Deu-se que no domingo passado resolvemos, eu e a Morena, à noite, subir a Conde de Bonfim em direção ao Alto da Boa Vista para um daqueles tradicionalíssimos (e tijucaníssimos) lanches de domingo em família. E minha mãe, inspiradíssima, não se contentou com um simples lanche: a mesa, farta, exibia camarões, pastéis de queijo (que mamãe prefere chamar de burreca, iguaria judaica “feita por uma moça que mora na Engenheiro Adel que é uma delícia!”), saladas, pão de miga e outros bichos. Fomos recebidos por minha cunhada, que também estava lá (meu irmão, não). Aliás, diga-se, nenhum de meus dois irmãos estava lá. Éramos, portanto, cinco à mesa.
Contei-lhes isso em nome da precisão que me é companheira.
Papai foi pouco efusivo quando nos viu e tirou, do bolso imaginário do imaginário paletó, uma de suas frases preferidas (meu pai, o homem que tem pânico de servir sorvete com medo de que o sorvete vire sopa, tem uma coleção de frases feitas, entenda aqui lendo Papai também é fóbico):
– Hoje acordei tarde.
Aqui você entende porque essa frase é uma das clássicas frases de meu velho pai.
Houve um muxoxo coletivo (todos já sabem que a frase virá) do qual apenas a Morena não participou por falta de experiência. Ela perguntou, interessada:
– É? A que horas?
E ele, de pé, em posição de sentido, respondeu altíssimo:
– Tarde, hoje foi tarde… Quatro e dez da manhã!
Mas não é disso que quero lhes falar.
Estou, como lhes contei aqui, sem beber cumprindo a Quaresma.
À certa altura do lanche, mamãe perguntou:
– Edu, bebe um vinho comigo?
Fiz que não e a lembrei da proibição. Ela levantou os braços em direção ao lustre de cristal que pende sobre a mesa e que foi de minha avó paterna e disse:
– Graças a Deus!
Meu pai, que repete tudo o que mamãe diz como um xipófago do verbo, complementou:
– Graças a Deus!
Seis olhos – os meus, os da Morena e os de minha cunhada – cravaram os dois. Mamãe sacou o movimento e disse:
– Bom saber que você está conseguindo… – suspirou.
Seguiu, arranhando o prato com os dentes do garfo:
– O DNA da nossa família é perigoso…
Não me contive e explodi de rir.
Vejam vocês…
Não está no meu DNA, como sugeriu mamãe, a propensão a beber de forma industrial. Temos, é claro, como quase todas as famílias, os alcoólatras de estimação que nos redimem, inclusive, da culpa por bebermos demais.
O fato – atribuo a isso a minha relação intensa com a bebida! – é que uma de minhas canções de ninar preferida era a que vinha do som das pedras de gelo tilintando nos copos de cristal nas mãos da família inteira – inteira, sem exceção.
Papai chegava do trabalho? Mamãe servia duas generosas doses de uísque e tome de barulho de gelo no meu ouvido. Eu ia pra casa de meus avós? Vovô e vovó jogavam carteado: ele bebendo Teacher´s, seu preferido (vão tomando nota!), o indicador da mão direita fazendo girarem as pedras no interior do copo e minha avó bebendo Brahma em lata – ambos fumando desbragadamente, ele Continental e ela Hollywood. Minha bisavó nunca (eu disse nunca!) dispensou o licor de menta depois das refeições. Se havia festa, então, a carraspana era certa.
Cresci, pois, vendo, ouvindo, cheirando o álcool das inúmeras bebidas que embalavam aquela gente.
Durante esse período da Quaresma, então – quero fazer o registro -, ouço o barulhinho das pedras de gelo com intensa freqüência.
Graças a ele – ao som – eu ainda não sucumbi.
Um último registro: demonstrando intensa sensibilidade com o evidente sofrimento de um sujeito como eu, privado do prazer de beber, mamãe disse, ao nos ver diante da porta, saindo (comprovando que, aí sim!, o DNA da olímpica implicância carimba a família há sei lá quantas gerações):
– Oh, filho! Espere aí, espere aí!
– O que foi, mãe?
E ela me estende duas (eu disse duas) garrafas de Red Label fechadas, na caixa:
– São suas. Leve.
E sorri, assim, de canto-de-boca.
Até