, que foi você aquele que “ensinou aos orixás como moldar na forja os adornos mais bonitos e os utensílios que enfeitam as danças dos deuses entre os homens.”. Tenho precisado cantar, Jorge, mas a voz tem me faltado, a voz tem me falhado no engasgar de cada lágrima, que eu tenho chorado um bocado… “Desprovido de ambições materiais, recusou a coroa e entregou toda a riqueza que acumulara a uma simples vendedora de acaçá que lhe pedira esmola”, é como sempre segui, é como quero seguir, Jorge. “A arte da criação e o exercício da simplicidade generosa”, foi esse mesmo teu filho quem também me disse, “é, para os filhos de Ogum, o descanso na loucura e a única maneira de domar o inimigo que (me) espreita ao final de cada jornada”. Ainda não cansei, Jorge, de me ver refletido nos espelhos d´água e de me reconhecer, ali, como meu próprio algoz. Ou cansei, acho que cansei… Assuma minhas lutas, Jorge. Entrego a ti as minhas armas, e entre apenas nas necessárias batalhas em meu nome, porque é preciso que eu descanse. Guerreei, desde sempre, no lombo do teu cavalo. Ri, como um insano, desviando das balas que vinham na minha direção, confiei sempre, confio ainda, na proteção da tua armadura. Mas é chegada a hora do meu descanso. Minha trajetória de vida me lanhou o corpo de tal forma, Jorge, e olha que eu sempre acreditei que dá-se a cada um o frio conforme o cobertor…, que estou aqui, humílimo, e de público (exibir a carne e a alma em público sempre me foi exercício de fé), a te pedir conforto. Cantei diversas vezes, Jorge, quando a voz ainda não me era tão difícil, pedindo que fossem ouvidas minhas orações, que fossem aliviadas minhas dores e eu nunca deixei de ouvir o socar do pilão que moldava e recriava meu martírio para que me fosse entregue, de volta, e como recompensa, a boniteza que sustenta o homem. Mas estou sem voz. Tenho andado como um tonto pela casa, vivido falando sozinho com a pouca voz que me resta, e nada ouço de volta. Tateio a cama onde onde durmo e tudo o que sinto é a fronha molhada diante da ausência. Eu conto contigo contra os perigos, contra o quebranto de uma paixão. E como eu sempre fui apaixonado, Jorge, como jamais medi as conseqüências das minhas entregas, como sempre recusei os conselhos que me recomendavam cuidado, eis-me aqui a te pedir, diante do inevitável e diante da tua imagem plantada na sala de minha casa: cuida de mim. Não tenho muita esperança, Jorge, de que eu vá agora, a essa altura do campeonato, aprender o que mais de 42 anos não foram capazes de me fazer compreender. Nem enquanto eu fui sendo forjado, aos poucos, por alguns anos, por um sofrimento brutal, por chibatadas impiedosas que se tornaram mais doloridas por conta do sal que escorria de meus olhos, eu aprendi. Porque eu ia aos bares, eu buscava outros ares, eu tentei ser cego e surdo até que me chegou o derradeiro grito que me fez perder o norte – que eu jamais conheci. E não vai ser agora, Jorge, que eu vou deixar de lado a calça curta, a camisa de malha listrada, os chinelos de dedo, não vai ser agora que eu vou assumir os ares que não se moldam a mim. Mas vai ser agora, é preciso que seja agora, a hora do meu descanso. Estás rindo, não é, Jorge? Eu também – opera-se o milagre! Não é a primeira vez – reconheço. E não será a última – sabemos, os dois. Foi, acho que foi, a necessidade da catarse. É que foi difícil, está sendo difícil, seguir a trilha e a picada que me foi indicada e aberta. Dá-me uma carona na garupa do teu cavalo. Vou ser, não tem jeito, até o fim dos meus dias, o menino que acredita que conduz a rédea e que comanda o pelotão enquanto grita com os cabelos e o rosto sendo espancados pelo vento. Serão muitos, sempre, os que sentirão um prazer supremo diante de meus tombos. Serão muitos, também, de outro lado, os que estarão sempre a postos e dispostos para mim. O que eu não quero mais é me enxergar como algoz de mim mesmo no espelho d´água no final da vereda, vendo a imagem refletida pela intensa luz que não há de me faltar, ainda que a mata seja densa e a caminhada seja tensa. Creio, firmemente, que hei de ter, por merecimento, minha devida recompensa.

