Arquivo do mês: fevereiro 2012

TIJUCA, MEU PAGO E MEUS DELÍRIOS

Quantas vezes já nos demos conta de que certas músicas, determinados sons, específicos gostos, peculiares cheiros nos remetem para lá, para cá, são responsáveis por inacreditáveis arrancos e arremessos em direção ao passado, às vezes um passado que até mesmo desconhecemos e que reside em nós? Eu, por exemplo – e ontem mesmo lhes contei um pouco sobre essa experiência, aqui – não posso sentir o cheiro da hortelã sem ser atirado em direção ao colo de minha bisavó com suas inseparáveis pastilhas Garoto de hortelã, “muito boas para o meu pigarro”, no bolso de seu vestido. Não posso ver sequer uma carrocinha da Geneal sem me sentir um garoto de calças curtas e camisa listrada, de mãos dadas com meu pai, a caminho da loja da Geneal que havia na rua Barão de Itapagipe, destino certo em domingo de Maracanã. E por aí vai. É a tal festa dos sentidos.

Pois eu ando, assim – como lhes dizer? – cultivando a citada festa a fim de aplacar sentimentos novidadeiros que chegaram há pouco. Tenho, em casa, na Tijuca, minha aldeia, meu pago, duas cuias de porongo, uma bomba, e um bom peso de erva-mate sempre à mão. E eu, por conta de delírios que eu mesmo crio – estarei cometendo um pecado mortal na visão de um gaúcho tradicionalíssimo?! – tenho, entre os dedos, quando dou de matear (passei a gostar imensamente de conjugar este verbo), permanentemente, o corpo de uma mulher. O amargo do mate me remete ao mais doce beijo e sou capaz de ver seus olhos, olhos que ela fecha quando leva a bomba à boca, num espetáculo plástico e visual que se reproduz a cada manhã ou fim de tarde.

Porque eu sou, assim, um sujeito que arde (não concebo a vida sem a ardência que só experimenta aquele que diz em vez de falar). Venta, em mim, o minuano vento quando dou de matear (eu avisei). A chinoca foi mas não foi. E bóiam, na casa e em mim, muito por conta também do encontro inesperado de ontem (aqui), um coletivo de fantasmas vivos e mortos, o cheiro de hortelã da minha bisavó, a voz bem postada da mãe de minha mãe, o som das pedras de gelo do uísque de meu avô, o sorriso que desapareceu mas que se insinua pelos caminhos onde vou, o cheiro de mofo dos ternos do meu tio Beneval, as bolinhas dos vestidos de minha tia Idinha, e eu faço o Benjamin sorrir nos meus braços, e eu canto pra Isabel, e eu encontro o Henrique na praia e pergunto sobre meu carro de estimação que dei a ele, e ele tem as mãos entre as mãos da Rebeca, e eu me transformo em pai dos dois, e eu sou um careta, e eu vejo imaginários maços e maços de Shelton Light que papai comprava, todas as manhãs, no botequim da General Canabarro, e eu sinto medo quando mamãe se atrasa pra me pegar na escola, e eu sinto medo, e eu sinto medo, e os medos se esvaem quando avanço no tempo, e eu entorno mais água morna na cuia que aprendi a dominar e sou eu mesmo que me derramo pro fundo do porongo, e ouço discursos inflamados de Leonel Brizola, e eu tenho o lenço vermelho de maragato no pescoço, e eu me vejo caminhando na Schiller que não faz esquina nem com a Professor Brandão e nem com a Dias da Rocha Filho, mas com a Haddock Lobo, e dou voltas redondas em torno de mim mesmo, e volto pra superfície da cuia, e vazo em direção aos meus dedos, e meus medos, e meus medos, e meus segredos, e meus segredos, e enquanto a cuia não ronca, como ronca a cuíca – não de fome! – eu não sossego. E eu morro de orgulho de mim mesmo.

