Arquivo do mês: janeiro 2011

O ASCÂNIO

O Ascânio sofre – é como ele sente o troço – desde que se entende por gente. Desde o colégio que é sempre a mesma lenha. Basta ele dizer o nome – “Meu nome é Ascânio” – e dá-se, até hoje, uma cena: o interlocutor ri, faz uma máscara de espanto, repete o nome em tom de indagação, e isso – é ele mesmo que conta – fez dele um homem reprimidíssimo, vá entender. Ascânio tem 52 anos de idade e herdou do pai a tinturaria que mantém a pleno vapor na região da Praça da Bandeira. Tem seis funcionários, sendo que dois fazem o serviço de coleta e entrega do material a ser lavado. É casado com a Dorotéia, e ele acha, quando pensa no assunto, que escolheu a mulher pelo nome. Queria, vá entender, uma mulher com um nome tão estranho quanto o dele. E o que faz a Dorotéia?

– Porra nenhuma! – é a resposta de sempre, dada a quem pergunta.

Semana passada, voltando da tinturaria, deparou-se com a seguinte cena: a mulher desmaiada no chão. Era, além de tudo, epiléptica. Pensou alto:

– Daqui a pouco a vaca levanta.

Verificou, com nojo, abrindo sem cuidado a boca da coitada, a língua da mulher. Normal. Havia um pouco de baba no tapete, e ele pensou, alto de novo:

– Que nojo.Foi ao banho. Ligou o radinho de pilha, ouviu a resenha esportiva, vestiu o pijama e voltou à sala. Dorotéia na mesma posição.

– Será que morreu? – perguntou em direção ao espelho sobre o bufê.

Deu um chute, de leve, nas pernas da mulher.

Ela grunhiu.

– Levanta, mulher. Tô com fome.

Era mentira que ela não fazia “porra nenhuma”, como ele espalhava aos quatro ventos nas dezenas de bares que freqüentava, todos ali na região. Dorotéia cozinhava bem pra burro. E mantinha uma rotina, com a intenção de agradar o marido por quem tinha – eis a verdade que o sujeito jamais reconhecera – verdadeira adoração: assistia a todos os programas de culinária ao longo da manhã e da tarde a fim de escolher o cardápio do marido, que almoçava e jantava em casa todo santo dia.

Ela grunhiu de novo.

Sobre a mesa ele viu o caderno de receitas mantido pela mulher – um deles – e os ingredientes do suflê de bacalhau que, foi o que ele imaginou, seria feito para o jantar. Foi à cozinha, mandou o louro calar-se – tinham um louro – e viu, sobre a pia, a peça de bacalhau dessalgando. Ficou com a boca cheia d´água. Espiou pela porta, a mulher na mesma posição.

– Chamo ou não chamo a ambulância, louro? – em tom de blague.

O louro, mudo.

Pôs o dedo indicador na água e lambeu o dedo. Pensou no quanto de ódio sentia pela vida modorrenta que levava. Transtornou-se, e nem ele mesmo entendia o porquê de sua inércia diante do corpo inerte da mulher. Foi ao quarto dos fundos. Pegou um do cabides de arame, dos antigos, antes da aquisição das centenas de cabides plásticos, mais modernos, para o próprio negócio. Foi à sala. Olhou bem nos olhos da mulher, abertos, e ela arfava e gemia o nome do marido provocando nele uma sensação inacreditável, entre o prazer e o medo, entre o ódio e a piedade, entre o trauma e a superação. Enforcou a mulher com o arame do cabide e a viu enrubescendo, esbugalhando os olhos, mordendo a própria língua, que foi inchando, e deu tantas voltas no arame do cabide que sentiu ficar por um fio o ato de cortar-lhe o pescoço. Dorotéia morta.

Foi ao quarto. Tirou o pijama e escolher a melhor roupa. Vestido, procurou na gaveta a fotografia que mantinha guardada, de seus pais. Sempre ouvira do pai:

– Tua mãe que escolheu teu nome, Ascânio.

Sentou-se no sofá diante do corpo da mulher. Ficou ali, uns bons minutos, olhando para os pais. Rasgou a fotografia ao meio, a mãe separada do pai depois do gesto do filho. Fez um cone com a metade que trazia o pai. Enterrou a fotografia, enrolada, na boca babada da mulher morta. Achou graça. Gargalhou.

Foi à cozinha. Abriu a geladeira. Serviu-se de uma dose de vinho tinto, desses de garrafão, bebida de todas as refeições, recomendações médicas. Arrotou, foi à sala e arrancou uma folha em branco do caderno de receitas da mulher. Escreveu, sem pressa: “Ascânio é a puta que te pariu”, e meteu o papel no bolso do paletó (estava de paletó).

