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O MOLEQUE FUTEBOL – PARTE 1

O último texto publicado aqui, no blog – esse troço em desuso desde que as ~redes sociais~ começaram a ocupar pra valer o tempo das pessoas – foi em junho de 2017.

Movido por sugestão contínua da Morena e da Marianna Araujo, duas das maiores entusiastas desse espaço, e empurrado pra cá pela enxurrada de emoções vividas no final de semana que passsou, volto ao balcão virtual do buteco depois de quase dois anos e meio.

Mas a ocasião de fato pede. Feito o brevíssimo intróito, vamos ao que quero lhes dizer.

Quando meu pai me levou ao Maracanã pela primeira vez, em 1969, eu era filho único, vascaíno (papai e seu pai, meu avô, vascaínos fanáticos) e não fazia idéia do que era aquele gigante de concreto em silêncio que meu pai me apresentava tão orgulhoso (a foto não me deixa mentir).

Em 1974, no Maracanã, novamente levado por meu pai, e pelas mãos de Arthur Antunes Coimbra, o Zico, virei Flamengo (contei sobre isso aqui). Eu já não era filho único e o Maracanã, pra mim, ainda era uma incógnita.

Em 1978, meu pai me leva de novo ao Maracanã – para meu primeiro jogo de futebol in loco. A meta era me fazer ver o equívoco que foi ter trocado de time em 1974. A final era Vasco e Flamengo e o empate era do Vasco. Meu irmão (vascaíno) também estava. O Deus da Raça estragou os planos do meu pai e o Flamengo tornou-se mais sólido que nunca dentro de mim. Conto sobre esse jogo aqui. A partir daquele jogo – meu primeiro, repito – o Maracanã passou a ser sagrado. E eu nunca mais o abandonei.

Um pequeno corte no tempo, um arremesso bem mais pra trás.

Cresci, molecote, ouvindo a família contar (a mulherada da família, sobretudo, as velhas, as avós, a bisavó e as tias é que contavam as histórias) que meu avô, pai de mamãe, fora à final de 1950. O segundo jogo de sua vida no Maior do Mundo. E o último. Vovô foi encontrado dois dias depois, embriagado, num botequim no Engenho Novo. Jurara nunca mais pisar no Maracanã. E nunca mais pisou. E eu nunca esqueci dele diante de mim, o Continental numa das mãos, o copo com Teacher´s na outra, me dizendo com tom grave:

– Cuidado com o Maracanã! Cuidado!

Eu quero fazer a primeira confissão: até o dia 28 de junho de 2014, eu tinha 45 anos de idade, eu temi repetir o gesto do meu avô e abandonar o Maracanã pra sempre. Na tarde/noite daquele 28 de junho, quando fui ao Maracanã com a Morena pra ver Colômbia e Uruguai pela Copa do Mundo, quando a Colômbia venceu e eliminou o Uruguai, eu chorei por ter vivido a sensação de ter vingado meu avô. E nunca mais tive medo do Maracanã. Foi um rito de passagem, uma libertação, um acerto de contas com o Tempo e com os fantasmas que povoam minha vida.

Estamos em 31 de maio de 2018. Leonel nasce perto da meia-noite – a melhor coisa que me aconteceu na vida. Filho de dois rubro-negros, a Morena é torcedora do Furacão (“a camisa rubro-negra só se veste por amor”), Leonel já chegou me fazendo cometer as loucuras e as insanidades, as belezuras e os desvairios que um filho justifica. Arriei ebó na maternidade depois de ter feito promessa pra Nossa Senhora de Nazaré no Círio de 2017 (já sabíamos que ele estava a caminho) e prometi, no lufa-lufa das primeiras horas de vida dele, que só voltaria a pisar num estádio de futebol com ele.

Camisa do Flamengo na porta do quarto, roupinha vermelha e preta, todas aquelas mandingas e eu fui criando, ao longo do primeiro ano de vida do piá, a expectativa que, presumo, é a expectativa de todo pai, de toda mãe, que é muito envolvido, que é muito envolvida com futebol e com seu time: a de fazer a cria conhecer sua paixão e se apaixonar por ela.

A Morena foi sensata desde o início. O moleque, nascido no Rio, carioca, haveria de querer torcer pra um time do Rio, não pelo seu Atlético Paranaense (sem o agá). Afinal de contas somos todos rubro-negros e foi assim que fui apresentando o Flamengo pra Leonel desde cedo. Um copo que pisca. Um chocalho. A camisa. As cores. O hino. Gols na TV, o Campeonato Carioca de 2019, o Brasileirão 2019, a Taça Libertadores 2019. Assim mesmo, nesse ritmo.

E a vida foi ganhando outro ritmo por causa do futebol (de novo). E digo de novo porque o futebol é maior que a vida, e conseqüentemente pauta a vida de um homem, dita seu ritmo, pontua a passagem do tempo, emociona, comove, faz rir, faz chorar. O futebol ganhou outras cores depois do Leonel e nessa reta final da Libertadores.

Cena comum nas últimas semanas: eu com amigos no bar, bebendo e falando da grande final, Flamengo e River Plate, contando sobre o final do Brasileiro em 1980, as finais de 81… E invariavelmente alguém me interrompia:

– Mas Edu… ninguém aqui na mesa havia nascido em 81…

Eu era a múmia, nesses momentos. Eu era arremessado violentamente em direção ao passado. A memória me vinha viva, ardendo, eu com 11, 12 anos, 1980, 1981, conversando com gente mais velha a quem eu invejava de leve por ter visto jogar Garrincha, por ter visto jogar Pelé, por ter visto os tricampeonatos do Flamengo, Rubens, Dequinha, Pavão, e eu era ali o homem que experimentava a sensação invertida que o Tempo me proporcionava.