Sou eu, a esmo, abrindo de novo os olhos e tomando um violento susto diante da percepção de que estou vivo. E aprendendo, cada vez mais, a lidar com os fantasmas, deuses e demônios que moram em mim.

Até.

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ARREMESSO AO PASSADO NO CENTRO DO RIO

Eu retomo hoje – já havia retomado, é verdade, mas o coração tem razões que a própria razão desconhece, e eu me perdi, ou melhor, eu me esqueci de que precisava vir ao balcão do Buteco lhes fazer minhas ordinárias confissões – minhas atividades por aqui. Eu ia, eis a verdade, lhes contar sobre outro assunto que não o que me traz agora para diante do monitor. Acompanhem meu raciocínio.

Escrevi aqui que “uma criança que teve um tio chamado Beneval não pode – não pode mesmo – crescer como as outras.” (leiam aqui dois textos sobre o tio Beneval para pescarem o espírito da coisa).

Meu tio Beneval, casado com minha tia Linda, irmã de minha avó Mathilde, morreu há muitos anos (eu ainda usava calças curtas quando ele foi oló). Tio Beneval e tia Linda tiveram dois filhos, Maria Vitória e Alexandre. Ela, minha madrinha a quem não vejo há mais de – o quê?! – 30 anos (um pouco mais, um pouco menos do que isso). Ele, idem.

É sobre o Alexandre que quero lhes falar.

A imagem que tenho dele – ou que tinha, vocês já vão entender – é a de um homem novo, barbado e cabeludo (cabelos compridos, fartos).

Pois bem. Caminhava eu, há pouco, voltando do prédio do Ministério Público em direção ao escritório, quando na esquina da rua da Quitanda com a São José (dei uma passada numa lanchonete para comprar um suco) ouvi:

– Edu! Edu!

Estaquei e olhei à minha volta. Vi um homem vindo em minha direção. Apressando o passo, se aproximando, disse:

– Eduardo Goldenberg?

– Eu.

– Sabe quem eu sou?

O “sabe quem eu sou?” foi a senha para o início da viagem, do abrupto arremesso em direção ao passado. O homem diante de mim não era um homem novo, não era barbado, não era cabeludo, não tinha cabelos compridos, fartos, sequer tinha cabelos, aquele homem. Eu estava diante de meu tio Beneval, cuspido e escarrado (troço impressionante, faço questão de lhes dizer). Alto, magro, rosto comprido, careca, era meu tio Beneval redivivo. Fui preciso do início ao fim na resposta:

– Acho que sei quem você é. Tio Beneval!

Riu, o Alexandre, a quem eu jamais reconheceria não fosse a semelhança aguda, agudíssima, com seu pai. Estendeu-me a mão, trocamos duas dúzias de palavras incapazes de unir o tempo e ele não desconfia o que vivi naqueles dez minutos. À minha volta (e eu era pequeníssimo, estava de calças curtas e camisa listrada), minha bisavó, minha avó Mathilde, tia Linda, minha madrinha, mamãe e papai, Fernando ainda bebê, eu ouvindo o som da roda do meu Velotrol riscando o chão de cimento da vila, sentindo o cheiro do bolo que saía quente do forno da cozinha da casa da tia Linda, meus primos Max e Ana Paula (Adriana ainda não havia nascido), e eu disse um sem-fim de frases desconexas. Por razões absolutamente incompreensíveis eu contei sobre a Dani (e ele já sabia, ele me lê, vejam vocês!), contei que ainda corto o cabelo no Salão América, a poucos metros do prédio onde moravam tia Linda e tio Beneval, seus pais, contei orgulhoso que o Fefê está na Petrobras, que o Cristiano trabalha na Vale, não disse coisa com coisa, falei mal do Deivid e do gol mais perdido da história dos campeonatos cariocas, perguntei pela tia Noêmia, senti minha avó fazendo festinha no meu rosto, contei que meu Carnaval havia sido fabuloso, que eu saí de Vilma Flinstones no Bola Preta, e quando nos despedimos ainda fiquei alguns minutos parado na esquina, como uma piorra, esperando que todos os fantasmas retomassem seu curso, seu rumo, até que eu mesmo me refizesse do tranco que é um inesperado arremesso desses, em direção ao passado.

