Como a Sra. Maria Eulália Araújo, que bateu o telefone pra mim no dia 13 de maio de 2010, conforme lhes contei aqui, não tornou a ligar para marcarmos a conversa proposta por ela, valho-me deste espaço para, através desta carta aberta, dizer a ela o que eu gostaria de dizer, franca e sinceramente, pessoalmente (valendo dizer que continuo aguardando sua ligação para que não haja qualquer mal-entendido).
Quero começar transcrevendo um trecho do release do evento COMIDA DI BUTECO que foi distribuído à imprensa e que pode ser lido, na íntegra, aqui.
“Assim como no futebol, a democracia se institui de fato no boteco. Entendendo e valorizando o botequim, como um dos mais importantes espaços da sociabilidade do brasileiro, o mote da campanha do CdB esse ano é uma declaração de amor ao boteco. Da zona sul ao subúrbio, as torcidas misturam raças, crenças, diferenças sociais, no botequim e no campo. Com o slogan “Em cada coração bate um buteco, em cada buteco batem vários corações” a Free Produções, realizadora do evento, pretende mobilizar torcidas, superando o número de mais de 200 mil pessoas que visitaram os 31 concorrentes de 2009. Ano de copa, ano de boteco! A culinária será o tempero especial desse campeonato para quem for assistir aos jogos nos estabelecimentos participantes.
´Acredito que o Comida di Buteco seja mais que um concurso gastronômico. Ele é um fenômeno sociológico que deveria ser estudado de perto, pois movimenta economicamente toda a cadeia produtiva do setor, agregando qualidade ao serviço, gerando novos postos de trabalho e maior receita para os estabelecimentos envolvidos´ – afirma Maria Eulália Araújo, uma das realizadoras do concurso.”
Cito um trecho do release e cito, agora, tentando uma costura que dê lógica a meu raciocínio, um de meus mestres, o historiador Luiz Antonio Simas, autor de um tratado sobre o assunto, DO PORTO AO BOTEQUIM – UM CHAMADO AO BOM COMBATE, que pode ser lido, na íntegra, aqui:
“Ando cabreiro com algumas coisas que estão acontecendo nas ruas cariocas. Aqui perto de casa, por exemplo, as notícias não são das melhores. Um botequim que costumo frequentar, o Bar do Chico, inventou uma reforma meio mandrake, que incluiu pizza no cardápio, visual moderninho, garçom de gravata e, é claro, aumento dos preços dos produtos. Botequim, já não é mais. Periga virar um playground de bêbados com rodízio de pizza depois das seis da tarde.
(…)
A Lapa, por sua vez, agoniza. Virou valhacouto de adultescentes, simulacro de berço do samba, com bares que vendem bebidas por preços proibitivos e que visualmente lembram a lanchonete da entrada do Memorial do Carmo, no cemitério vertical do Caju – um lugar mais digno para se beber, diga-se.
O Nova Capela [cada vez mais Nova e menos Capela ] hoje é atração turística para uns basbaques que encaram uma ida ao velho bar como uma espécie de safari no Quênia e saem dizendo que foi uma experiência inesquecível. O Bar Brasil resiste com bravura, mas até quando?
(…)
É aí, e eu queria falar disso desde o início, que localizo na minha cidade de São Sebastião o espaço de resistência a esses padrões uniformes do mundo global – o botequim. Ele, o velho buteco, o pé-sujo, é a ágora carioca. O botequim é o país onde não há grifes, não há o corpo-máquina, o corpo-em-si-mesmo, a vitrine, o mercado pairando como um deus a exigir que se cumpram seus rituais.
O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens comuns – cenário não habitado pelos personagens de novelas do Manoel Carlos.
É nessa perspectiva que vejo a luta pela preservação da cultura do buteco como algo com uma dimensão muito mais ampla que o simples exercício de combate aos bares de grife que, como praga, pululam pela cidade e se espalham como metástase urbana.
A luta pelo buteco é a possibilidade de manter viva a crença na praça popular, espaço de geração de ideias e utopias – sem viadagens intelectuais, mas fundadas na sabedoria dos que têm pouco e precisam inventar a vida – que possam nos regenerar da falência de uma (des)humanidade que limita-se a sonhar com o tênis novo e o corpo moldado, não como conquista da saúde, mas como simples egolatria incrementada com bombas e anabolizantes cavalares.