Leonel era o vértice.

Eu o pus pra dormir todos os dias, em 2019, conversando com ele, baixinho, sobre futebol. Sobre o Flamengo. Sobre os jogos que vi e os jogos que veríamos, eu e ele.

Não foi nada fácil atravessar essa última semana até o sábado.

Em vários momentos eu fui o menino no colo do meu pai, embasbacado e maravilhado diante do palco gigante das gigantes emoções que só o futebol proporciona. Enquanto eu era o menino no colo do meu pai eu embalava o menino que me arrebata o coração e a alma desde que nasceu, há pouco mais de um ano e cinco meses. Fui e voltei diversas vezes de 1969. Ouvi meu avô me alertando pros perigos do Maracanã e do futebol. Dei mais de uma volta olímpica no colo do Zico. Como num filme, vibrei com o mesmo Zico, pouco depois, cobrando escanteio e com o Rondinelli saltando e fazendo a bola morrer no gol do Vasco. Meu pai me arrastava pra fora do estádio, pra onde voltei e volto até hoje. Explodi nas arquibancadas em 1980 vendo o Nunes fazer ventar. Passei a noite em claro pra ver o Flamengo botando os ingleses na roda, em dezembro de 81. Chorei e não foi pouco.

Até que veio a sexta-feira, véspera da final da Libertadores de 2019.

Volto amanhã pra lhes contar como foi.

Até.

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PASSEIOS EM AEROPORTOS, MAIS UMA HERANÇA DE MEU PAI

Antes de começar a confissão de hoje, ligeiro arremesso em direção ao passado, quero dividir com vocês auspiciosa curiosidade: um dos textos mais lidos do Buteco do Edu é “Papai também é fóbico”, que pode ser lido aqui. E digo aupiciosa curiosidade porque tal fato, ver papai lido e relido Brasil afora (mundo afora, permitam-me a ousadia), me dá espantoso orgulho. Vou seguir em frente em busca de ser mais claro, até porque hoje quero lhes falar de aeroportos e, claro, de papai.

Desde pequeno (não saberia lhes precisar a idade) mantenho estranhíssima relação com aeroportos – e graças a meu velho pai. Explico: papai tinha uma fixação, bem me lembro. Vez por outra (também não saberia lhes precisar com que freqüência) papai armava um programa que hoje me soa tijucano da partida à chegada: íamos jantar no Galeão, no restaurante Demoseille, com nossas melhoras roupas. Recebíamos a ordem:

– Vamos jantar no Galeão!

Éramos três (acho que na verdade isso começou antes mesmo do nascimento do mais novo, em 1975) e fazíamos uma tremenda algazarra diante da notícia. Era, notem que não havia a Linha Vermelha, uma viagem. Papai subia a avenida Brasil com seu Fusca (depois com sua Brasília, depois com seu Passat…), atravessava a ponte belíssima com lampiões de luz amarelada que nos levava à Ilha do Governador e chegávamos excitadíssimos no Galeão, sempre com direito a uma passada no terraço que nos permitia ver as aeronaves decolando, aterrissando, taxiando ou mesmo paradas – era uma festa. Até que íamos para o Demoseille, do qual tenho (mais uma confissão) tristes lembranças. Na minha memória éramos quase sempre a única mesa ocupada no imenso salão. E sempre, rigorosamente sempre, enquanto bebia sua dose de uísque (não havia Lei Seca e papai bebia à larga), papai fazia a mesma cara de surpresa, tomava da caneta que carregava em sua capanga de couro, preta, escrevia algo num guardanapo de papel e o estendia ora pra mim, ora pro irmão do meio:

– Entreguem ao pianista!

Era meu pai, pedindo “Ebb tide”, e sempre “Ebb tide”, todas as vezes “Ebb tide”.

Há quem estranhe, ainda, minhas pequenas obsessões.

Mas o que eu queria lhes contar era outra coisa.

Recentemente fiz uma viagem com a Morena e fomos, evidentemente, ao aeroporto (para ir para nosso destino e para voltar, claro). Chegamos com – o quê?! – duas, duas horas e meia antes do horário do embarque. E lembrei-me, a caminho do Galeão (amo o Maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim mas o Galeão sempre será o Galeão) de um (mais um) hilariante episódio envolvendo papai.

Papai e mamãe foram a Paris, dia desses. Eu, bom filho que sou, ofereci-lhes carona para o aeroporto. Papai foi veemente:

– Não precisa, Eduardo! Já tratei um taxista! Tudo acertado, tudo nos conformes!

O vôo, marcado para às 18h.

Às 10h da manhã do dia do embarque, bom filho que sou, bati-lhes o telefone para desejar boa viagem.

Chamou, chamou, ninguém atendeu.

Disquei, então, para o celular.

Atendeu mamãe.

– Opa, minha mãe! Tudo bem?

A resposta foi seca:

– Arrã.

– Liguei pra desejar boa viagem, vocês não estão em casa?

Ainda mais seca:

– Não.

Fiz silêncio, bom filho que sou, ligeiramente constrangido com suas reações. Até que ela prosseguiu em tom irônico:

– Seu pai achou melhor chegar oito horas antes do embarque pra não haver qualquer problema. Estamos aqui no Demoseille, não sei se você lembra…

Ao fundo, “Ebb tide”.

Esse, meu pai.

Essa, minha confissão de hoje.

Até.