Até.

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SETEMBRO DE 69, ARREMESSO AO PASSADO

Ontem fui jantar no Alto da Boa Vista, na casa de meus pais, e eis que mamãe, à certa altura, deu início a uma de suas atividades preferidas: sacou alguns álbuns de dentro dos armários e deu de me exibir fotografias antigas, sendo que a graça, ontem, foi ainda maior. As fotos eram, ao menos para mim, inéditas. Daí começou o desfile de nomes, o desfile de mortos e de mortas, o desfile dos egunguns, o desfile da ancestralidade, até que estacamos diante desta foto (abaixo), de setembro de 1969.

Tinha eu, apenas, cinco meses de idade. A janela ao fundo denuncia: estávamos, eu e mamãe – é dela o polegar à direita… – na vila onde moravam meus avós e minha bisavó, na Tijuca, evidentemente. E quando eu me deparo com uma dessas fotos, quem me lê sabe, dá-se a mágica em mim: um abrupto guincho, um súbito tranco e sou arremessado ao passado de forma intensa e febril.

Mas não é exatamente sobre o tal arremesso que quero lhes falar hoje. O assunto é outro, e foi provocado por uma mulher com quem tenho me encontrado domingo após domingo, em busca de aconchego. Explico.

Publiquei a tal foto numa dessas redes sociais. E a Katia, é a ela que me refiro, soltou a frase:

– Você já tinha esse olhar… Choquei.

Pronto. Bastou ler isso e teve início em mim o desenho de uma vertigem: batimentos inconsistentes, suadouro, um ligeiro traço de febre, e uma dúvida que mantém-se enterrada em mim até o momento.

Aos cinco meses de idade eu já tinha o olhar do homem de 42 anos ou aos 42 anos ainda sou o moleque inseguro, no colo da mãe, com olhos de um menino começando a conhecer o mundo?

Faço a blague mas sei a resposta: sou, aos 42 anos de idade, e constatar isso – e vejam que constato isso com incrível freqüência – sempre me comove e me revolta, me aborrece e me apascenta, me emociona e me conforma, me deprime e me encoraja, me faz compreender demais a vida como ela é. Serei sempre o sujeito-menino capaz de oferecer um sanduíche de queijo e presunto à mulher amada como quem oferece a mais valiosa das jóias. Serei sempre o garoto, tímido, tentando balbuciar o inexprimível, serei sempre o covarde-romântico incapaz de falar de mim sem a primeira dose, serei sempre esse alucinado em busca de subverter o tempo e pronto para chocar a assistência – como a Katia – ao constatar que sou assim, moleque aos 42 anos, velho desde que nasci.

Até.

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AS MULHERES SÃO TUDO, EU NÃO SOU NADA

“As mulheres são tudo, eu não sou nada. De madrugada, fico acordado pensando nelas, depois durmo pra sonhar com elas e acordo louco pra revê-las – vivo assim das primeiras andorinhas às últimas estrelas.”

Estes versos são de Aldir Blanc, a quem tantas vezes já me referi, aqui, como meu orixá vivo. Aniversariante de ontem, 02 de setembro, quando completou 65 anos, Aldir é meu amigo – tenho esse privilégio – há mais de 15 anos, quase há 20 anos. É meu amigo, é um tanto meu pai, um tanto meu irmão, é também meu conselheiro (e o fato de ser “meu conselheiro” causa arrepios no meu pai legítimo, o velho Isaac, que tem Aldir na conta dos malucos, a mesma qualificação que recebo de papai, quase sempre). Além disso, Aldir fala por mim – como fala pelo Brasil, ele que tanto entende a alma do brasileiro, do suburbano, do zona-norte. Fala por mim quando diz o que diz nos versos que abrem este texto, fala por mim quando diz “(…) falando de muita mulher, que sem elas a gente não vive (…)”, verso do samba Saindo à francesa, que compôs com Luiz Carlos da Vila e Moacyr Luz. Fala por mim quando diz “(…) depois café, cigarro e o beijo de uma mulata chamada Leonor ou Dagmar (…)”, verso de Rancho da Goiabada, composição dele e de João Bosco. Fala por mim quando escreve “(…) não há shampoo, não há creme que apague ou que desmarque da tua pele o meu beijo fedendo a conhaque(…)”… e por aí vai, que o repertório blanquiano é impressionante! E fiz esse intróito por que? Para lhes dizer meia-dúzia de palavras (sou um incorrigível… rasgo minha alma em público como quem prepara o espetáculo para a assistência). E porque, de fato, do alto de meus 42 anos, afirmo sem medo do erro que as mulheres são tudo e eu não sou nada. Afirmo, sem medo do erro, que de madrugada (como agora) eu fico acordado pensando nelas, depois durmo pra sonhar com elas e acordo louco pra revê-las. Como afirmo, também, que vivo assim das primeiras andorinhas às últimas estrelas. Grande, o Blanc!