Voltou à sala e atirou-se, sem titubear, da janela do sexto andar.

Morreu, é evidente.

Mas morreu nos garfos do portão de ferro da portaria. Caiu de bruços, rasgado por quatro dos garfos do portão, perfurado – Ascânio foi ao chão.

Bombeiros serraram o portão, e foi varado por quatro barras de ferro que Ascânio foi pro IML.

A primeira coisa que o legista fez foi verificar os bolsos do infeliz. Leu, em voz alta, o que nem poderia ser chamado de bilhete que estava sujo de sangue no bolso do paletó. Quando leu “Ascânio é a puta que te pariu” teve a impressão, nítida, de que vira o cadáver sorrir.

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VARANDÃO SONORO DOS SÁBADOS

Muito suíngue na manhã desse sábado de sol, arrombando a retina de quem está no Rio. Fala-se em Rio de Janeiro, fala-se em sol, pensa-se em praia. Nada contra a praia, mas eu, do alto de meus 41 anos, acho mais graça, hoje, em curtir um sábado desses na Tijuca, minha aldeia. Cachoeira pra poucos, brotando da Floresta da Tijuca, é sempre minha pedida. E eu, que moro na Haddock Lobo, quase na esquina da Matoso, rasgo a Conde de Bonfim em direção ao alto da Tijuca com Tim Maia, no máximo volume, cantando uma das mais famosas esquinas do bairro onde nasci, onde fui criado e que há de me ver morrer.

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O VASCO NÃO PODE EURICAR

(pra meu pai, Isaac, pra Aldir Blanc, Mariana Blanc e Milena Blanc)

Sou, vocês estão cansados de saber, Flamengo há não sei quantas encarnações. Nasci, dessa vez, em 69, em ninho de vascaínos. Vô paterno vascaíno, o velho Oizer (aqui), pai vascaíno, o velho Isaac (que passou pela tristeza de assistir, in loco, à minha conversão, aqui), um irmão que seguiu pela trilha cruzmaltina, amigos mais-que-queridos que dividem a mesma crença, uma comadre que tem ataques apopléticos a cada jogo do time da colina e uma afilhada que tem surtos de ai-meu-Deus a cada derrota. Como se não bastasse, tenho pelo Vasco (e me é evidente que a raiz disso tudo está nas incansáveis tentativas empreitadas por meu pai para me ver vascaíno como ele), intensa admiração (aqui, falo sobre isso). Sou – e já disse isso reiteradas vezes – um homem em estado de profunda admiração diante da torcida cruzmaltina. É, de longe, a mais carioca de todas. A mais cafona – e tenho, pela cafonice, uma atração indizível. E a fase pela qual passa o clube de São Januário (eis o que quero lhes dizer) tem me deixado, saquem a ironia, em estado de profunda preocupação.

Dividi, durante anos, com meus mais-chegados, a indignação por conta da direção do clube, nas mãos sujas do sujo Eurico Miranda. Trocava telefonemas extensos com o Aldir, por exemplo, que tinha ataques de cólera por conta do modus operandi do canalha. Até que, muitos anos depois, muitos anos depois de intenso locupletamento, assume o clube o ídolo Roberto Dinamite.

Por não ser vascaíno, desconheço o que se passa em São Januário. Não sei a quê atribuir a má-fase do Vasco, que ainda não pontuou no Campeonato Carioca de 2011. Sinto, entretanto, o cheiro do enxofre, a proximidade do dedo sujo do ex-dirigente que – quem duvida? – gargalha, com um de seus fétidos charutos entre os dedos, a cada derrota do Vasco da Gama.

É o que queria lhes dizer: solidarizo-me com os vascaínos. Torço pela recuperação do clube, desde que ela não comece no próximo domingo, quando teremos o primeiro Flamengo e Vasco do ano! Torço para ver de novo a cafonalhada em festa, a portuguesada eufórica, Dulce Rosalina balançando suas pulseiras no Orum, meu avô Oizer podendo dizer de novo que o Vasco é “o melhor time do mundo”, e o Roberto Dinamite tendo êxito na condução dessa virada.

Até.