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MEU PAI

A foto que ilustra o texto – “Meu pai” – é significativa: à esquerda, de verde, Marcelo Vidal – meu irmão. A seu lado, de branco, Fernando Szegeri, outro irmão meu, pai de duas de minhas afilhadas, Iara e Rosa. De preto, óculos pendurados no pescoço, o velho Isaac, meu pai. A seu lado, Felipinho, que chama meu pai de pai. E de costas, uma de minhas referências, outro irmão que a vida me deu, meu compadre, meu sacerdote, pai de meu afilhado-de-rua – o moleque Benjamin, elezinho filho de Exu -, filho de um filho de Ogum como eu, nosso pai: Luiz Antônio Simas.

mesa forte na quitanda abronhense

E eu digo que a foto é significativa porque estão ali, à mesa, quatro homens que têm, cada um deles, fundamental participação na minha formação, na minha construção, na minha manutenção, na minha forma maior de emoção como homem. Todos em torno daquele que, em 1969, recebeu o aviso de que eu nasceria no vigésimo-sétimo dia de abril daquele ano – contrariando previsões médicas, as estatísticas das mulheres da família, as contas da tabelinha de minha mãe. Ele, meu pai.

Ele, meu pai, que agora aos 70 anos tem apenas 25 anos a menos do que eu. Isso, em 1969, esses mesmos 25 anos, era um oceano, um abismo, um tempo inatingível, um hiato que fazia de mim o dependente diante do único ídolo – o filho e o pai. O primogênito e o pai. O filho único e o pai. Os anos passaram – e passaram tanto… – e eu deixei de ser o filho único, e eu deixei de ser dependente, e ele deixou de ser meu único ídolo na medida em que fui colecionando ídolos conforme os anos se passavam.

Hoje, do alto dos meus 45 anos, sou cada vez mais um homem assombrado pelos arrancos e arremessos em direção ao passado. E sinto falta das conversas que nunca tivemos (e que nunca teremos, ora bolas!), sinto falta dos gols que nunca comemoramos (ele Vasco e eu Flamengo), sinto falta das confissões que nunca fiz, sinto falta de uma porrada de coisas que não são nada, rigorosamente nada, absolutamente nada diante das certezas que tenho de que sou, hoje e ainda hoje (e para sempre), fruto do sujeito alto, magro, de pernas finas, meio desajeitado, que em 1969, com menos de um ano de casado, recebeu o anúncio de que eu estava pra chegar.

Eu cheguei.

E nunca vou-me embora.

Nem ele.

Porque os nossos liames são frutos de mistérios jamais desvendados e que serão, sempre, celebrados como celebrados foram na tarde que passamos sentados à mesma mesa na Quitanda Abronhense: em silêncio quebrado apenas pelo espocar dos copos americanos, cheios de cerveja, que se batem para dar forma e vida ao que nunca soubemos dizer um pro outro. Nem com os olhos – porque os meus eu fechei, desde o primeiro dia, diante do sopro de seu assovio, na direção dos meus olhos, para que eu dormisse o mais rápido possível.

Feliz dia dos pais, meu pai.

Até.

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ARREMESSO AO PASSADO AOS 45 DO PRIMEIRO TEMPO

Ontem comemorei aniversário, 45 anos!, com uma cabritada no Bar do Chico, na sacrossanta esquina da Afonso Pena com Pardal Mallet, que fez a assistência vaiar o cabrito do Capela em posição de sentido, porque o cabrito ensopado que o Chico serviu foi coisa muito, muito, muito séria! Encomendei o bicho na manhã de sexta-feira, Chico tratou de ir comprá-lo (vivo) na hora do almoço e ontem, quando chegaram à mesa as duas travessas com a criança, deu-se a balbúrdia: não sobraram nem os ossos!

Estava lá, claro, meu velho pai – “um judeu que serve de cavalo para o caboclo Tupinambá”, como dissera, na véspera (e por isso me considerando um cara de sorte), a irmã de um amigo meu.

Escrevi, ao longo das horas que antecederam o 27 de abril, um texto que, agora, republico com muito mais detalhes que me vieram ao longo do sábado, todo ele passado ao lado da Morena que, pacientemente, acompanhou (desde a madrugada passada, quando cantei e gargalhei feito Exu-Caveira, mesmo dormindo) o transe que enfrento a cada arremesso ao passado e do domingo.

eu e papa em pb

Papai, o velho Isaac, é filho de Oizer Goldenberg e de Elisa Glicklich (Elisa Goldenberg depois de casada), os dois fugidos de Odessa, e judeus não-ortodoxos, ressalte-se. Papai é o filho mais novo (tem um único irmão), nasceu em 25 de janeiro de 1944 mas foi registrado apenas em março daquele ano como tendo nascido em março mesmo, conta a lenda de família que para fugir da multa que seria imposta a meu avô pelo atraso no registro.

Seu avô, meu bisavô a quem não conheci, foi prisioneiro de guerra nas mãos sujas dos nazistas e sobreviveu ao campo de concentração onde esteve preso. Outra lenda de família conta que mamãe, quando conheceu meu bisavô (Yona Glicklich), tendo este mostrado a ela o braço marcado e numerado, herança maldita da perseguição de Hitler, jogou no bicho, no milhar, o número tatuado na pele do avô de meu pai. A milhar deu na cabeça e mamãe faturou uma grana que, por remorso, doou inteira para uma instituição filantrópica.

Papai nasceu na rua Campos da Paz e cresceu no eixo Tijuca x Rio Comprido, foi amigo de infância do moleque Babolina (Jorge Ben, depois Jorge Benjor) e conheceu mamãe ainda na adolescência, numa festa na Marquês de Valença – na Tijuca. Teria dito ao avistar mamãe descendo as escadarias da casa:

– Vou me casar com ela.

E ao som de Ray Charles, quando mamãe chegou ao chão, disse a ela, olhos nos olhos:

– Vou me casar com você.

Casou-se, de fato, com minha mãe, em 22 de maio de 1968.

Passaram a noite de núpcias em Copacabana, num hotel na avenida Nossa Senhora de Copacabana que tá vivo ainda lá (Savoy Othon Travel, à época apenas Othon), e passaram a lua-de-mel em Teresópolis, sob intenso frio.