De hoje a seis dias, no dia 09 de setembro, completar-se-ão dois meses desde o desaparecimento da Dani (aqui). Eu, que num primeiro momento vivi a sensação do alívio por conta do fim do sofrimento que assisti muito de perto, passei a vivenciar, de uns dias pra cá (mais precisamente do segundo domingo de agosto pra cá, vá saber o porquê desse timing), a brutalidade de sua ausência. Estou vivendo, como dizem os mais chegados, o tal do luto, que – dizem – é imprescindível para que eu prossiga o ciclo da minha vida. Dia desses me disse, uma mais-velha: “Você tem que se enxergar como o boi no matadouro. Sangre até a última gota. Ou isso não passa”. A princípio não gostei da comparação com um boi, pensei imediatamente na minha forma física. Depois, entendi. A saudade de alguém como ela, que viveu 12 anos ao meu lado, é como um baobá plantado no meio da minha sala, é impossível não percebê-lo. E das duas, uma: ou renasço à sombra do baobá ou viverei estacado diante do tronco assombroso que me assusta e me desestabiliza. Tenho desejado, como nunca, o colo de minha mãe. Mas estou velho demais – e ao escrever isso percebo a besteira que é essa sensação… – para pedir seu colo, o mesmo colo no qual me deitei, chorando, para contar a ela, recentemente, novidades que envolviam, é claro, uma mulher. Diante de minha angústia, naquele momento, sugeriu-me o Ifá: se tiveres coragem de deitar no colo de tua mãe, ainda que chorando, e contar a ela, seja o que for, esteja certo de que não há nada de errado. Tenho ligado, com alguma freqüência, para minha irmãzinha Stefânia, que já foi, à certa altura, minha mãe (sou normal?). Ligo em busca de uma absolvição tolíssima, mas lá está ela, sempre, disposta a me ouvir o choro e o pedido – também – de colo. Tenho sentido uma profunda saudade das minhas meninas, minhas afilhadas, presentes que minhas comadres – sem elas a gente não vive! – me entregaram, e fico pensando na Milena, pensando na Iara, pensando na Ana Clara, pensando na Dhaffiny, pensando na Rosa, pensando na Helena – mulheres em flor. Tenho feito confissões à noite pra minha avó Mathilde, que foi pro Orum em dezembro do ano passado, e às vezes ligo pra Guararema pra falar com a ialorixá que é dona de um dos colos mais ternos que jamais conheci. Tenho ouvido a voz da Tarcisa, a empregada de mármore da minha infância, a me chamar pro quarto dos fundos. Tenho recorrido à Glória, outra que me dá colo à distância, à Inês, que mesmo estando em NY não deixa de estar aqui, na Tijuca, sempre que pode, à sua moda. Tenho tido saudades inacreditáveis da comida da Grazi, a mais bonita cozinheira que o mundo já conheceu. Sempre que posso tenho pousado também nos braços da Sônia, diante dos olhos de compreensão da Marcela, irmã que a vida me deu, e vou em busca, quase sempre vã, do sorriso negro da Jô, que ilumina os olhos de quem o vê. E minha outra irmã, a Betinha, que jamais me nega as mãos cheias de carinho, os olhos cheios de perdão… E a Candinha, que depois de se tornar mãe, passou a me olhar com olhos de intensa piedade? Eu choro. E a Isabel, a pequena Isabel, que esteve no colo dela um dia antes de sua morte e que a fez sorrir demais? Mal sabe, a pequenina, o quanto eu a amo também por isso… ela que ainda engatinha… E a Leonor, que esteve comigo em Búzios, na semana passada, e que vale mais que toda a “escolta de malucas que me acompanhava aos bares”? Choro também por todos os sonhos que sonhei, eu que tenho acordado louco para revê-la, das primeiras andorinhas às últimas estrelas, pagando o preço por ser destemido e intenso, corajoso e inconseqüente, intenso e adolescente. E minhas comadres, Railídia, brasileira em estado bruto, a paraense mais luminosa do mundo, Stefânia, Mariana, a Lu, filha de Oyá, a Raquelzinha, a Ana, a Magali, a Renata, mulheres generosas que me deram, de certo modo, suas melhores porções. E aos domingos, há muitos meses, vou ao Aconchego Carioca em busca do aconchego do colo da Katia, e bebo com a Katia, e choro com a Katia, e rio com a Katia, e celebro a graça do encontro naquele pedaço, naquele jardim dessa cidade-mulher. Tenho dividido e repartido a alma com a Áurea, tenho ímpetos de me deitar no colo da Íris, de pedir a massa e o frango dos domingos à dona Rose, vá tentar entender o que se passa em mim!, e anseio por esbarrar com a Bia nos jardins de sua mãe, e tenho querido a Luana pra cuidar das minhas mãos, ela sempre tão doce me chamando de “tio”, e minhas sobrinhas me matam quando me olham com olhos-de-sobrinhas!, e minha cunhada argentina, a Lina, que tem os olhos mais tristes, como os de Florinda Bolkan, ela que tem sempre a palavra certa que só me acalenta depois de me machucar, e a Tetê, e a moça da rua do Lavradio, quando fui um vadio, que o tempo me trouxe de volta, e a Maria Paula, e a Débora, e a Terezinha, que me ofertaram a casa como quem oferta a própria alma, e as mulheres de meus amigos, e as minhas vizinhas, e dona Mari Lúcia que me apresenta como filho, e a Verinha, que canta pra mim, e as flores que ainda compro, mesmo sabendo que elas são incapazes de dobrar a aridez dos corações, e essa estúpida vontade de ser triste pra incorporar e expurgar a tristeza, e essa teimosia quase-infantil de cantar como Orunmilá me mandou cantar, para ser mais feliz, no ritmo do pilão de Babá, e chega – meus poucos, mas fiéis leitores… -, chega porque senão eu morro; de emoção, diga-se.