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AS COISAS MAIS SIMPLES DESSA VIDA

Hoje acordei com o Buba na cabeça, sabe-se lá o por quê. Conheci o Buba em meados do ano 2000, quando eu era sócio de um bar em Vila Isabel e resolvi fazer acontecer um bloco de carnaval – foi quando nasceu o SEGURA PRA NÃO CAIR, que desfilou em 2001 homenageando Noel Rosa, em 2002 com Beth Carvalho, em 2003 com Martinho da Vila, em 2004 com Aldir Blanc e em 2005 com João Bosco. Todos, inclusive o saudoso poeta da Vila, presentes – diga-se. A bateria do bloco era, digo sem modéstia, a melhor dentre todos os blocos da cidade: simplesmente a bateria da G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel, sempre sob o comando dos mestres Mug e Mariozinho. Era um troço de maluco aqueles 50, 60, 70 componentes da escola fazendo a cadência daquele modestíssimo bloco de esquina. Pois bem. Logo em 2000 conheci o caboclo (abaixo, na foto comigo, tirada em 15 de novembro de 2010 durante roda de samba no ESTUDANTIL).

Um garoto simples, cativante, ficávamos de papo durante os ensaios (do bloco e da escola), dividíamos cerveja, conheci sua mulher – a Lu -, fomos ao longo do tempo costurando os laços que mantêm as pessoas unidas e em 2003, em dezembro, uma surpresa: Buba aparece no bar com a mulher – o finado ESTEPHANIO´S – e eles dão a notícia de que seríamos, eu e minha menina, padrinhos da filhota que estava pra nascer (aqui, em janeiro de 2005, nós quatro, em nossa casa).

Veio 2004 e a Dhaffiny nasceu em pleno Carnaval. Isso são outros quinhentos, não é o que quero lhes contar hoje.

Um certo dia, era um sábado, estrila meu telefone e era o Buba, convocando a mim e à minha menina para uma cerveja, um almoço, em sua casa. Corria o ano de 2004, ainda.

Eles moravam numa casa, logo na subida do Morro dos Macacos, hoje moram num apartamento em Vila Isabel. Chegamos lá, aquela festa de sempre (depois do quase-perrengue de sempre pra atravessar a “cancela” dos olheiros do tráfico), a festa com as meninas, meu compadre me chama pros fundos do quintal. Carregava uma garrafa de cerveja e dois copos. Serviu a mim, serviu-se, pôs a garrafa no chão e me disse de olhos marejados:

– Compadre, passei na prova da COMLURB, cara! – ele tinha feito, semanas antes, prova para o cargo de gari.

Dei-lhe um abraço, dividi com ele a alegria da conquista e disse, em seguida:

– Vamos brindar com as moças lá na sala, rapaz! É uma grande notícia!

E ele me segurou:

– Não! Não! Ainda não!

– Não?

E disse a frase que me fez quase-morrer, ali (lembro-me que, imediatemente, liguei pra meu mano Szegeri, em São Paulo, pra tomar ar, eis que o homem da barba amazônica é dos que me acalmam quando o bicho da emoção me pega):

– Não! Vou buscar minhas roupas só na segunda-feira. Eu quero chegar em casa vestido, compadre, à caráter! – e danou de rir, de olhos cheios d´água.

Até.

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UM GESTO DE REBELDIA

Eu, que à certa altura recebi na testa o carimbo de “polemista”, cravado por ninguém mais, ninguém menos, que Aldir Blanc (e olha que o homem entende de polêmica) – complementado por um “dissidente de si mesmo” – acho que fui mais polemista que nunca quando, em setembro de 2000, deixei uma repórter da TV GLOBO com cara de bunda, ao vivo, depois de gritar o nome de Leonel Brizola em resposta a uma pergunta qualquer (revejam o lance aqui).

Pois na madrugada de segunda-feira, em São Paulo, exerci, de novo, minhas habilidades para criar tumulto. Estava eu na casa de amigos, no domingo, quando desabou uma chuva torrencial sobre a cidade que comemora hoje, ao lado de meu velho pai, seu aniversário. Um de meus anfitriões foi taxativo:

– A que horas é teu ônibus?

– Meia-noite e vinte.

– Tente trocar por uma passagem de navio! – fez a blague.

Às 23h30min partimos em direção à rodoviária (ele, gentilíssimo, ofereceu-me a carona). O trajeto, em condições normais, seria feito em no máximo 20 minutos, mas depois da chuva…

Marginal parada. Ruas cheias. Árvores derrubadas. Até que, depois de uma ginástica sobre quatro rodas, fui deixado na rodoviária faltando 10 minutos para o horário marcado para o embarque. Fui ao guichê da empresa, percebi o tumulto diante dele, e perguntei à funcionária sobre a partida do leito:

– Ihhhhh… – foi só o que ela disse, coçando o ouvido com a tampa de uma caneta Bic.

– Algum problema?

– O ônibus das sete ainda nem encostou…

– Previsão, senhora?

– Sem previsão. Mas eu acho, pelo andar da carruagem, que não sai antes das três… – e checou o cerume na tampa da caneta, arrancado com a unha do polegar.