Consta que papai freqüentava o Divino, um bar da pesada na esquina da Haddock Lobo com a rua do Matoso, onde “toda confusão começou”. Sempre na companhia do Pato e do Babolina, papai tinha como mania roubar os copos dos liquidificadores do Divino enquanto se batia suco de abacate, e a confissão me foi feita pelo saudoso Paulo Amarelo – papai jamais confirmou, sempre desmentindo sem convicção alguma – durante um encontro ao acaso. Ao avistar meu pai, ao meu lado, Paulo Amarelo ficou branco e disse, apontando pro meu velho:

– Você é filho dele?!

Foi ele dizer isso e papai desaparecer entre a multidão (estávamos no lançamento do songbook do Aldir, no SESC Tijuca).

Papai estudava no La-Fayette (também na rua Haddock Lobo), mamãe no Colégio de Aplicação.

Durante o noivado, papai conheceu o caboclo Tupiara, que tinha como cavalo meu tio Carlos Henrique, o tio Hique, irmão de minha avó Mathilde, mãe de mamãe e espírita desde pouco depois do nascimento de Maria Florinda, sua única filha, numa gira de caboclos (mamãe ganhou esse nome em homenagem a Maria Florinda, irmã de minha avó, que morrera aos 15 anos, de tétano).

Consta que Tupiara, ao dar de cara com papai, disse:

– Ainda vamos trabalhar juntos, meu filho!

Vai daí que papai, já morando com mamãe na rua Barão de Mesquita, num apartamento cujo aluguel era maior que seu salário (o que fez com que ela afundasse em dívidas com agiotas) avistou um índio aos pés de sua cama no dia 26 de abril de 1969, a ele dizendo:

– O menino nasce amanhã! – e mamãe tinha previsão de que eu só viria ao mundo na segunda quinzena de maio.

Papai nem quis ir trabalhar na manhã do dia 27, mamãe insistiu, achou que papai estava enlouquecendo, e ele foi. Papai trabalhava na REDUC, em Duque de Caxias (mais tarde, depois de passar numa prova para a Petrobras, foi trabalhar na avenida Chile, no Centro, onde se aposentou em 1994), na Brigada de Incêndio, e lá chegando ouviu do chefe:

– Volte pra casa, Isaac, a bolsa de sua esposa estourou!

Estourou. Era eu chegando.

Eu que – os relatos da família são impressionantes – brinquei com índios imaginários a infância inteira.

Até que um dia papai teve o primeiro transe: era o caboclo Tupinambá, da mesma falange de Tupiara, que anos antes que lhe fizera o alerta.

Papai, que fez o Bar-Mitzvá mas que nunca foi muito com o judaísmo, com a ajuda de meu avô Oizer me submeteu ao brit milá, à boa e velha circuncisão, cerimônia conduzida por um rabino judeu ortodoxo. Consta que no dia da cerimônia do brit milá meu avô mandou plantar 3 árvores em Israel (o que anunciou à toda a assistência com orgulho) e que minha avó materna desmaiou por ter entendido que ele mandara matar 3 árabes em Israel. Nessa cerimônia, ganhei meu nome na religião judaica: Dan Ben-Moshe, o filho de Moisés, aquele que livrou o povo judeu da escravidão – ou “extraído das águas”, como preferem alguns.

Depois, o menino circuncisado foi batizado na Igreja Católica pelas mãos do Frei Angélico, na Igreja dos Capuchinhos, a poucos metros de onde hoje moro (na rua Haddock Lobo) – e no mesmo apartamento onde moraram, por muitos anos, meu avô e minha avó, Oizer e Elisa.

Menino, aprendi a rezar antes de dormir: “Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo. Tupinambá, Tupiara e Ogum do Mar, protegei a minha cabecinha.”.

Vira-e-mexe Tupinambá pinta no pedaço. Tupinambá, tendo como cavalo Isaac Goldenberg, já dançou e cantou em minha casa, já rodou defumador por todos os cantos do apartamento, já rezou minha Morena, já rezou a mim, e vou assim, vivendo e convivendo com essa coleção de fantasmas e de histórias que me moldaram e que me moldam ainda mais a cada arremesso violento em direção ao passado, como esse.

Saravá!

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O PAI DO TADEU

Publiquei, em 03/02/2014, “As frases de meu pai”, aqui. E anteontem, 24/03/2014, recebi o seguinte comentário deixado no texto:

“Legal. Achei seu blog meio que do nada. Estava procurando blogs sobre história do Brasil… Enfim, cara, meu pai tem dessas também. Infelizmente, eu, às vezes, respondo com certo mau humor as suas frases. Uma das mais clássicas é “Tá cedo, fica mais um pouco”. Se você está na minha casa e decide ir embora, não importa a hora, mesmo que seja às 5 da manhã e você esteja muito bêbado, ele a dirá. Outra que ele fala demais, essa eu não gosto, é “arroz eu como em casa”. Qualquer que seja a ocasião, se lhe oferecem arroz, ele vem com essa. Bom, muitos pais devem ter as suas.”

A partir do momento em que li o comentário do Tadeu (é esse, seu nome) fui tomado por um desejo súbito: quero ver, sentados à mesma mesa, meu pai e o pai do Tadeu. Meu pai, já lhes disse um sem fim de vezes, é um homem que tem, nos bolsos, frases que ele vai repetindo vida afora (frases e gestos, e faço uma pequena  digressão).

Além das frases que coleciona, papai é um homem de gestos autômatos. Papai mora desde 19 de junho de 1994 (há quase 20 anos, portanto) no Alto da Boa Vista. Assim que se mudou, debruçou-se numa das janelas do apartamento e disse:

– Que linda vista!