As mulheres são tudo, eu não sou nada.

Até.

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TIJUCA EM ESTADO BRUTO

(texto publicado em 12 de setembro de 2009 no Caderno Idéias do Jornal do Brasil)

Semana passada deu-se, no prédio em que moro, uma cena de antologia, e explico. Quero fazer uma pequena retificação eis que escrevo como quem respira, sem parar pra pensar muito, o que me faz, neste momento, ter de recomeçar para ser melhor compreendido. Cenas de antologia são como água da bica no edifício em que moro. Todos os dias há várias delas, e eu poderia dizer, sem medo do erro, que os jardins babilônicos do meu prédio e seus banquinhos de praça são uma fonte permanente de inspiração igualmente permanente. A paisagem, pra quem vê de longe, lembra Mont Blanc, na França. Um mar de cabeças brancas suaviza o clima na área de lazer do edifício, e dia desses (semana passada) resolvi fazer o que eu poderia chamar de teste. Sou, vinte e quatro horas por dia, um criador de situações que me ajudam a compreender com mais apuro a alma humana, esse manancial inesgotável de surpresas. Vou lhes contar tudo com a precisão que me acompanha desde o berço.

Há uma coisa na Tijuca que causa mais terror e mais frisson que – o quê?! – ameaça de bomba em prédio público: a fofoca sobre a vida dos vizinhos, a expectativa da notícia quente, a novidade em primeira mão, o furo! E eu, eis a verdade nua e crua, lancei uma espécie de bomba imaginária de efeito moral entre os velhinhos e velhinhas que povoavam a área de lazer do condomínio na manhã de quarta-feira.

Desci às seis da manhã com meu glorioso vira-lata pelo elevador de serviço. Sentados nos bancos dispostos em círculo, cenário de todas as manhãs, os velhinhos, as velhinhas, as bengalas, as cadeiras-de-roda, as tosses, os terços, os livrinhos da Bíblia, as mãos trêmulas, os chinelos de arminho, os roupões (há, em meu edifício, uma velha que faz natação num clube próximo, o Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, e que sai de casa de chinelo de arminho, roupão, touca de borracha azul e uma prancha), as redes de cabelo, os leques em profusão.

Recebi o bom dia coletivo de todos os dias, estaquei diante de todas, meu vira-lata sentou-se e eu disse, depois de pigarrear (o pigarro foi o artifício que usei para me aproximar mais da terceira idade):

– As senhoras estão sabendo?