Bufei. E ela disse, simpática:

– O senhor pode esperar em nossa sala vip… – e indicou-me a direção.

A tal da sala vip nada mais é do que um salão gigantesco com muitas cadeiras e uma TV exibindo um troço qualquer, desinteressante. Fui à mocinha no balcão de mármore:

– Tem algo para beber, senhora?

– Não.

– Para comer?

– Não, senhor.

Bufei de novo. Estendi os olhos pro lado de fora e avistei um único quiosque aberto. Uma fila gigantesca diante do caixa. Desisti. Voltei à mocinha:

– Vip a sala, hein?!

– Que bom que o senhor gostou…

Puxei um cigarro e o acendi.

– Não pode fumar aqui, senhor…

Bafejei a fumaça para o alto, fazendo estilo:

– Encher a porra do rio Tietê, pode?

Silêncio.

– Atrasar a viagem do cliente, pode?

– Fumar é que não pode, senhor.

– Mas eu vou fumar.

Sentei-me e, quando apaguei o cigarro no chão (nem sombra de cinzeiro no ambiente), veio um segurança acompanhado da mocinha do balcão. Ele, um mulatão parrudo, disse:

– Senhor, é proibido fumar em ambiente fechado.

– É?

– É.

– Sei. É proibido também deixar um passageiro sem informações precisas sobre o serviço de transporte contratado. Proibido, também, não oferecer acomodações decentes para um atraso que se desenha gigantesco, sem comida, sem bebida.

– Mas, senhor…

Acendi o segundo cigarro. O mulatão:

– Senhor, vou ter de chamar a polícia…

– Pois não. Estou esperando.

Percebi um cara, perto de nós, sorrindo. Ele apontou pro maço que tinha nas mãos e disse:

– Posso?

Eu:

– Deve.

Em coisa de 15, 20 minutos, mais ou menos uma dúzia de pessoas fumava dentro da sala vip (a bem da verdade, anti-vip).

Vem outro elemento em minha direção (mehor dizer em nossa direção, éramos muitos fumando àquela altura):

– Boa noite, senhores. Sou o gerente da 1001… Os senhores não podem fumar aqui dentro, por favor…

– O senhor sabe a que horas eu embarco? – eu disse.

– Ainda não, senhor…

– Então… Algo para beber? Para comer? – outro que também fumava.

– Infelizmente não, senhor…

– Então eu vou fumar de novo! – eu disse.

Já tinha gente gargalhando, e formávamos uma roda de fumantes.

Um abnegado saiu e voltou com um saquinho de pão-de-queijo, que passou a distribuir.

Alguns (poucos, na verdade) protestavam contra aquela fumaça, faziam das mãos leques abanando em direção ao próprio rosto, outros diziam “vamos chamar a polícia”, uma histérica gritou “sou prima do Kassab!”, e eu estava era gostando daquilo ali.

Às duas da manhã, anunciaram meu ônibus. Parti em direção à plataforma. Fui ao balcão (fumando) e me despedi da mocinha. No caminho, cumprimentei e pedi desculpas ao mulatão (que até achou graça) e diante do ônibus o gerente ensaiou uma ameaça:

– Senhor, serei obrigado a comunicar à polícia que o senhor fumou na sala vip, temos os seus dados na passagem…

E eu disse, já entrando no leito:

– Se o senhor insistir com isso fumarei durante a viagem…

Entrei e nem mesmo vi o coletivo sair da rodoviária.

Acordei no Rio, franca e sinceramente, com a sensação do dever cumprido.

Até.

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>MARIA DE LOURDES E O DELEGADO – V (FINAL)