Foi a uma das caixas da mudança, sacou sua câmera e tirou uma fotografia da tal janela.

Estamos em 26 de março de 2014.

Desde a mudança, então, papai já tirou 7.720 fotografias absolutamente idênticas (conto esse fato com o intuito de aplacar a indignação de meu leitor, o Tadeu). Repito, por extenso, para que vocês dimensionem o drama: papai já fez, desde sua mudança, sete mil e setecentas e vinte fotografias iguais, do mesmo ângulo. Voltemos ao pai do Tadeu.

Penso no encontro dos dois, papai e o pai do Tadeu, à noite, num bar qualquer da Tijuca (penso no Bar do Momo).

Eles se cumprimentam e sentam-se à mesa.

Papai sugere uma cerveja e o pai do Tadeu aceita.

– Magnífico, uma cerveja estupidamente gelada!

Papai só chama garçom de magnífico e só pede cerveja desse jeito, estupidamente gelada.

Meu pai começa a desfiar seu novelo de frases:

– Hoje eu acordei tarde… – e faz cara de paisagem.

O pai do Tadeu:

– É? A que horas?

E papai excitadíssimo, manda mais uma de seu repertório:

– Quatro e meia da manhã! Tardíssimo! Tardíssimo! – e ergue o copo num brinde.

Eis que chega-se à mesa o Toninho e sugere um dos clássicos do Momo:

– Que tal um bolinho de arroz pra acompanhar a cerveja?!

Eis que o pai do Tadeu ergue-se e quase bate continência:

– Arroz, eu como em casa! Arroz, eu como em casa!

E meu pai, ganindo de rir, dá um jeito de me bater o telefone pra contar o fato, dizendo baixinho:

– Estou bebendo com um maluco, depois te conto, depois te conto!

O que eu queria lhes dizer, em apertada síntese, é que estou ainda sob efeito do susto que me causou a confissão do Tadeu. Meu pai é dono de vasto repertório de frases e de gestos, repito, mas esse “arroz eu só como em casa” faz com que eu, por alguns instantes, julgue meu pai o mais são dos sãos e o mais normal dos homens (embora eu tenha certeza de que essa impressão se esfumará no próximo encontro).

Até.

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MAIS FRASES QUE PAPAI TIRA DA CARTOLA

Eu temia por isso: retomei as histórias sobre meu pai, um personagem pronto, e as histórias pululam na minha cabeça, fervilham no meu imaginário, quicam diante de mim de dia, perturbam meu sono à noite, e cá estou eu, de novo – e pelo segundo dia seguido – para lhes contar mais sobre as frases que meu pai, como um mágico, um ilusionista, saca do bolso, da cartola imaginária. O tema hoje é cigarro.

Papai fumava, durante minha infância e grande parte de minha adolescência, de 3 a 4 maços de cigarro ao dia. Shelton Lights, comprados diariamente no Bode Cheiroso, portentoso buteco na General Canabarro, e sempre acompanhados de uma garrafa de água mineral com gás, Caxambu, e um café. Até que um dia (vamos ao ponto que me interessa) papai resolveu parar de fumar.

Eu não me lembro, nem que queira, de sua decisão, do dia D, de nada disso. Lembro, apenas, de ouvi-lo contar, e já perdi a conta de quantas vezes!, a história da mágica (papai adora dar, a tudo o que conta, um tom sobrenatural) que o fez parar de fumar.

Papai conta que, uma vez tomada a decisão, procurou uma clínica no Flamengo (ele faz questão de frisar o bairro dizendo “na praia do Flamengo, número 66”), pelo telefone, a fim de marcar hora para uma consulta (a tal clínica prestava-se exclusivamente a um tratamento à base de laser que prometia fazer o paciente parar de fumar). E ele conta, sempre efusivo, que quando ligou não havia hora, não havia vaga. Papai então respira fundo, dá um tom de drama à narrativa e conta que praticamente ameaçou a atendente, prometendo mundos e fundos em troca de um encaixe. E conta que foi atendido. E é aí que começa o espetáculo, aí é que começa o desfile das frases-feitas.

Papai posta-se na cadeira e aponta o indicador da mão direita no alto do próprio nariz, entre os olhos. E diz, sôfrego:

– Ela me deu uma pistolada aqui… – fecha os olhos.

E prossegue.

Leva o indicador ao centro do peito e diz:

– Outra pistolada aqui!

E sai espetando o próprio dedo em diversos pontos repetindo a frase:

– Uma pistolada aqui…

E geme, e gane, e sapateia de orgulho de si mesmo.

Vai daí que vira-e-mexe alguém dá de contar ao meu pai seu drama particular para largar o vício (eu mesmo, que em 09 de maio de 2014 completarei dois anos sem fumar, tenho o meu). E meu pai, sempre, sempre!, dá de ombros e debocha do sofrimento alheio. Repete, como um Dom Pedro proclamando a Independência:

– Eu parei com uma pistolada! Uma pistolada!

Daí a pessoa conta que está usando adesivo de nicotina, tomando antidepressivo, tendo crises agudíssimas de abstinência, dormindo mal, tendo toda a sorte de revezes que assola um fumante inveterado tentando largar o vício… nada disso demove meu pai de seu número:

– Isso não adianta nada!

Ergue-se e de pé, grita:

– Nada! Não adianta nada! Eu parei de uma vez só, com uma pistolada!

E como sempre, exige a confirmação de mamãe:

– Hein, Pixuxa? Lembra? Uma pistolada!

Mamãe, de olhos baixos, confirma. É a senha para que a narrativa comece.

Era o que eu queria lhes contar. Meu pai, pela mesma razão que repete que não janta, que só belisca (leia aqui), vive contando, orgulhosamente, a história de sua pistolada – palavra, aliás, que ele inventou para referir-se à experiência quase-esotérica que experimentou lá se vão mais de vinte anos.