Até.

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A ESPINHA DAS NOSSAS MONTANHAS

Não há uma única vez em que eu esteja assistindo ao pôr-do-sol e que eu não me lembre dos versos de Chico Buarque:

“O poente na espinha das tuas montanhas quase arromba a retina de quem vê”.

E mais recentemente, dos versos do Chico Bosco:

“Quando escurece e desce a lava
Sobre o morro Dois Irmãos
Brilha a montanha, cravejada
De uma estranha ilusão
No Corcovado, bóia o Cristo
Levitando contra o céu
Tudo é febril
Tudo quer ser
Tudo lateja

Todas as tardes, pouco antes
De se despedir o sol
O mar acende, prateado, quase glacial
Sou atraído pelo infinito, é doce, irmão, morrer no mar
Morrer no mar
Morrer no mar
Tenho vontade de esquecer de mim
E nesse instante me apagar
No branco sal do mar”

Pois estava eu, na quinta-feira da semana passada, já me preparando – corpo e alma – para o Carnaval, desde cedo, na praia de Ipanema, gozando dessa delícia que é a gazeta num dia útil de trabalho. Mas eu mereço, era o que eu repetia, de mim para mim, a todo tempo.

E eu me preparava para viver a minha primeira experiência de inversão do Carnaval de 2012. Eu queria assistir o ocaso do sol para que eu mesmo renascesse, reverdecesse, diante da espinha das montanhas desse Rio de Janeiro que – me perdoem a falta de modéstia… – não cansa de arrombar a retina de quem o vê de mais perto.

E o pôr-do-sol na praia de Ipanema é, dia após dia, um espetáculo único, específico, como uma impressão digital feita de nuvens, de cores, de sombra e de luz, impregnado pra sempre nos olhos das privilegiadas testemunhas diante do poente.

E nessa quinta-feira, como no verso-profecia do Chico Bosco, o mar prateou – quase glacial. O céu ganhou cores inimagináveis, que se reproduziam em mim, que iam do azul-mais-claro ao azul-mais-denso. Da nuvem mais branca, mais clara, à mais dourada, à mais escura, reprodução mágica do relevo de rocha das espinhas dilatadas boiando sobre o espelho do mar.

Deu-se ali, meus poucos mas fiéis leitores, o primeiro indício de que viria o milagre provocado pelo deus maldito que pousaria nas ruas da cidade em menos de 48 horas. Quando ouvi aquela voz, bem de perto, me dizendo um “obrigada” meio sem-jeito, como se fora eu o autor daquele espetáculo de mil cores, fiz força pra não dizer um “de nada” que me daria ares de insanidade e de soberba. Quase fui traído por conta da confusão e da profusão que se repetia em mim. O sol morria, diante de nós. E só eu sabia, só eu desconfiava, que ali, naquele começo de noite, eu recomeçava a nascer – ou percebia os movimentos que prenunciavam meu renascimento.

Até.