>

A conversa entre o delegado e Maria de Lourdes foi breve. E foi breve porque Uzeda foi prático. Contou, timtim por timtim, sobre o telefonema que recebera de “uma vizinha”. Disse, com todas as letras, que estava ali apenas para dar uma satisfação ao apelo da senhora que parecera em pânico diante do ocorrido naquela noite na qual os seus patéticos pedidos  – “me chama de assassina!” – assombraram a vizinhança. Disse, mais, que o caso estava encerrado do ponto de vista policial; que não havia prova alguma capaz de fazê-lo reabrir as investigações; que, entretanto, já que ele estava ali, não custava procurar saber o porquê de tão estranho apelo durante a noite. Disse isso sem conseguir esconder o riso que escapava pelo canto da boca. Os olhos do delegado não desgrudavam do corpo de Maria de Lourdes. Ela, por sua vez, deu de chorar. Enxugou a lágrima do olho direito com a mãozinha direita fechada, como se fora um bebê. Fungou. E disse:
– Não sei, delegado… Não sei o que foi que me deu…
E daí vocês todos ficam a pensar: e aí? E aí? E aí?
E aí que nem todo final de história é imprevisível.
Maria de Lourdes continuou a chorar, ajoelhou-se diante do delegado e o delegado pensou “ajoelhou, tem que rezar”.
Foi engolido pela menina. Ergueu-se, depois de uns 15 minutos, ergueu e abotoou a calça, ajeitou o cinto – recusou, com medo do barulho, o convite feito por ela, de boca cheia, “me bate com o cinto, me bate” – e pediu um copo d´água. Ela foi a cozinha, limpou a boca com um pano de prato, e quando voltou à sala trazendo a água, perguntou:
– O senhor falou com o Alexandre sobre isso? Ele ficou muito assustado…
Ele fez um “arrã” durante um gole.
– Ele… ele… ele me acusou de alguma coisa?
– Negativo.
Fez força para disfarçar o alívio que varreu sua coluna.
Ele tomou a direção da porta. E disse, grave:
– Juízo, menina.
Ela piscou o olho, abriu a porta e acompanhou com os olhos o delegado dobrar o corredor para descer as escadas. Foi para a janela.
Viu quando Uzeda surgiu no jardim interno cercado pelas vizinhas em estado de excitação agudíssima. Não conseguiu ouvir nada mas ficou ali, com um sorriso escancarado acompanhando a cena. Ele tomou a direção da delegacia e quando sumiu, na esquina, gargalhou feito Exu Caveira chamando a atenção das condôminas.
À noite, subiu Alexandre, aliviadíssimo.
E é isso.
Há mais, há muito mais para ser contado sobre Maria de Lourdes.
Com o tempo, trago ela de volta pra cá.

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>MARIA DE LOURDES E O DELEGADO – IV

>

Maria de Lourdes abriu os olhos faltando pouco para o meio-dia e assustou-se – eis a verdade – com o cenário que lhe serviu de descanso. Passou a vista na Bíblia Sagrada e a fechou com fúria. Pôs o porta-retrato de volta sobre a cômoda, fez festinha no rosto dos pais, e dirigiu-se ao banheiro para tomar banho. Dormiu nua. Ainda enrolada na toalha foi à sala, recolheu os copos da véspera, deu um jeitinho na casa – tinha horror à idéia de ter uma empregada doméstica – e vestiu-se. “Vou almoçar no Salete…”, pensou alto. Assim que abriu a porta deu de cara com dona Abigail. A imagem daquela moça de saia florida, camiseta de malha branca e chinelos brancos, os cabelos soltos e sem sutiã, fez tremer a vizinha, que disse:
– Parece que o Bigode tem um recado para você. – o tom era de ameça.
Maria de Lourdes, cheirando a alfazema, cabelos ainda molhados, desceu as escadas sem uma resposta.
Ao chegar à portaria – e ela passaria pelo porteiro sem dizer um “a” – Bigode levantou-se. Entregou o cartão que guardava no bolso e disse, olhando para o chão:
– O doutor delegado esteve aqui hoje cedo, dona Maria de Lourdes. Pediu que a senhora entre em contato com ele.
– Obrigada, Bigode. O Alex está aí?
– Foi à praia, dona Maria de Lourdes.
– Obrigada.
Tomou a calçada, virou à direita e, ao dobrar a esquina da Afonso Pena, carregou imaginariamente cerca de vinte cabeças que torceram o pescoço para acompanhá-la. Ela não anda, ela dança. Pernas perfeitas, um par de pés estonteantes, e aqueles cabelos molhados que davam a ela uma aura ainda mais sensual, como se isso fosse possível. Quadris igualmente perfeitos, seios firmes sob a blusa, ouviu mas fez que não ouviu:
– Mas tá demais essa menina, puta que me pariu! – um coroa bebericando uma dose de uísque no Bar do Chico.
Todos assentiram, ouviram-se pequenos ganidos e diversos “é verdade”, até que entrou no Salete. Sentou-se sozinha numa das primeiras mesas, pediu duas empadas e uma Coca-Cola. Houve um falatório de garçons e de fregueses, e um deles levou um tapa na orelha da mulher:
– O que é que foi, Adalberto? Tem idade pra ser tua filha, cachorro!
Maria de Lourdes sorriu o mais bonito dos sorrisos, ouviu a reprimenda. Iluminou o salão. Intimidou a nesga de sol que atravessava o toldo. Ergueu o queixo, ajeitou o cabelo e quando deu a primeira mordida na empada, lenta, pensada, teatral, o pobre do Adalberto soltou um “meu Deus!” que fez a mulher abandonar a mesa. O casal morava no quarto andar do mesmo edifício. Passou por ela e disse:
– Já procurou o delegado, Maria de Lourdes? – e tomou o rumo de casa.
Adalberto foi atrás, deixando duas notas de 50 sobre a mesa.
– Desculpa, viu?
Maria de Lourdes riu feito Exu-Caveira.
Comeu as duas empadas, pediu um filé de frango com salada de tomate, outra garrafa de Coca-Cola, pagou a despesa e decidiu que iria dar uma caminhada na Praça Afonso Pena. De lá mesmo ligou, do celular, para a delegacia. Tinha o telefone vermelho do delegado. Deu-se o diálogo:
– Alô? Doutor Uzeda? É Maria de Lourdes, da Pardal Mallet… Aconteceu alguma coisa? Soube que o senhor esteve no prédio hoje pela manhã… – fazia voz de criança.
– Isso é o que eu quero perguntar a você, moça. Podemos trocar meia-dúzia de palavras? Pessoalmente?
– O senhor está me deixando nervosa, delegado…
– Rotina, Maria de Lourdes, rotina. Posso vê-la hoje? Fico aqui até umas cinco da tarde…
Ela sabia que alguém – não sabia quem – tinha comentado com o delegado sobre a novidade sonora da véspera. Disse:
– Pode, claro. Mas…
– Pois não.
– Ah, delegado… Não me sinto bem na delegacia, sabe…?
– Posso voltar à sua casa, Maria de Lourdes. Pela manhã não consegui encontrá-la. Toquei sua campainha durante uns bons minutos…
– Estava dormindo, doutor. Pode ser, então. A que horas?
– Cinco?
– Cinco.
– Até às cinco, menina.
– Um beijo, delegado… – e ele começou a suar do outro lado da linha.

