Ontem, 21 de abril, fez 90 anos minha tia Linda, a única irmã viva de minha avó Mathilde, que foi oló em dezembro de 2010, num domingo, dia 05, como lhes contei aqui. Lembrei-me disso (ou melhor, fui conduzido a lembrar) por conta de ter visto, postadas no Facebook, as fotografias da festa de aniversário de seus 90 anos – por uma das filhas, por uma das netas, conseqüentemente por uma tia, por uma prima. Festa para a qual, por razões absolutamente desinfluentes para o desenrolar do novelo de confissões que estou fazendo, não fui convidado. É um naco da família com o qual não tenho contato lá se vão mais de 30 anos. Tia Linda (Carlinda Monteiro de Barros) era casada com tio Beneval, sofre de Alzheimer há alguns anos – vovó contava – e teve dois filhos: Maria Vitória e Alexandre, e com este último encontrei-me por absoluto acaso em fevereiro de 2012 no Centro, o que me causou um abrupto e violento arremesso em direção ao passado (como lhes contei aqui). E aqui, neste outro texto, vocês podem ver tia Linda ao lado de minha avó, ambas muito novas, com Maria Vitória no colo da tia Linda e mamãe no colo de vovó. E vejam vocês que as fotos que vi ontem, de tia Linda com 90 anos, mostram que a mesma é, ainda, esculpida e encarnada, minha saudosa avó.
Vai daí que sofri, ao me deparar com a primeira foto da festa, novo e impactante arremesso em direção ao passado – mas dessa vez agravado por uma história que passo a lhes contar, acompanhem.
Vovó e tia Linda tinham outros irmãos. Vovó casou-se com meu avô Milton – tiveram mamãe. Havia uma irmã, Maria Florinda (o mesmo nome de mamãe, homenagem a ela), que morreu aos 15 anos, de tétano. Tia Linda casou-se, como já lhes disse, com tio Beneval, e tiveram Maria Vitória e Alexandre. Há, ainda, um irmão que foi adotado quando bebê, ainda vivo, Pedro Paulo – solteiro. Havia tio Hique, o Carlos Henrique, que casou-se com a primeira mulher, a quem não conheci, e que teve a Sonia e o Julio Cesar. Casou-se depois com a Francis, e nasceu a Carla. Havia o tio Silvio, que foi casado com tia Irene, tiveram a Carmen. E havia o tio Chico, Francisco Monteiro de Barros, que foi casado com a tia Noêmia, e nasceram Eugênio Augusto e Luis Carlos. Tio Chico separou-se, eu era ainda menino, e foi pra Brasília (era tudo o que eu sabia).
Vamos lá: estão vivos, de toda essa tropa, mamãe, a tia Linda, Maria Vitória, Alexandre, Pedro Paulo, Sonia, Julio Cesar, Francis, Carla, Carmen e Noêmia. Onze pessoas. Outros dez estão mortos. Não estou contando, faça-se a ressalva, os dois a quem não conheci: a primeira mulher do meu tio Hique e a segunda mulher do meu tio Chico. A Maria Florinda – tia Mariazinha – eu também não conheci, mas a mesma era, digamos, um mito familiar; não era raro ouvir falar dela, de suas histórias, tratada quase como uma santa que foi levada ainda tão moça. São onze os vivos, são dez os mortos.
Jogo duro entre vivos e mortos.
Até que o destino, danado, aumentou a vantagem a favor dos vivos. Vou lhes contar essa história.
Eu era menino, meninote ainda, quando tio Chico sumiu das festas de família. Tio Chico era, lembrem-se, casado com a tia Noêmia. E sobre a tia Noêmia, e sobre o fascínio que a tia Noêmia exerce, por exemplo, sobre meu pai, leiam isso aqui. Como eu lhes disse, eu era muito menino – um molecote. E dando por falta do tio Chico nas festas, nos almoços, por ele perguntando, ouvia das mulheres da família, farfalhando os leques abertos:
– Chico largou da Noêmia.
– Chico enrabichou-se com outra.
– Ah, o Chico! – era a bufada clássica das mais-velhas.
Sei que correram os anos e dei de ouvir – sempre fui atento, atentíssimo! – das mesmas mulheres, tias, tias-avós, primas mais velhas:
– Chico teve uma filha. Fora do casamento! – e as católicas se benziam, as espíritas citavam Kardec, as da macumba faziam o sinal da cruz.
Vão tomando nota do caldeirão onde fui cozido.
As mais maledicentes – não há reunião de família sem a exibição dos talentos do serpentário – diziam, rangendo os dentes:
– Uma bastarda!
Faço a confissão tardia (e que, anos depois, tornou ainda mais pujante minha paixão pela obra rodrigueana).
Eu tinha verdadeiro fascínio, delirava, sentia tremer a alma pequenina que habitava meu corpo quando ouvia a palavra santa: bas-tar-da.
Eu repetia, de mim para mim, molecote de calça curta, e delirava, revirava os olhos, sentia suar as mãos, acelerar o coração, vivia o prazer do proibido sem ao menos saber o sentido de tudo aquilo: bastarda, bastarda, bastarda. Eu desejava – vejam a que ponto chega a profundidade de minha confissão dominical – namorar, mais à frente, uma bastarda. No colégio, não sei precisar o ano, passei a me interessar de modo diferente pelas meninas. E sempre fazia parte de meus cortejos:
– Você é bastarda?
Vejam: não ser bastarda me causava um desinteresse imediato, era como se aquela menina subitamente se esfumasse diante de mim caso não fosse bastarda. Eu queria uma bastarda. A todo custo eu desejava tocar, beijar, cheirar, abraçar, namorar uma bastarda.
Não sei lhes dizer também quando essa obsessão pela bastarda passou. Nunca namorei uma bastarda. Mas os 9o anos da tia Linda, esse desfile de fantasmas na minha memória, trouxeram à baila a obsessão pela figura da bastarda. E a isso se soma a impressionante história que vou lhes contar agora.
Dia desses recebo um e-mail de uma mulher contando que veio parar aqui no blog por conta de uma pesquisa qualquer no Google. Dizia, no e-mail, que sua avó tinha o mesmo nome de minha bisavó – Mathilde Veloso Monteiro de Barros. E-mail pra lá. E-mail pra cá. E-mail indo. E-mail vindo. E dá-se o inusitado: Angela Paula, 35 anos, é minha tia – filha de meu tio Chico.
Aos 43 anos, plenamente ciente do significado da palavra que tanto me fascinou quando moleque, fui tomado, naquele dia (era, já, um final de tarde), por uma profunda emoção diante desse encontro – ainda que virtual, por enquanto – com a filha (legítima, diga-se) de meu tio Chico. E quase-morri – faço nova confissão – quando ela me falou tão docemente sobre sua avó, minha amada e saudosa bisavó, de quem tem, como parca lembrança, apenas e tão-somente uma única fotografia.
Ela, ainda bebê, no colo de dona Mathilde.
Até.