No final dos anos 90, início dos anos 2000, mantive na grande rede uma revista eletrônica que se chamava Sentando o cacete, nome que eu e Aldir Blanc (colaborador de todas as edições!) escolhemos juntos. Tínhamos o domínio, inclusive! O time, em ordem alfabética: Aldir Blanc, Eduardo Goldenberg, Mariana Blanc, Mauro Rebelo, Mello Menezes e, esporadicamente, Fausto Wolff.
Eu tinha dado como perdidos, os textos, as ilustrações do Mello… tudo. Numa operação arqueológica, os encontrei. Passarei a dividi-los com vocês. Inauguro essa comunhão hoje, com texto do meu saudoso mano Fernando Toledo!
(texto de Fernando Toledo para o site Sentando o cacete, edição de primeiro de novembro de 2001)
Esta semana, a modelo, apresentadora de vulgaridades e campeã mundial de gravidez oportunista – a única representante de nosso País a trazer uma medalha de ouro nas últimas Olimpíadas – , Luciana Gimenez, declarou, em alto e bom tom, para um público a cada dia mais ávido de informações acerca dos quinzeminutistas de plantão: “Morro de inveja dos ossos dela”, referindo-se a sua colega no promissor ramo do Alpinismo Social Giselle (sem) Bundchen. Ao que a mídia, de imediato, como sói acontecer nestes casos, se prostrou de joelhos, avalizou, e tratou de divulgar, com todas as letras e cores, a pertinentíssima opinião, causando ondas de inveja que deixariam rubro um estudante de Osteologia ou um médico legista, no público alvo da citada declaração: o imaginário feminino de determinados segmentos de nossa sociedade.
Na frase em questão estão contidas várias informações acerca de um dos atuais mecanismos que regem a imprensa e a mídia de um modo geral: a valorização de um padrão único de beleza feminina. Ou seja: a modelo espigada, esguia ao ponto de parecer doentia, e, principalmente, a mulher que, através de uma diversidade de métodos, consegue representar, por meio de suas formas, o seu patrimônio financeiro, suprema afirmação em um mundo regido pela grana e pelo que ela pode pagar. Sim, pois o estilo de corpo de que tratamos não é o que se pode chamar de um produto da natureza, e, sim, uma espécie de escultura perpetrada ao longo de anos, com o gasto de muito, mas muito dinheiro, e muito esforço pessoal. Um ícone, enfim, às duas principais bases do sistema monetarista que nos governa, e que, em última instância, determina cada um de nossos atos. Poder exibir, de forma a causar estupefação, inveja e desejo na parcela masculina da população, o fruto desta carreira, passa a constituir o fim em si, além de ser também um meio de se aumentar o patrimônio por meio de conquistas amorosas fartamente noticiadas, e, num efeito de bola-de-neve, se esculpir mais e mais e alcançar, a cada lipoaspiração, aplicação de silicone e semelhantes, um próximo alvo mais abastado e notório. Nesse quesito, Luciana Gimenez galgou o mais alto dos degraus: traçou Mr. Roquenrol, e com ele gerou um filho. Medalha de ouríssimo para ela.
Quando essa roda-viva de valorização de uma estética imposta atinge e influencia pessoas como as citadas, ou como outras tão paparazziadas quanto, não causa espanto de espécie alguma. Ver como isto afeta uma modelo-atriz (?) como Mônica Carvalho, que declarou recentemente que tinha como sonho visitar o Egito, pois sempre adorara “essa coisa de Mitologia Grega, como Cleópatra e as pirâmides” (palavras da própria) não surpreende. O culto doentio à beleza física nessa pessoa é mais que esperado, afinal, de que outros meios ela disporia para tentar se afirmar como ser humano? Surpreende abrir o jornal e se deparar com a notícia de que uma pessoa culta e inteligente como a arquiteta e diretora de projetos especiais da Funarj, Anita Mantuano, militante do MST, morreu na manhã de sábado vítima de uma embolia pulmonar decorrente de uma operação de lipoaspiração. Surpreende constatar como a ditadura dos ossos à flor da pele influencia até mesmo aqueles que julgaríamos salvaguardados da mesma. Surpreende ver como a mídia avança com passos de gigante, nos tomando de roldão, fazendo-nos até mesmo esquecer o senso de autopreservação em função de uma aceitação estética.
Estamo-nos tornando reféns, por nossa própria vontade, de critérios que talvez nem mesmo correspondam ao que realmente queremos, como homens e mulheres, em termos de atrativos físicos do sexo oposto. Caminhamos intrépidos rumo a um estado de coisificação, a ponto de permitirmos que designers nos imponham o desenho de nossos próprios corpos. Cabe indagar-nos, caso ainda nos reste algum tempo, se o preço a pagar vale nosso esquecimento de que somos humanos e, como tais, feitos, cada um, à sua própria imagem e semelhança.