O passeio foi de pouco mais de meia-hora. O bastante para enlouquecer os aposentados da pracinha, para tirar do prumo os clientes do Boteco do America, do Salão America, de toda a assistência que viu a moça passar. Os passeios de Maria de Lourdes, importante que se diga, são como os mais tenebrosos fenômenos naturais: há sempre vítimas, apaixonados repentinamente, neguinho que jura largar mulher e filhos, batidas de carro, trombadas entre pedestres, um troço de louco.

Ao chegar ao edifício, pouco antes das duas e meia, disse ao Bigode (e lá estavam as velhas, de plantão):

– Boa tarde. Às cinco o delegado vem me ver, tá? Pode deixar ele subir. E diga ao Alex que mais tarde eu procuro por ele.

Subiu afrontando as idosas com aquela beleza torrencial.

Às cinco em ponto, Uzeda na área. Foi recebido com honras de Chefe de Estado. As três velhas, e outras e outros vizinhos se acotovelavam no pequeno jardim interno, o cheiro de curiosidade tomava conta da pacata rua. Deu um “boa tarde” geral, foi abrindo caminho com gentileza e ao avistar o Bigode recebeu o anúncio:

– Ela avisou que o senhor viria, doutor. Pode subir.

Ele agradeceu e tomou o elevador. Ao aproximar-se da porta, a mesma se abriu:

– Muito prazer, delegado. Fique à vontade.

Maria de Lourdes vestia um short cor-de-rosa e uma blusinha de algodão, branca. Sem sutiã.

– Com licença, Maria de Lourdes… – entrou pigarreando.

A conversa não levou mais do que 40 minutos.     

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>NOVIDADES, A REVIRAVOLTA – III