O botequim é, portanto, e não abro mão do hífen, o anti-shopping center, a anti-globalização, a recusa mais veemente ao corpo-máquina dos atletas olímpicos ou ao corpo pau-de-virar tripa das anoréxicas – corpos que se confundem na doença comum desse mundo desencantado: Metáforas da morte.
Ali, no velho buteco, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e petiscos gordurosos, no mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o protetor e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformização e o Homem é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetória – a capacidade de sonhar seus delírios, festejar e afogar suas dores nas ampolas geladas feito cu de foca. É onde a alma da cidade grita a resistência : Laroiê!
Esse combate, amigos, é muito mais significativo do que imaginam os arautos modernosos e seus programadores visuais.
Botequim tem alma, é entidade, feito os trapiches e sobrados do cais do porto em noite de lua cheia.”
Quase não há o quê dizer depois do que disse Luiz Antonio Simas. Mas eu quero dizer mais, ainda que evidentemente sem a mesma elegância, sem a mesma sabedoria, sem a mesma autoridade e sem o mesmo preparo intelectual.
Tenho, vocês sabem, diversos leitores em Campinas, interior de São Paulo (ainda que os campineiros rejeitem o termo “interior”). Campinas é a terceira cidade em número de leitores, perdendo apenas para o Rio de Janeiro e São Paulo. Vários deles, desde que comecei a falar sobre o evento aqui no Rio de Janeiro, me mandaram e-mails contando sobre a experiência que foi o COMIDA DI BUTECO, que estreou por lá neste 2010. O mesmo se deu, também, com leitores de Belo Horizonte, onde nasceu o projeto, a quinta cidade que mais me lê, atrás de Brasília. Todos, sem exceção, me pedem, no final dos e-mails, que eu não divulgue seus nomes. Como sou preciso do início ao fim, como sou honesto do princípio ao fim, atenderei a este pedido sem entrar no mérito da razão que leva alguém a pedir isso. Que assim seja.
Vamos ao que pude apurar, Sra. Eulália. Em Campinas poucos bares se interessaram pela coisa. Os mais antigos bares campineiros, os mais tradicionais, correram do festival como o diabo da cruz. Dentre os participantes, um abandonou o barco no meio do caminho (exatamente como fez o tradicionalíssimo BAR LAGOA, no Rio, em 2009, fora da edição de 2010). E isso, Sra. Eulália, porque seus donos teriam achado trabalhoso demais seguir à risca as regras impostas pelos senhores: decorar o ambiente com cartazes e bandeirinhas da maionese Hellmann´s, a maior patrocinadora de 2010, jamais servir a clientela sem antes estender, sobre a mesa, uma toalha de papel exibindo a marca dos patrocinadores, dentre outras imposições vigiadas de perto pelos auditores do festival.
O resultado, de certo modo, foi bacana: os bares que incluíram maionese em seus pratos foram mal na classificação geral. Um deles, o BAR DO CANDREVA, que se orgulha de ter mais de quarenta anos de tradição, serviu o que um dos meus leitores julgou ser uma “intragável porção de cebolas cruas recheadas com maionese, batata palha e frango desfiado”. Rodou. Deu-se mal na avaliação do público.
Venceu, em Campinas, o BAR DO CARIOCA, com uma simples e tradicionalíssima língua. Sem a maionese, é claro.
Disseram mais, os campineiros. Disseram que muitos dos butecos antes desconhecidos e onde se podia beber em paz, estão agora quase sempre lotados de uma gente estranha, alheia ao modus operandi dos bares até então pacatos. Esse fenômeno, Sra. Eulália, por exemplo, é recorrente aqui no Rio. Sou do tempo em que beber no ACONCHEGO CARIOCA era uma experiência fabulosa. Hoje, filas e mais filas na porta, vans levando gente que se comporta como num safári (como bem disse Luiz Antonio Simas), gente que chega arrotando que veio de longe cobrando coisas inimagináveis num buteco de verdade. Uma gente que acha que frequentar botequim é um programa exótico, modernos, descolado.