Até.

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AS FRASES DE MEU PAI

Quem me lê sabe que meu pai é uma de minhas obsessões (e cada vez mais, cada vez mais!).

As sessões de psicanálise, as horas diante da médica da alma, um escavar permanente na memória e na própria alma, tudo contribui para que, cada vez mais, e mais intensamente, meu pai vá se sedimentando como um tótem em minha vida. Explico.

As frases de meu pai são um bom exemplo do quanto ele é, do alto de seus recém-completados 70 anos, um sujeito que me toma a atenção.

Já lhes contei aqui que meu pai é um homem que tem, permanentemente, nos bolsos, frases que ele repete com uma constância rígida. É como o árbitro de uma partida de futebol que, diante de uma falta, exibe o cartão amarelo, o cartão vermelho. Em determinadas situações – eis o que eu queria lhes dizer – lá está meu pai, como o homem de preto, com seu apito imaginário e suas frases exibidas com ares de inedistismo. Os exemplos são muitos…

Mamãe serve sorvete de sobremesa e lá começa meu velho:

– Rápido! Rápido! Sirvam-se antes que vire sopa! Vai virar sopa! – lhes contei sobre isso, aqui.

Outra. Você encontrará meu pai na rua, na Praça Saenz Peña, na piscina do Montanha, num restaurante qualquer. Antes do “olá”, do “oba”, papai dirá sem que você nada tenha perguntado:

– Hoje eu acordei tarde… – e fixará os olhos nos seus esperando a prevísivel pergunta.

Daí você perguntará a que horas ele acordou. E ele, numa alegria incontida e até hoje incompreensível para mim, dirá:

– Três e meia! Tarde, tardíssimo! – sobre isso, lhes contei aqui.

De uns meses pra cá – eis o mote que me move hoje – papai incorporou mais uma frase para seu repertório.

Você o encontrará e o convidará para jantar, eis a situação-exemplo.

Ele dirá, no ato:

– Eu não janto. Eu só belisco.

E isso é dito como um mantra. E vez por outra, pobre mamãe, ele dá de cutucar minha mãe exigindo o testemunho:

– Hein, Pixuxa? Eu janto? Eu janto?

Mamãe bufa e faz que não com a cabeça. Daí ele emenda:

– Viu? Eu só belisco.

Deu-se então que no sábado passado, por uma dessas coincidências da vida, fui ao teatro com a Morena para ver “Elis, a musical”, no Teatro Casagrande. E lá, na fila, encontramos papai e mamãe. Foi um efusivo encontro (meu irmão caçula estava com eles) até que eu sugeri:

– Depois da peça, vamos jantar?

Mamãe fez que sim, Cristiano disse “claro” mas meu pai começou a sapatear na Afrânio de Melo Franco:

– Eu não janto, eu só belisco.

Mamãe lançou-lhe um olhar de reprimenda, papai bufou e disse:

– Não tem problema, eu fico olhando vocês comerem! – notem a categoria.

Deu-se uma pequena bulha e o Cristiano propôs, para acalmar os ânimos:

– Então não vamos jantar… vamos só comer uma pizza.

E meu pai, inovando sobre o mesmo tema:

– Eu não como à noite, eu só belisco. Vou comer só uma fatia. Só uma! Uma, uma, uma!

Terminada a peça, tomamos o rumo da pizzaria.

E eu tive a impressão de que meu pai, azul-de-fome, cravava os olhos cheios d´água nas pizzas alheias, tamanha a vontade de comer as maravilhas que chegavam à mesa. Mas diante de sua rigidez e de seu caráter implacável, gania com o prato vazio depois de comer sua única fatia, mesmo mamãe perguntando se ele queria mais (era evidente que queria):

– Não, Pixuxa. Eu não janto. Eu só belisco.

Era o que eu queria lhes contar hoje.

Até.

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70 ANOS NÃO SÃO 70 DIAS

Amanhã, 25 de janeiro de 2014, meu pai faz 70 anos de idade. E quando eu escrevo “meu pai faz 70 anos de idade” sou tomado, preciso fazer a confissão, por um tremor de alma, um frio na barriga, um embaçar de olhos, um tremor nas mãos e se faz necessário beber um pouquinho pra ter argumento, apud Aldir Blanc. Por isso eu bendigo tanto a garrafa de uísque que mantenho sempre por perto.

Meu pai – quem me lê, sabe – é um homem de hábitos simples, como seus pais, meus avós, judeus russos fugidos de Odessa, desembarcados no Brasil, moradores da rua Campos da Paz, depois da rua Santa Alexandrina, depois da rua Haddock Lobo. Meu avô era mascate, minha avó, dona-de-casa. Meu pai foi petroleiro – seu primeiro e último emprego.

Meu pai é um homem de emoções contidas mas capaz de protagonizar uma cena como essa, que lhes contei aqui, em julho de 2005:

“Já lhes contei que o Isaac, no início da década de 60, deu de cara com a mamãe numa festa em que ele era o penetra (uma rotina pra ele. Papai, Mauro, Pato e Babolina não passavam um único final de semana sem uma festa, sem uma penetrada clássica). Numa casa suntuosa na Rua Mariz e Barros, copo de Cuba Libre na mão, cigarro no canto da boca, papai não suportou ver o par de coxas morenas de mamãe deslizando degraus abaixo numa escada de mogno em caracol. Estacou ali, diante dela, os olhos dando voltas como um carrinho de montanha-russa, e ao som de “Georgia on my mind”, na voz do Ray Charles, disse-lhe ao pé do ouvido, “caso com você um dia!”. E assim foi feito.