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IMORTAL VITÓRIA DA ILUSÃO

Eis que chegamos ao final do Carnaval 2012, e retomo hoje as atividades do Buteco, absolutamente refeito e renovado pelo deus maldito que rege a festa de Momo – o Carnaval cumpriu, integralmente, seu papel milagroso, através do viés dos ventos sagrados e profanos que sopram nas ruas durante os quatro dias de folia, me fazendo experimentar, durante 96 horas, um turbilhão de emoções que me forjaram a alma – renasço outro. Fui o emocionado à meia-noite de sexta-feira quando abri o espumante pra celebrar os primeiros minutos de Carnaval ao lado de três moças queridas que trouxeram, cada uma à sua moda, cores novas pra minha festa íntima e privada. Fui Vilma Flinstones durante o Bola Preta, “o menino é a menina”, apud Aldir Blanc, moldado por mãos carinhosas que conduzi ao longo da Rio Branco, quando mais de dois milhões de pessoas testemunharam o que estou cansado de saber e de repetir: o Cordão da Bola Preta é a cidadela que mantém acesa a chama da cidade mais linda do mundo. Ali, durante a procissão de quase 2 quilômetros percorridos em pouco mais de 4 horas, o homem se entrega de corpo e de alma à brasa viva que vai fazê-lo capaz de suportar os 364 dias que separam uma saída do Bola Preta do ano seguinte. Só quem já ouviu os primeiros acordes de “quem não chora não mama / segura, meu bem, a chupeta / lugar quente é na cama ou então no Bola Preta”, há de compreender o que digo. Varei a madrugada de sábado para domingo a fim de desfilar no Império Serrano e um acidente com a sandália a poucos minutos de eu entrar na avenida me impediram de defender a Serrinha da vilania da LESGA. Não lamentei, voltei a pé pra casa e já amanheci crioulo no Cordão do Boitatá, na Praça XV, num baile animadíssimo que, a despeito da jam session que vira-e-mexe era promovida no palco, me fez seguir comungando ao longo da “missa campal do povo brasileiro” apud Aldir Blanc de novo. Domingo e segunda-feira foram dias de fazer minha estréia no Sambódromo, para o desfile do Grupo Especial, e me comovi feito o diabo vendo a Vila Isabel fazer mágica na avenida. É preciso agradecer à generosidade desse casal tão querido que nos proporcionou esse privilégio, Edu e Renata. Muita praia, muito dengo, muita Smirnoff Ice (arma perfeita pra combater a incontrolável vontade de fazer xixi provocada pela cerveja!), muito chamego, muita rouquidão, muita dor no corpo, muita sede, muita fome, muita saudade, muito tesão, muita boniteza, muito uísque em casa, e um desagüar perfeito na Quarta-Feira de Cinzas para a mais-que-tradicional Feijoada da Apuração, na Mansão dos Zampronha, que celebrou, nesse Carnaval de 2012, o privilégio que tantos tiveram com tantos anos de convívio com a Sorriso Maracanã. Foi profundamente emocionante ver tanta gente tão querida vestindo a camisa que ficou tão bonita quanto o sorriso mais bonito do mundo.

De pé, diante do balcão imaginário do Buteco, agradeço a cada um dos que lá estiveram e dos que, não podendo ir, deram, de alguma forma, o ar da graça. Foram unânimes o sentimento e a certeza de que a festa aconteceu exatamente da maneira que a Dani gostaria. E no meio da tarde, a consagração da Unidos da Tijuca, campeã do Carnaval 2012, com meu Salgueiro em segundo lugar. É a Tijuca, meus poucos mas fiéis leitores, fazendo cada vez mais bonito.

E por fim, para não tornar modorrento demais meu retorno ao Buteco, meu melhor carinho ao trio que me fez o Carnaval mais bonito, mais bem-humorado, mais cheio de amor e festa: minha comadre Stê e Gra, e Flavinha.

Até.

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EVOÉ, MOMO!

Meus poucos mas fiéis leitores, é chegada a hora. Interrompo hoje, até o final do Carnaval, minhas incursões ao balcão virtual do Buteco a fim de que eu possa me entregar, de corpo e alma, à experiência sacrossanta e milagrosa do tríduo momesco. E vejam vocês, que me acompanham aqui já há algum tempo, que sigo vivendo e encarando esse permanente desafio de enfrentar as grandes datas, os grandes momentos e as grandes efemérides dotado de uma coragem que eu – é a primeira confissão que faço hoje – desconhecia possuir. Deixei o escritório ontem à noite, tarde da noite, já com o nó da gravata desfeito e com um tremendo nó que me sufoca o peito que se apertou de jeito quando atravessei, a pé, a fim de tomar a condução, a avenida Rio Branco que há de me ver no sábado, já no turbilhão da procissão da missa campal que corre aquele chão há muito fevereiros.

