Chega ao fim o Carnaval 2016 e (mais uma vez) a constatação é óbvia e urgente: é preciso que a LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba) – com a imposição de uma medida de força por parte do Governo do Estado e da Prefeitura da Cidade – acabe com o monopólio da Rede Globo para a transmissão dos desfiles das Escolas de Samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro. As razões são muitas e vou tentar elencá-las para que esse meu manifesto, solitário e apenas meu, ganhe cores de coerência e, quem sabe?, vá ganhando adesões ao longo do tempo.
Antes, uma não tão breve digressão, e me valho aqui do auxílio de dois grande amigos que, cada um a seu modo, pensaram junto comigo sobre essa questão, Rodrigo Gava e Fernando Szegeri. O primeiro mandou-me extenso e-mail e o segundo, com a ênfase szegeriana de sempre, deixou seu comentário aqui mesmo.
É preciso ter em mente que essa é a lógica da Rede Globo (e de todas as demais emissoras, sem a mesma força de penetração, angariada e fomentada durante os mais de 20 anos de ditadura no Brasil): a lógica do lucro pelo lucro, tergiversando um serviço público com vista a interesses puramente mercantis. “Como esse interesse é o lucro”, diz Rodrigo Gava, a Rede Globo precisa de “audiência pra ´vender´ o seu produto.”. E sabemos todos como esse produto – o Desfile das Escolas de Samba – é vendido “por uma conivente e inoperante LIESA”. O que a massa quer, o que a audiência quer, é merda – com o perdão da palavra, usada por R. Gava em seu e-mail. Segue ele: “A audiência, a grande audiência, é a do público de shows da vida, de big brothers e de faustões.”. Essa audiência “quer essa merda toda que se faz e se mostra nos ´desfiles´. A outra grande parte é a da geração fast-food, que quer tudo picotado, tudo muito rápido, tudo muito líquido, como o filósofo Bauman tão bem cunhou.”.
Por isso mesmo essa audiência não suporta ficar 80 minutos vendo o cortejo, “repetido e manjado”, passando pela tela da TV. Há que se notar que, há muitos anos, a transmissão da própria Rede Globo era outra, de outro nível, o que demonstra claramente que a Rede Globo sabia, e ainda sabe, apenas não quer mais que seja assim, pois já não há mais espaço para isso dentro da lógica do lucro, transmitir o Carnaval. Assim, a pequena audiência que sobra, de pessoas que gostam e querem ver o Desfile das Escolas de Samba, – e não o show global – não mais importa e nem vem ao caso, como se essa grande representação da cultura brasileira pudesse não vir ao caso. Pior, continua R. Gava, “dão de ombros, apoiado nos grandes interesses em jogo, para depois ainda zombarem: quer ver desfile, vá pra Intendente Magalhães. É só mais um retrato do sequestro da cultura popular.”.
Fernando Szegeri vai ainda mais fundo. Reproduzo seu comentário, que passa a fazer parte deste texto-manifesto:
“Há mais, meu querido irmão. A Rede Globo porta-se como senhora do Brasil. Na verdade, a Globo – que sempre foi corrupta, chapa branca e autoritária, mas ao menos primava por alguma qualidade na produção televisiva – especializou-se de anos para cá em construir um autêntico SIMULACRO DO BRASIL e enfiá-lo goela abaixo da nação. Com esse simulacro caricato, turvo, inverossímil, banal, pobre, destituído de qualquer valor cultural ou estético, a Globo traveste absolutamente tudo o que toca. Assim, o que é vendido para os olhos do pobre telespectador brasileiro não é o nosso futebol, nem o nosso carnaval, nem o nosso samba, nem os nossos butiquins: são sempre meros espantalhos travestidos. Assim também é, como não poderia deixar de ser, com a cobertura jornalística de qualquer coisa, do esporte à política, do cotidiano às artes. NADA, ABSOLUTAMENTE NADA é como aparece pela lente deformante das câmeras globais; como é narrado pelos seus textos grotescos. Quem já pisou alguma vez num butiquim e vê um butiquim retratado numa novela, por exemplo, sabe exatamente do que estou falando. Assim é com todo o mais. Longe, é claro, de se constituir na origem profunda de nossas mazelas, a Globo, no entanto, com a superdifusão de seu simulacro pan-travestidor, é hoje o fator determinante do contumaz e progressivo alheamento da população brasileira de seus reais problemas, de sua real imagem, da compreensão mínima de seus dilemas e, consequentemente, das rédeas de seus destinos.