Pois em determinado momento da noite, já era noite, papai, carregado na cerveja, pediu silêncio ao Fefê e a todos. Cambaleando, foi até o minisystem e catou um CD. E pôs pra tocar, justamente, Ray Charles cantando “Georgia on my mind”. E a cena foi de uma beleza tocante.

Sem que nenhum de nós entendesse nada, papai foi até os fundos do terraço e voltou com uma escada de carpinteiro, de madeira mesmo, e a escorou na caixa d´água. Com as mãos, fez um gesto pra que mamãe subisse os degraus (e mamãe o obedeceu, com certa dificuldade, carregadíssima na cerveja também). Daí fez outro sinal pra que ela descesse a escada. E quando mamãe pousou no chão, um papai com olhos marejados disse-lhe algo ao pé do ouvido e ficaram ali, os dois, dançando como se estivessem naquela casa da Mariz e Barros.”

Meu pai, cavalo de um bugre brasileiro, anteviu – dizem – meu nascimento.

Meu pai, homem de poucas palavras, sempre demonstrou seus sentimentos através de suas ações – quase sempre em silêncio. E eu custei muito a ler seus silêncios.

Meu pai, no dia 30 de agosto de 2008, um sábado, saiu pra beber cerveja comigo de manhã, na rua do Matoso, mais precisamente no Matosinho, um pé-sujo da área (foto abaixo).

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Poucos dias depois dessa cerveja que bebemos praticamente em silêncio – faço a confissão tardia – Fernando Szegeri recebeu a foto que ilustra este texto e me disse, por e-mail:

“Por alguma razão estranha que me escapa, choro há 15 minutos vendo as fotos da vossa barba grisalha…”

Pouco depois, emendou noutro e-mail:

“Lembra aquela imensa mensagem imensa que te mandei uns tempos atrás (quase dois anos), dizendo que eu sentia  que minha juventude terminara?

Os teus olhos, mano querido, o teu semblante, dizem hoje exatamente o mesmo de ti.”

Pois eu, na véspera dos 70 anos de meu pai, sinto-me jovem, ao menos mais jovem do que naquela manhã de 2008.

Eu, na véspera dos 70 anos de meu pai, por conta das linhas do novelo da vida que vivo há quase 45 anos, sinto-me como irmão de meu pai. Por conta, penso eu, do fato de eu estar, cada vez mais, entorpecido por silêncios. Por conta das mesmas dores, dos mesmos medos, por conta dos mesmos fantasmas que, nessas datas, se aproximam de nós (sou um fóbico quando se aproxima meu aniversário). Papai faz 70 anos. Em abril, faço 45. São números redondos. Vinte e cinco anos nos separam. Ontem mesmo eu estava em seu colo num dos bancos de madeira da Praça Afonso Pena, calças curtas, camisa listrada, a caminho do Salão América pra cortar cabelo pela primeira vez com o Raul, em março de 1970. Hoje cedo, antes de vir pro trabalho, fui ao Salão América fazer a barba com o Raul e vi, no caminho, meu pai e eu sentados no mesmo banco verde da fotografia que minha memória guardará para sempre. Amanhã, quando estivermos juntos, meus avós estarão conosco. Meus avós estão nos olhos de meu pai, cada vez mais presentes nos olhos de meu pai, os olhos de meu pai emoldurados pelos mesmos óculos que vestiam os olhos de meu avô, os olhos de meu pai com a mesma tristeza permanente dos olhos de minha avó, o sorriso do meu pai com a mesma espalhafatosa alegria que havia nos olhos azuis e nos cabelos brancos esvoaçantes de meu avô.

Não sei o que vou dizer pro meu pai amanhã, diante dele.

Mas a vontade que tenho é de fazê-lo saber o tanto de gratidão que tenho e que nutro por ele e por cada um desses dias que separam meu nascimento de seus 70 anos. E o tanto de fascínio que me causam os anos anteriores, de 1944 a 1969, sobre os quais pouco ou nada sei… prova definitiva de que é incomensurável o espaço que ele ocupa em mim. E o quanto eu desejo – quanto! – que ainda haja muitos anos pela frente para que estejamos sempre por perto… eu, ele, a Morena, mamãe, meus irmãos. Para brindarmos muitas vezes, sempre juntos. Como fizemos naquela manhã de agosto de 2008.

Saravá, meu velho!

Até.

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VAMOS INDO? UM TRAUMA…

Estive no Maracanã com a Morena para ver Flamengo e Cruzeiro pela Copa do Brasil, quando o Flamengo venceu com um gol no finalzinho da partida. A Morena já havia estado no Maracanã comigo para a Copa das Confederações, Itália e México, mas fez sua estréia no estádio em um jogo do Flamengo com uma vitória de virada em cima do Fluminense, e a caráter, o que rendeu a ela, imediatamente, o caráter de talismã, jogo a jogo. Assisti à partida com o inseparável radinho de pilha, sob a viga 43 do maior do mundo, e deu-se o seguinte (é o que quero lhes contar hoje).

Final de jogo, o Maracanã em festa, e a Morena, dulcíssima (e cansada):

– Vamos?

Fui atirado, por uma catapulta imaginária, e arremessado em direção ao passado.

Desde 1978 até meados dos anos 80 (quando comecei a ir aos estádios com amigos mais velhos e sem meu vascaíno pai) eu vivi um drama. Meu pai, um sujeito mais metódico que o mais metódico dos homens, aos 39 minutos do segundo tempo virava-se para mim (e para meu irmão do meio) e dizia:

– Vamos!

Uma breve pausa: a única exceção foi em 1978 (como lhes contei aqui), quando papai quis ficar até o fim apenas para que eu visse o Vasco campeão diante do Flamengo. Rondinelli estragou seus planos, sedimentou minha paixão mas dali em diante nunca mais assisti, com ele, um jogo até o final.