Quero, pois, desejar a cada um que me lê, um grande Carnaval (se você for de Carnaval, evidentemente). E que não esqueçamos nunca que o Carnaval, ao contrário do que pregam os neófitos, é uma festa que celebra a tristeza pela faceta mais bonita que a tristeza tem. É uma festa de inversão, e é preciso que tenhamos disposição e coragem (olha a coragem aí de novo!) pra esse mergulho que se inicia na madrugada do sábado pra só terminar na noite da Quarta-Feira de Cinzas. Emoção à flor da pele, sensibilidade exacerbada, sangue, suor e lágrimas riscando o chão com a pemba invisível e imaginária. A experiência, em vida, da vivência da morte. Para que renasçamos todos, renovados e dispostos aos enfrentamentos do dia-a-dia modorrento e formal, por conta do milagre que o Carnaval nos deixa ao alcance das mãos, ano após ano.

Evoé, Momo!

Até.

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É MELHOR SE LEVANTAR!

Eu tinha pouco mais de dois anos de idade. Carnaval de 1972. Não sou capaz de lembrar de rigorosamente nada desse período. Mas sou capaz de jurar que lembro de mamãe cantando esse samba, do Império Serrano, pra me fazer dormir (e vocês tirem suas conclusões, se é possível que eu tenha crescido um homem 100% normal tendo sido ninado com samba-de-enredo!) – eu, aqui, em Uma noite imperiana, já contei um pouco dessa história pra vocês.

Tenho, do Carnaval, incontáveis lembranças. Fantasiava-me de índio, ia aos bailes infantis, e me é também, muito viva, a lembrança dos desfiles das escolas de samba pela TV. Papai e mamãe recebiam uma penca de amigos em casa, almofadas espalhadas pelo chão, o desfile ainda era na avenida Presidente Vargas e durava uma noite inteira, até a manhã do dia seguinte, e eu me lembro – lembro, lembro! – de ouvir mamãe cantando Carmen Miranda, o enredo do Império Serrano em 1972, escola do coração de meu velho pai.

Hoje, a quatro dias do sábado de Carnaval, ápice dos ápices da grande festa, acordei com esse samba ecoando na cabeça, samba que embalou o título da escola da Serrinha naquele longínquo 1972 (eu disse longínquo e no entanto 1972 está aqui, ao alcance das minhas mãos, à vista dos meus olhos que têm embaçado à toa).

Achei, há pouco, esses três registros que se seguem, todos de 1974. Eu, meu irmão, minha avó, minha mãe, meu pai – e se eu não estiver enganado as duas últimas fotos foram feitas durante um baile infantil no America, na Tijuca. É esse mesmo moleque que irá jogar-se nos braços do Cordão da Bola Preta, na manhã do sábado de Carnaval. Noutros braços, em busca de outros traços, com mais-que-trôpegos passos a fim de atingir a redenção sacrossanta que o Carnaval, a todos os que o compreendem, reserva.

E com vocês, meus poucos mas fiéis leitores, o samba do Império Serrano de 1972.

Até.

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ESSE É O SOM DA MINHA TERRA

Eis-me de novo, hoje, recorrendo aos versos daquele que considero o maior dentre nossos letristas (e vejam que somos uma nação farta nesse quesito!): Aldir Blanc. Aliás, breve pausa: dá-me um prazer tremendo espalhar as letras de Aldir por aí (leiam Aldir Blanc e o ECAD, aqui). Não é raro que alguém me escreva pra dizer – “oh, eu não sabia que essa letra era do Aldir…” – e está aí, nessa revelação, o nascedouro desse prazer. O letrista, o poeta, o “ourives do palavreado” (apud Dorival Caymmi, sobre Aldir), a antítese da estrela que sobe ao palco, que grava o disco, que faz shows pelo mundo afora, é, nesse ponto, um injustiçado. E que seja, então, o Buteco, humilde trincheira com o objetivo de expôr a genialidade do caboclo.