Um dos problemas do festival, Sra. Eulália, é que antes se podia beber uma cerveja tranqüilamente nesses lugares. Ocorre que essa gente está, agora, ocupando esse espaço que sempre foi do povo visto com nojo e com desprezo. Não se esqueçam: “o buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens comuns – cenário não habitado pelos personagens de novelas do Manoel Carlos.”. É isso: o COMIDA DI BUTECO é o passaporte pros personagens da novela da oito.
Os donos dos butecos – permita-me a digressão -, que deveriam ter o mínimo de consciência, crescem os olhos diante da perspectiva de triplicar o lucro, e danam a subir os preços da bebida e da comida, a fazer reformas desnecessárias que descaracterizam seus bares, a tratar com certa indiferença os clientes antigos enquanto adulam os bacanas que gastam os tubos. E faço a ressalva: a Katia, queridíssima minha, fez tudo isso, é verdade, mas é incapaz de destratar seus clientes mais antigos. E, ainda bem, acalenta o sonho de abrir um novo bar, um outro buteco, longe de toda essa parafernália que cerca hoje o ACONCHEGO CARIOCA.
O que quero lhes dizer é que o festival COMIDA DI BUTECO está, sim, promovendo a destruição dos botequins na medida em que inventa e fetichiza a chamada cultura de botequim. O “fenômeno sociológico” citado no release faz isso: passa por cima dos bares participantes do concurso e os destrói, sem piedade, oferecendo o lucro como contrapartida.
A classe média, sempre ávida por novidades (como é novidadeira, a classe média…), gosta do festival porque o festival lhe diz o que é bacana, o que está na moda, o que ela deve comer, onde ela deve ir com os amigos, é a maior responsável por essa insuportável mania de buteco. É daí vem o fetiche pelo jiló (antes odiado e considerado comida de passarinho), pela sardinha (antes, comida de pobre), pela cachaça (antes, bebida de mendigo) e por aí vai. Tudo o que antes era tido como ruim, porque popular, hoje virou artigo de luxo, disputado a tapa nos bares onde antes se podia ter conta e beber com os cabeças brancas de sempre. Muito, senhores, por conta do tal “fenômeno sociológico”.
Não foi diferente o teor dos e-mails que chegaram de Belo Horizonte. Mas a queixa recaiu sobre o evento que fecha o festival, a tal da SAIDEIRA, que acontecerá no Rio de Janeiro pela primeira vez. Lá, foi evento para mais de quinze mil pessoas, com palcos divididos por duplas sertanejas e bandas de pop-rock, tendas armadas com petiscos frios e requentados, latinhas de cerveja morna, seguranças, e uma multidão de gente estranha.
Se quisermos que nossos filhos saibam o que é um buteco autêntico in loco e não através de fotos em museu, é preciso parar, agora, com essa papagaiada.
Razão pela qual eu – e não estou sendo irônico – até comemoro a escolha que os senhores fizeram para mais essa edição no Rio de Janeiro. Meus butecos de fé não estão lá. O pé-sujo mais autêntico não está lá. Razão pela qual eu comemoro a escolha dos curadores do evento, que demonstram, uma vez mais, não entender nada do riscado. Nada. Melhor assim.
Obrigado, organizadores.
Quero apenas lhes dizer, antes de terminar, que tenho profundo respeito pelo trabalho dos senhores. Ao contrário do que a senhora me disse por telefone, Sra. Eulália, imagino, sim, o esforço despendido para fazer acontecer o festival. Imagino mesmo. O que não me obriga, por óbvio, a achar que se trata de uma iniciativa saudável para o Rio de Janeiro que eu amo e que luta, como doido, contra os que fazem de tudo para sugar dinheiro às custas de suas melhores tradições. E pra encerrar: não estarei, é claro, na SAIDEIRA, que acontecerá na Cidade do Samba no dia 17 de julho, um sábado. Mas posso adiantar para os senhores aquela que será a mais triste cena da festa.
Vai ser quando uma das estrelas da festa, Moacyr Luz, subir no palco pra cantar “Brasil, tira as flechas do peito do meu padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode ser salvar”. Vai ser triste, senhores, e vai ser de uma hipocrisia agudíssima: porque o festival é, estejam certos disso, uma saraivada e tanto de flechas no peito do velho santo.
Eu, humílimo, vou ficar daqui, permanentemente, tentando arrancá-las.
Até.