A desculpa era sempre a mesma: evitar tumulto (um dos grandes atrativos do futebol).

Nova pausa: suas regras, seus métodos, valiam também para necessidades fisiológicas. A regra era dita sempre na subida da rampa:

– Vocês podem mijar agora e no intervalo apenas. Durante o jogo, nunca!

Voltemos.

Desenvolvi, então, ao longo dos anos, essa angústia, esse trauma, esse horror. Cansei de, descendo a rampa, ouvir pelo rádio um gol milagroso, salvador, um gol que decretava uma vitória suada, ou um empate, ou mesmo uma derrota acachapante. Nas primeiras vezes ainda gemia um “tá vendo?” sempre incapaz de sensibilizar o velho, arraigado a seus métodos com a tenacidade de um militar. E fui colecionando dores (um gol depois dos 40 sempre me doeu feito o diabo), frustrações, uma sensação de impotência que fez de mim, até hoje, um homem que só sai do estádio ao apagar das luzes.

A Morena disse “vamos?” e eu comecei a chorar (quase).

Contei a ela, rapidamente, sobre isso tudo.

Acho, sinceramente, que no fundo do fundo do fundo de mim eu desconto, após o apito final, todos aqueles minutos que perdi ao longo de tantos anos.

Fico ali, saboreando a imagem do gramado, das redes, das bandeiras, dos jogadores a caminho do túnel, ouço o começo da resenha pelo rádio, ouço de novo a narração dos gols, me vingo dos minutos de bola rolando que perdi.

Sou, a cada apito final, e até descer a rampa, e até ganhar as ruas, o menino de calças curtas que finalmente assistiu ao jogo todo, até o último minuto de acréscimo.

Ah, sim.

A coisa tem contornos tão fortes que, uma vez a cada jogo, pelo menos, sou arremessado por mim mesmo, e por meus fantasmas, em direção ao banheiro para mijar com a bola rolando, radinho de pilha equilibrado entre o ombro e o ouvido, livre das amarras daqueles tempos inflexivelmente delimitados.

Até.

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APOSENTOU-SE, O BIGODE – PEQUENAS DIGRESSÕES

Dia desses, minha Morena é testemunha, fui ao Salão América fazer a barba e saí de lá com a cara lavada de tanto que eu chorava. Explico: eu freqüento a Barbearia Salão América desde o dia 21 de março de 1970, quando eu tinha pouco mais de 10 meses de idade, (e se você duvidar de mim, basta ver as provas inequívocas aqui), portanto há mais de 43 anos, e naquela manhã, depois de ter dado por falta do seu Ernesto no comando da cadeira do fundo, perguntei por ele ao Raul, que me respondeu com a voz embargada:

– Tá em Portugal. Aposentou. Nem sei quando volta…

Essa resposta, o tom da voz do velho Raul (que foi quem cortou meu cabelo em 1970), essa permanente dificuldade para lidar com a perda, a certeza de não mais ver e ouvir a gargalhada daquele português naquele salão que faz parte dos meus cenários há mais de quatro décadas, me fez sair de lá chorando como criança de 10 meses sem colo de mãe.

Hoje soube pelo Gabriel Cavalcante, tijucano de escol, que outra grande figura do bairro, uma lenda-viva para os freqüentadores do Bode Cheiroso, glorioso botequim na rua General Canabarro, também acaba de se aposentar: o Bigode, que aparece na foto abaixo, de autoria do próprio Gabriel.

Bigode do Bode Cheiroso

Sobre o Bigode, escreveu meu irmão e meu compadre Luiz Antonio Simas:

“(…) A começar pelo Bigode, que controla o balcão feito Domingos da Guia dominava a grande área e abre cerveja atrás de cerveja como Garrincha enfileirava os marcadores. É craque.

Eu só acredito em garçons que pareçam egressos do cangaço. São cada vez mais raros diante da profusão dos garotões de aventalzinho, das moças moderninhas e dos descolados que pululam feito mato nos bares de grife. A  destreza com que Bigode abre uma ampola cu de foca – como se fizesse isso desde que o primeiro hominídeo caminhou ereto na Serra da Capivara – é a mesma com que Lampião manuseava o fuzil parabelo.”

E era assim mesmo.

O Bigode, assim como o seu Ernesto, habita o meu imaginário (e 0 meu dia-a-dia!) desde há muito.

Eu era um moleque e a rotina das manhãs era a mesma: papai ia nos deixar muito cedo no colégio, a caminho do trabalho. Parava todo santo dia, de 2ª a 6ª, no número 218 da General Canabarro, Bar Macaense pra turista, Bode Cheiroso pros íntimos. E todos os dias pedia seus 4 maços de Shelton Light e sua garrafa de água com gás, Caxambu, quando as garrafas d´água eram de vidro.

E lá estava ele, todos os dias – o Bigode.

Mudamo-nos dali, a rotina matinal deixou de ser cumprida mas eu jamais deixei de ir ao Bode Cheiroso.

Aqui, em março de 2007, o relato de um dia que terminou na calçada em frente ao bar. Aqui, em maio de 2009, um encontro antes e depois de um jogo no Maracanã. Aqui, em texto do mesmo 2009, uma das clássicas fotografias, de minha autoria, tirada no Bode Cheiroso, de Luiz Antonio Simas. Aqui, em junho de 2011, na concentração para a final da Copa do Brasil, Coritiba e Vasco.

Não são muitos os registros – escritos ou fotográficos – que tenho do bar e do Bigode.

Mas são incontáveis as referências dentro de mim.

Com o seu Ernesto e com o Bigode aposentados – merecido descanso depois de anos de bons serviços prestados – a Tijuca fica um pouco mais sem graça.

Até.

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