É que, como eu lhes disse ontem, aqui, vem chegando o Carnaval – faltam agora apenas cinco dias, pouco mais de cem horas – e a minha ansiedade vai tomando proporções incomensuráveis. Não vejo a hora de mergulhar como um louco na espiral curativa dos cordões e dos blocos, misturado à ralé, à gentalha, aos prisioneiros, aos exus catimbeiros a fim de que a forja colorida me remodele a alma que me vaza em forma de sangue há muito tempo – e que quase me cega.

Com vocês, meus poucos mas fiéis leitores, na voz da Clarisse, do disco Novos Traços, Cravo e Ferradura, de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc.

Primeiro foi um som leve
de peneira peneirando
o mar de idéias de um louco,
a água dentro do coco,
foi crescendo entre palmeiras
e tambores batucando.

Um balbucio, um rugido
um som de tragédia e circo,
um som de linha de pesca,
som de torno e maçarico.
Veio um som de escavadeira,
bate-estaca, britadeira,
um som que machuca e lanha,
um som de lata de banha.

Som de caco, som de tralha,
era um som de mutilados
quebrando gesso e muleta,
um som de festa e batalha.

Ah, era um som que me orgulhava,
som de ralé e gentalha,
era o som dos prisioneiros,
som dos exus catimbeiros,
ai!, era o som da canalha:
trovão, forja, baticum,
som de cravo e ferradura
Dez mil cavalos de Ogum!

Esse é o som da minha terra:
som de andaime despencando,
de encosta desmoronando,
de rios violentando
as margens do meu limite.

Samba, samba, samba,
pulsas em tudo que existe,
vazas se meu sangue escorre,
nasces de tudo o que morre.

Até.

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DAS CINZAS À RESSURREIÇÃO

Não é a primeira vez e não será a última que recorro aos versos de meu orixá vivo, Aldir Blanc, para compreender a vida, seus movimentos e meu momento. É que vem chegando o Carnaval e eu ando, assim, comovido feito o diabo. Fiz minha estréia hoje no Gigantes da Lira (fotos aqui), um amistoso, é verdade, porque a coisa começa à vera, mesmo, no sábado de Carnaval, com a saída do Cordão da Bola Preta, como lhes contei aqui. E durante o desfile de hoje, e o Gigantes da Lira é um bloco infantil, a criança é sua tônica, fui de novo uma criança no meio de tantas crianças, ansiosa pelo milagre do Carnaval. Sim, meus poucos mas fiéis leitores, porque eu creio no milagre do Carnaval – e mais do que crer, eu preciso dele!

O Carnaval – relicário de uma tradição – é a vitória da ilusão, e eu preciso, durante o tríduo, ser bordadeira, ser carpinteiro, ser escultor e artesão para armar um novo homem, à moda do Rio de Janeiro que se renova e se reinventa a cada golpe que recebe. Preciso ser ainda mais passional do que já sou, ter mesmo veias de serpentina, alma de isopor e purpurina para galgar os degraus que me levarão, após a missa campal do povo brasileiro, ao altar profano a fim de merecer a hóstia consagrada e a dádiva do milagre que há de acontecer com a intervenção do deus maldito – das cinzas à ressurreição.

Deixo com vocês, na voz de Beth Carvalho, melodia belíssima de Moacyr Luz, a sabedoria do bardo tijucano, Aldir Blanc. Há de ser – será! – uma profecia.