Voltando ao Carnaval, não são só as escolas de samba padecem de sua ingerência. O Carnaval de rua pelo Brasil afora é reiteradamente estuprado, retalhado, empobrecido, estigmatizado e descaracterizado pela ´cobertura´ petulante, invasiva e desrespeitosa da emissora. Nos meus vagares intermináveis pelas ruas, presenciei nos lugares mais improváveis intervenções dos repórteres e câmeras globais violando os mais sagrados e fundamentais princípios do Carnaval, quais sejam a espontaneidade, o descompromisso, a horizontalidade, a picardia, a sutileza, a singularidade, o saudável anonimato das multidões. Estão sempre à procura de quem se disponha a uma ´performance´ caricata para o consumo imbecilizado em escala planetária. Eu mesmo, participando de espetáculo promovido e contratado pela Prefeitura de São Paulo, recebi ´ordem´ – para qual evidentemente não demos a mínima – de uma fedelha mal saída dos cueiros para que cantasse mais duas músicas, porque ela ia ´entrar ao vivo´. Aí os ´foliões´ criados e embalados nessa cantilena já há umas três gerações, embarcam na onda e acham que aparecer na telinha é o clímax do Carnaval, a chance de ouro de um brasileiro ´comum´ alcançar a suprema glória, fechando-se, destarte, cá como alhures, o ciclo maldito da imbecilização geral da República.”.
Vamos à análise mais pontual do problema, agravadíssimo no Carnaval de 2016.
De cara, dois absurdos inomináveis: por questões de conveniência (a TV preferiu exibir Big Brother Brasil no domingo e na segunda-feira) a Rede Globo deixou de transmitir o desfile de duas escolas gigantes, a Estácio de Sá no domingo e a Unidos de Vila Isabel na segunda-feira. Se a LIESA, os governos e a própria TV vendem o peixe dos desfiles como “o maior espetáculo da Terra”, como é possível simplesmente não transmitir o desfile de duas agremiações que têm torcedores (praticamente todo o bairro do Estácio e o de Vila Isabel) e admiradores em todo o Brasil?
O que leva alguém a vender a exclusividade (eis um dos crimes que a LIESA comete) da transmissão de um evento do porte dos desfiles das Escolas de Samba para uma emissora que, a seu livre alvedrio, decide não transmitir duas das doze agremiações? Mas isso não é tudo.
Durante a transmissão das demais dez Escolas de Samba, o modus operandi da Rede Globo foi o mesmo: os desfiles começavam a ser transmitidos quando as escolas já estavam na avenida há 10, 15, 20 minutos! Dos telespectadores foi sonegado, de todas as Escolas de Samba, um dos momentos mais esperados, o do esquenta, a entrada na avenida, os gritos de guerra. Durante esse tempo, os repórteres escalados pela emissora dos Marinho, todos eles estranhos à matéria (a exceção foi o Milton Cunha, coitado, cercado de beócios por todos os lados), mostravam o sanduíche de mortadela que a dona Iaiá levou pra arquibancada, entrevistavam membros do elenco da Rede Globo, faziam perguntas as mais estúpidas aos componentes famosos deixando de lado a alma das Escolas de Samba, os fundadores, os baluartes, passistas, com seus repórteres invadindo a pista para visivelmente atrapalhar a evolução do espetáculo.
Eu, que tive a sorte de estar na avenida para os desfiles de segunda-feira, só não sofri mais em casa porque assisti ao desfile pela TV (justamente por conta da exclusividade) ouvindo a excelente Rádio Arquibancada (aqui) com narração de Anderson Baltar e comentários de Luiz Antonio Simas e de outras feras no assunto. Mas era doído: enquanto eu ouvia os sambas na íntegra, com som ao vivo direto da avenida entremeado por poucos mas certeiros comentários, geralmente a TV exibia imagens absolutamente desconexas, num estupro do espetáculo, um desrespeito com os amantes dos desfiles (são muitos, são milhões!).
Ao final de cada desfile, dentro de um estúdio montado na Marquês de Sapucaí (o que já é também absurdo), a Rede Globo, então, era mais Rede Globo que nunca: constrangendo componentes das escolas que eram levados à força pra frente das câmeras, entrevistas inúteis, comentários descabidos, um processo de idiotização do telespectador semelhante ao processo que mata, aos poucos, o futebol brasileiro.
É urgente rever essa política. É preciso acabar com o monopólio da Rede Globo e deixar a livre concorrência transmitir os desfiles da Marquês de Sapucaí com suas equipes (que serão seguramente mais competentes que os idiotas da Vênus Platinada), deixando o telespectador fazer sua livre escolha. A LIESA, não muito acostumada ao diálogo, bunker com quem pouca gente tem coragem de mexer sob pena de isso-deixa-para-lá, precisa ao menos sentir a pressão do Poder Público em prol do bem do telespectador, do cidadão, do destinatário final das concessões públicas de rádio e televisão. Há que se acabar com a farra da Rede Globo. Há que se criar uma alternativa para que uma rede de TV possa transmitir o Carnaval para quem ama o Carnaval – com imagens do desfile na íntegra, com comentários (que serão sempre poucos mas pontuais) pertinentes feito por quem entende (e como há gente que manja do assunto por aí…, os já citados Anderson Baltar, Luiz Antonio Simas, Maria Augusta, Fábio Fabato, Alberto Mussa, Aydano Motta, tantos outros), sem firula, sem babaquice, sem idiotices que pretendem fazer do telespectador, perdão pela redundância, um idiota.
O melhor espetáculo da Terra merece. E os aficcionados também.
Até.