E segui caminho.

Ouvi murmúrios, um burburinho impressionante, fingi que não ouvi os chamados e parti para o passeio. Dobrei à direita, entrei na Almirante Gavião, dei uma volta pela pracinha, segui pela contramão da Doutor Satamini, entrei à direita na rua Caruso, tomei um café servido pelo glorioso Geraldo no Bar do Marreco, comprei um maço de cigarro, recebi o efusivo bom-dia do seu Brasil, freqüentador mais que assíduo do pedaço, e tomei o rumo da volta, pela Haddock Lobo mesmo. Quando surgi diante do portão do edifício vi uma festa de mãos e dedos, leques abertos numa coreografia que denotava um certo desespero (lembrei-me das festas de abertura das Olimpíadas) e chamados que me pareceram uivos de hienas diante de uma carnificina. De sacanagem, fiz que não para o porteiro e segui em frente. Fui até o Estudantil, pedi uma água com gás, escutei as expectativas da assistência sobre o jogo daquela noite, fiz uma fezinha num caça-níquel e voltei depois de uns vinte minutos.

Quando cheguei diante do portão, dei com a mesma cena que me fez lembrar o cais do porto durante a partida de um navio de guerra. Lenços brancos acenando, leques abertos e atônitos, e eu quase tropecei quando entrei no prédio, derrapando nos globos oculares que os velhinhos e velhinhas lançavam em minha direção do fundo do jardim como se fossem as bolas de gude da minha infância. Novamente de propósito parei na cabine do porteiro. Acendi um cigarro, puxei conversa com meu xará e ele disse:

– O que aconteceu, Edu? Elas estão agitadíssimas…

– Nada, ué.

E segui em frente, passos lentíssimos.

Estaquei diante daquela clínica geriátrica portátil. Uma velha asmática arfava como um fole e disse a frase que segurou durante meu passeio graças a um dique fictício que eu construí quando não lhe dei chance de redarguir na hora certa:

– Sabendo do quê?

Sentei-me na pontinha de um dos bancos.

Olhei pro chão (puro teatro).

Esfreguei os olhos com a mão direita (a esquerda segurava a coleira do meu vira-lata).

Funguei (estava com coriza, e só na Tijuca as pessoas ainda têm coriza).

A velha ao meu lado bateu com o leque fechado no meu joelho:

– Desembucha, menino! Sabendo do quê?

Olhei nos olhos de cada uma das velhinhas presentes (só havia velhinhas nesse dia, nenhum homem).

Ainda olhando para o chão, fazendo cara de terror e de choro, eu disse:

– Nenhuma das senhoras sabe? Mesmo?

Senti o ventinho provocado pelos nãos concomitantes.

– Então…

A asmática bateu no peito e disse:

– Conta logo, conta logo! – e batia o pezinho no chão, numa excitação de cinema.

Elas tinham a expectativa do assassinato na véspera, do suicídio, do adultério flagrado, da traição mais rasteira às escâncaras, e levantei-me, devagar.

– As senhoras vão saber… mas não por mim, não me sinto à vontade… É muito grave, é muito grave, e é inevitável que as senhoras saibam.

Eu tinha os olhos saltados (eu ia dizer rútilos, mas seria uma imitação grosseira demais). Segui em direção ao elevador fingindo choque.

Deixei pra trás aflição, agonia, apostas as mais estapafúrdias. Escutei, da porta do elevador:

– Será aquelazinha do sétimo andar? Não me engana, não me engana!

Outra, inconformada:

– Que diacho, esse menino! O que é que tinha que contar pela metade!

– Metade? Não contou nem um por cento! Danado!

Subi. Tomei meu banho. Deixei o interfone tocar sem atendê-lo. Pus o terno, ajeitei a gravata, tomei do lenço, pus perfume, calcei meus sapatos e desci de escadas para pegar o carro, na garagem, sem passar pelas velhotas.

Nunca vou de carro para o trabalho, foi só mais um elemento sórdido do meu teatro íntimo.

Passei a dez por hora por elas, de vidros fechados, ar-condicionado ligado, o rádio altíssimo tocando João Bosco.

Acenei.

Vi rostos desfigurados, agonia espalhada pelo jardim e pelas pedras portuguesas do chão.

Parti sem abrir o vidro, e pelo espelho retrovisor percebi a decepção das senhorinhas.

Tijuca, em estado bruto!

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