Carnaval
Relicário de uma tradição
Imortal vitória da ilusão
Carnaval, coração…
Bordadeira e carpinteiro
Armam outro Rio de Janeiro
Escultor, artesão
Carnaval passional:
Veias de serpentina
A alma de isopor e purpurina…
Carnaval, missa campal do povo brasileiro
Onde a hóstia sagrada é o pandeiro
Carnaval, celestial império do trambique
Onde o crente idolatra o repique
Rio que passa e que não passou
Chama devassa purificou
O meu sentimento na contradição de um ritual
Carnaval anormal:
O menino é menina
E o doutor Juiz é a bailarina…
O carnavalesco é um deus maldito
E isso é que é bonito: recriar a criação
Pamplona, Julinho, Joãozinho Trinta dão a pinta
Que nada se acaba quando é feito por paixão
Arlindo Rodrigues, Fernando Pinto, isso é lindo!
– das cinzas à Ressurreição!

Até.

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FALTAM 10 DIAS PRO BOLA PRETA

De hoje, quarta-feira, 08 de fevereiro de 2012, a sábado são apenas dez dias até o ápice do Carnaval carioca, o desfile do Cordão da Bola Preta. Quem me lê sabe: trato o desfile do Bola Preta com a ansiedade de um réveillon. É, definitivamente, o ponto do alto do tríduo momesco, e eu já não consigo (como se a ansiedade não me fosse uma companhia constante) esconder, justamente, a dita cuja. Já conto as horas, já planejo a sexta-feira, já penso na garrafa de champagne que vai pro gelo pra ser aberta à meia-noite, e há, em mim – em mim, em mim, dentro de mim – todo o desenrolar de um filme com cenas dos meu melhores momentos no Bola Preta, bloco-procissão que me redime, que me imola, que me consome, que me consola, que me renova, que me transforma, que me agonia, que me transborda.

Vejam vocês, uma coisa (é que tenho, além de tudo, aguda saudade de Fernando Szegeri, na intenção de quem segue esse rabisco de hoje).

Estamos no ano de 2004.

Desfilávamos no Cordão do Bola Preta (já não me recordo se a foto é do domingo, no Cordão do Boitatá… acho que é). Eu e Szegeri encontramos, no Largo de São Francisco, com a Betinha. E o turbilhão que me invade também me confunde (acho que essa foto foi feita em 2004, repetindo uma pose de anos antes). Sei que quando Fernando Szegeri bateu os olhos na Betinha pela primeira vez (já sob a mira da pistola do Flavinho), disse:

– Minha musa… – e encheu os olhos-poço d´água.

E disse mais, meu mano:

– Edu, tire uma foto, por favor… Meu pai não vai acreditar que conheci uma moça tão bonita, mais bonita que minha pipa de sete cores que ganhei  do meu avô, quando menino.

Passaram-se os anos, veio o ano de 2006, a espera pelo Carnaval de 2007.

Enquanto eu esperava o Bola Preta, já em dezembro, Stê e Szegeri esperavam, em São Paulo, com ainda mais ansiedade, pela Rosa.

E a Rosa veio – antes do Bola Preta.

Deu-se a bulha na cabeça do meu irmão. A filhota pequena, meses de vida, não permitiria sua vinda para o Rio de Janeiro, interromperia uma tradição de mais de duas décadas, e trocamos incontáveis e-mails, ele se lamuriando de lá, eu prometendo a ele sua presença no glorioso cordão. Situação, convenhamos, non sense demais. Era mais ou menos assim:

– Ah, Edu, já me convenci. Não estarei no Bola Preta no sábado.

– Não se preocupe, querido. Você vai desfilar.

Ele, de lá, redarguia:

– Não adianta, mano… Já falei com a Stê, vou mesmo ficar por aqui.

E eu me despedia:

– Até o sábado de Carnaval.

Eis que veio a sexta-feira e eu vivi, talvez pela primeira vez, de forma bruta, a experiência da morte: dormi Eduardo Goldenberg e acordei Fernando Szegeri.

Repeti, na Cinelândia (sempre sob a mira da pistola do Flavinho), o gesto de anos antes.

Pus o chapéu de palha, olhos-poço, a camisa do Palmeiras, a barba amazônica, os óculos idênticos. Eu era, na íntegra, Fernando José Szegeri.

E deu-se o milagre do Carnaval.