>

O menino Alexandre não pregou os olhos, a noite inteira. Estava, portanto, acordado quando o pai acordou, o único porteiro daquele edifício. Moravam num pequeno apartamento no terreno dos fundos, e às 7 da manhã, enquanto preparava o café, seu Bigode perguntou ao filho, em estado de choque num dos banquinhos à mesa:
– Que cara é esse, moleque? Parece que viu assombração. – de costas.
– Pior que isso, pai.
Bigode desligou o fogo.
Era um pai atencioso, preocupado, e sobretudo um empregado dedicadíssimo. Não gostava nada daquela história entre o filho e Maria de Lourdes, a órfã, mas acatara, na condição de empregado, o aviso que lhe dera a condômina do 201 – “eu estou apaixonada pelo seu filho, algum problema?”. De mais a mais, achava que o filho “estava bem grandinho” (expressão usada com freqüência).
– O que houve, filho?
– Maria de Lourdes, pai. Ontem, enquanto namorávamos, pediu para que eu a chamasse de “assassina”.
O velho Bigode, que no fundo tinha orgulho da performance do filho – os gritos da menina davam a ele a certeza de que o filho era um garanhão – perguntou:
– A troco de quê?! – e fez o sinal da cruz.
– Não sei, pai. Mas fiquei com medo daquilo.
Efetivamente Alexandre não pregara o olho, assombrado com a cena que protagonizara. Maria de Lourdes, fora de si, implorando pelo grito inimaginável, depois ajoelhada diante da fotografia dos pais mortos, e aquilo deixou o surfista “com a pulga atrás da orelha”, foi o que ele disse ao pai.
– Vá dormir, filho. A menina não bate mesmo muito bem. Você está impressionado… Ou você acha que…
– Não sei, pai. Não sei.
Às 07h30min, Bigode ancorou na portaria modestamente decorada.
Dona Leontina e dona Abigail, moradoras do segundo andar, estavam sentadas no banco de praça que havia no jardim interno. Saltaram, juntas, e estacaram diante do empregado:
– Chamamos o delegado da 18a., seu Bigode! – disseram juntas.
Antes que ele esboçasse reação, a mais velha disse, abanando-se com o leque:
– Ele precisa, ao menos, saber o que aconteceu. Ontem à noite a menina passou dos limites…
A outra assentiu, com a cabeça. E completou:
– Assumiu o crime! Assumiu! Eu nunca acreditei nesse trololó de suicídio!
– Calma no Brasil! As senhoras estão exagerando… – tentou contornar, o Bigode.
Chininha, da janela do primeiro andar, sem que lhe fosse pedido palpite, disse olhando para baixo:
– Exagerando? A demônia esperou um ano e fez a confissão! Aceitam um bolinho?
As duas, em estado de êxtase, disseram que sim. E em menos de 10 minutos eram três as velhotas esperando o delegado.
Ele chegou a pé, da Visconde de Iguatemi, e flagrou as três mastigando o bolo. De boca cheia, Abigail ergueu as mãos céu:
– Graças a Deus!
As outras duas:
– Graças a Deus!
Ele tirou os óculos escuros, recusou um quadradinho do bolo, e sentou-se no banquinho:
– E então? O que houve de tão grave? Qual a reviravolta no caso, dona Abigail? – perguntou em nítido tom de deboche.
O delegado, Uzeda, até que achou divertido atravessar a Barão de Iguatemi, beber uma cerveja gelada no Aconchego Carioca, atravessar a Vicente Licínio, dobrar à direita na Campos Sales e entrar, à esquerda, na aprazível Pardal Mallet, para ouvir a “novidade sobre o caso do suicídio do casal da Pardal Mallet” que aquela senhora, aflita, prometera por telefone.
As três, alternando as atuações, relataram ao delegado os fatos (auditivos) da noite da véspera.
E eis o fato: Uzeda fizera um esforço tremendo para disfarçar os sentimentos que foram brotando: uma excitação imediata diante da lembrança da estrutura física da menina, uma inveja profunda do filho do porteiro, e apenas o suor, que gotejava de sua testa, denunciava algum efeito diante do relato das três. As três perguntaram em uníssono:
– E aí, doutor?
Ele fechou os olhos, lambeu os beiços, e disse, em direção ao porteiro:
– Seu filho está aí, seu Bigode? – ele fez questão de checar o nome do porteiro antes de sair da delegacia.
– Está sim, senhor.
– Posso vê-lo?
– Pode sim, doutor. Venha comigo, por favor.
O pai bateu à porta e deu de cara com o filho na mesma posição, no banquinho à mesa:
– Bom dia, filho. O doutor delegado quer falar com você…
– Mas, pai… você chamou o delegado?! – a expressão era de pânico.
O próprio Uzeda, depois de pedir licença e entrar no pequeno imóvel, disse:
– Não, Alexandre. Foi a dona Abigail… Mas eu já te explico tudo. O senhor pode nos deixar a sós, seu Bigode?
Ele sentou-se num banquinho ao lado do menino, contou sobre o telefonema, sobre o relato das três senhoras, e Alexandre foi lacônico:
– É. Foi isso mesmo. Fiquei com medo… Mas acho que foi maluquice dela, sabe? Não posso acreditar que…
Uzeda o interrompeu:
– Você gosta da moça, Alexandre?
– Gosto.
– Apaixonado? Há quanto tempo vocês estão juntos?
Ele foi sincero. Não havia paixão, havia tesão – “e muito”, ele emendou. Contou sobre a noite da véspera da morte dos pais – e as investigações não encontraram nem sombra de qualquer indício capaz de complicar a vida do menino -, sobre o afastamento de Maria de Lourdes durante os meses em que esteve com o tio hospedado em sua casa, sobre o começo do que ele chamou de “transa entre nós”, foi até detalhista sobre o comportamente da órfã durante o sexo e Uzeda, um homem na casa dos 50 anos, afagou a cabeça do garoto assim que se levantou. Excitadíssimo – “que potranca, meu Deus!”, pensou – disse, apenas:
– Vou falar com ela. Relaxe, viu? E nossa conversa morre aqui.
– Arrã. – foi só o que ele disse.
Uzeda voltou à portaria. Bigode nervoso. Abigail, Chininha e Leontina excitadíssimas. As três, ao mesmo tempo:
– E aí, doutor?
O porteiro, cabisbaixo, foi o eco:
– E aí, doutor?
Uzeda nem se dirigiu a elas. Apoiando as duas mãos na mesa do porteiro, anunciou:
– Vou subir pra conversar com a moça, O.K.?
Ele fez que sim. Acompanhou o delegado até o elevador e perguntou baixinho, fora do alcance das três senhoras:
– Tudo bem com o menino, doutor?
– Ótimo! Ótimo! – e deu dois tapinhas no ombro do empregado pouco antes de entrar no elevador.
Tocou a campainha e ajeitou-se. Estava – é um detalhe importante – excitadíssimo.
Maria de Lourdes dormia em posição fetal abraçada ao porta-retrato dos pais. A seu lado, a Bíblia Sagrada, a tal de páginas em alta gramatura, douradas, aberta em Números, 35:30: “Todo aquele que matar alguma pessoa, conforme depoimento de testemunhas, será morto; mas uma só testemunha não testemunhará contra alguém, para que morra.”.
O delegado tocou exatas cinco vezes com intervalos de dois minutos entre um toque o outro. A moça não acordou. Ele desceu de escadas e disse ao porteiro – as três velhotas cercando o empregado:
– Ela pode ter saído antes do senhor pegar no serviço, certo? Ou pode estar dormindo. Peça a ela que me procure. – e estendeu seu cartão.
Maria de Lourdes só acordou ao meio-dia.

