Quantas vezes já nos demos conta de que certas músicas, determinados sons, específicos gostos, peculiares cheiros nos remetem para lá, para cá, são responsáveis por inacreditáveis arrancos e arremessos em direção ao passado, às vezes um passado que até mesmo desconhecemos e que reside em nós? Eu, por exemplo – e ontem mesmo lhes contei um pouco sobre essa experiência, aqui – não posso sentir o cheiro da hortelã sem ser atirado em direção ao colo de minha bisavó com suas inseparáveis pastilhas Garoto de hortelã, “muito boas para o meu pigarro”, no bolso de seu vestido. Não posso ver sequer uma carrocinha da Geneal sem me sentir um garoto de calças curtas e camisa listrada, de mãos dadas com meu pai, a caminho da loja da Geneal que havia na rua Barão de Itapagipe, destino certo em domingo de Maracanã. E por aí vai. É a tal festa dos sentidos.
Pois eu ando, assim – como lhes dizer? – cultivando a citada festa a fim de aplacar sentimentos novidadeiros que chegaram há pouco. Tenho, em casa, na Tijuca, minha aldeia, meu pago, duas cuias de porongo, uma bomba, e um bom peso de erva-mate sempre à mão. E eu, por conta de delírios que eu mesmo crio – estarei cometendo um pecado mortal na visão de um gaúcho tradicionalíssimo?! – tenho, entre os dedos, quando dou de matear (passei a gostar imensamente de conjugar este verbo), permanentemente, o corpo de uma mulher. O amargo do mate me remete ao mais doce beijo e sou capaz de ver seus olhos, olhos que ela fecha quando leva a bomba à boca, num espetáculo plástico e visual que se reproduz a cada manhã ou fim de tarde.
Porque eu sou, assim, um sujeito que arde (não concebo a vida sem a ardência que só experimenta aquele que diz em vez de falar). Venta, em mim, o minuano vento quando dou de matear (eu avisei). A chinoca foi mas não foi. E bóiam, na casa e em mim, muito por conta também do encontro inesperado de ontem (aqui), um coletivo de fantasmas vivos e mortos, o cheiro de hortelã da minha bisavó, a voz bem postada da mãe de minha mãe, o som das pedras de gelo do uísque de meu avô, o sorriso que desapareceu mas que se insinua pelos caminhos onde vou, o cheiro de mofo dos ternos do meu tio Beneval, as bolinhas dos vestidos de minha tia Idinha, e eu faço o Benjamin sorrir nos meus braços, e eu canto pra Isabel, e eu encontro o Henrique na praia e pergunto sobre meu carro de estimação que dei a ele, e ele tem as mãos entre as mãos da Rebeca, e eu me transformo em pai dos dois, e eu sou um careta, e eu vejo imaginários maços e maços de Shelton Light que papai comprava, todas as manhãs, no botequim da General Canabarro, e eu sinto medo quando mamãe se atrasa pra me pegar na escola, e eu sinto medo, e eu sinto medo, e os medos se esvaem quando avanço no tempo, e eu entorno mais água morna na cuia que aprendi a dominar e sou eu mesmo que me derramo pro fundo do porongo, e ouço discursos inflamados de Leonel Brizola, e eu tenho o lenço vermelho de maragato no pescoço, e eu me vejo caminhando na Schiller que não faz esquina nem com a Professor Brandão e nem com a Dias da Rocha Filho, mas com a Haddock Lobo, e dou voltas redondas em torno de mim mesmo, e volto pra superfície da cuia, e vazo em direção aos meus dedos, e meus medos, e meus medos, e meus segredos, e meus segredos, e enquanto a cuia não ronca, como ronca a cuíca – não de fome! – eu não sossego. E eu morro de orgulho de mim mesmo.
Sou eu, a esmo, abrindo de novo os olhos e tomando um violento susto diante da percepção de que estou vivo. E aprendendo, cada vez mais, a lidar com os fantasmas, deuses e demônios que moram em mim.
Até.