Contou-me, o bom Szegeri, à noite, por telefone, que ele recebera uma ligação de um amigo seu, de São Paulo, diretamente do Cordão da Bola Preta. Disse, seu amigo, aos gritos:

– Pô, Fernando! Te vi de longe, te vi de longe! Você não está com a camisa do Palmeiras? Acabou que você veio?

Até.

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OS PSICOTRÓPICOS

Já lhes contei, em mais de uma oportunidade, sobre os métodos dos quais meu pai se valeu durante minha infância e adolescência para manter-me afastado da maconha e de outras drogas ilícitas (aqui, em A Marcha da Maconha e aqui, em A pedagogia do meu pai). Teve, é preciso que seja feito o registro, êxito integral em sua empreitada. Nunca, nunca!, pus a boca naquela guimba nojenta, mesmo sofrendo, principalmente durante a adolescência, preconceitos brutais por parte da turma – a turma toda fazia fumaça. Pus, é verdade – sou preciso do início ao fim -, sim… algumas poucas vezes, já depois de velho, e tive sempre a pior das relações com o psicotrópico. Bastava um trago – que eles chamam de tapa ou pauzinho, vão vendo o nojo que é isso! – e eu dormia coisa de doze, quatorze, dezesseis horas. De certa forma eu invejava aquelas pessoas que, sob o efeito da aliamba, viam discos voadores, conversavam com objetos os mais variados, gargalhavam por qualquer razão ou assumiam personalidades absolutamente díspares das que apresentavam de cara limpa. Eu, quando experimentei o umbaru pela primeira vez, tive um surto psicótico tão intenso – seguido de profundo sono – que a cara que me estendeu o psicotrópico jurou, dezoito horas depois, que nunca mais sequer fumaria diante de mim.

Mas não é disso que quero lhes falar. Quero lhes falar do PSOL.

O PSOL tem, entre suas bandeiras, a organização da tal Marcha da Maconha. E dia desses, bebendo meu café diante do balcão do Café Gaúcho, avistei três jovens (que mais pareciam, pela aparência, mendigos arados há muitos dias) panfletando (e como conjuga, o PSOL, o verbo panfletar) em prol da tal marcha. Sabe-se lá por qual razão, vieram os três andrajos em minha direção. Estenderam-me um panfleto:

– Obrigado. – e virei de costas.

Uma mocinha (eram dois rapazes e uma moça) pôs as duas mãos sobre o balcão, ao meu lado, e eu tive um misto de piedade e nojo. Suas unhas pareciam garras, e era visível a lama, a crosta, a sujeira por baixo do que um dia foi unha. Disse-me:

– Tu não pode nem ler essa parada? É pra conscientizar a burguesia a respeito da liberação da maconha…

Pedi outro café e pus a mão no nariz em sinal de asco.

Disse um dos militantes:

– Deixa ele, gata. Tu não vê que é um caretão?

Cresci. Diante daquele elogio – sou um careta, sou uma múmia, sou o anti-militante-do-PSOL – sorri (sem, entretanto, destampar o nariz). Sorri e tomei o rumo do meu escritório, a poucos metros do Café Gaúcho.

Saíram, os três, e saíram gritando “Eu sou maconheiro com muito orgulho, com muito amor” (e se você acha que isso é impossível, que nenhum idiota diria isso em público, veja isso aqui).

O que sabem, esses meninos e meninas do PSOL, sobre o amor para declarar amor à condição miserável de maconheiro? Porque não são, esses militantes do PSOL, usuários da maconha (conheço vários, conheço muitos, e nenhum deles, do meu círculo, vale-se dessa denominação degradante e reles). Deu-me, aquela cena (plasticamente suja, sonoramente repugnante), novamente, um misto e piedade e nojo. Não, não. Não me deu nojo. Deu-me apenas pena. Uma pena infinita. Santa, eu diria. Quem são os pais – era o que eu me perguntava, lembrando da pedagogia de meu pai – daqueles meninos e meninas?

Até.

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