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A CADA TRISTEZA, ERGUER NOSSO COPO AO HUMOR

O título de hoje – a cada tristeza, erguer nosso copo ao humor – é um de meus orikis preferidos. Da lavra de Aldir Blanc, para música de Moacyr Luz, se aplicado diuturnamente representa remédio valoroso contra as dores que nos assolam, a todos, dia após dia. Dito isso, parece-me desnecessário dizer que é evidente que a tragédia que se abateu sobre a população da região serrana do Rio de Janeiro – com mais de 600 mortos (por enquanto) – não merece piada. Mas no seu entorno, soube de uma, realíssima. Preservando a identidade dos elementos envolvidos – e eu soube do ocorrido na noite de quarta-feira – vamos aos fatos.

Antonio estava preocupadíssimo com a situação na serra fluminense. Até que, ouvindo os noticiários, lembrou-se de que dona Iaiá, mãe de sua madrasta, dona Yoyô, morava em Nova Friburgo. Abateu-se sobre ele – um poltrão meteorológico – um terror de proporções de tromba d´água. Não que ele morresse de amores por dona Iaiá, com quem trocara – o quê?! – duas ou três palavras ao longo da vida. Não que ele morressse de amores por dona Yoyô, com quem mantinha a clássica relação de implicância entre enteados e madrastas. Ocorre que, instigado pelos apelos de solidariedade, aterrado diante das imagens da tragédia, ele decidiu “fazer um bonito” – foi o que pensou em voz alta antes de tirar o telefone do gancho:

– Alô? Yolanda? É o Toninho! – e ajeitava o próprio cabelo diante do espelho, sentindo-se o mais solidário dos parentes.

A madrasta derreteu-se. Não falava com o enteado havia muitos meses. Ela e o pai moram em Niterói, Antonio no Grajaú (onde, inclusive, trabalha) e o lufa-lufa do dia-a-dia fazia com que os encontros fossem raríssimos, escassos. Ela foi – como sempre – dramática:

– Oh, Toninho! Que saudade! Hoje mesmo comentei sobre você com seu pai! Como estão as coisas? – mentiu.

E ele, mudando o tom de voz:

– Mal, Yolanda… – e deu uma fungada sonora, artificial, para dar cores de choro à fala.

Do outro lado da Baía de Guanabara, do outro lado da linha, o tom de preocupação:

– Mas o que houve, meu filho? – e quando ela disse “meu filho” ele estendeu o dedo médio, esticado ao lado dos dobrados indicador e anelar, em direção ao bocal do telefone, ele odiava essa intimidade.

– Como o que houve, Yolanda?! Mais de seiscentos mortos e você me pergunta o que houve?! – fingiu que se assoava.

Ela muxoxou do outro lado:

– Tsc. É verdade… E fora isso, Toninho? – despreocupadíssima.

Aquela frieza da madrasta que punha por terra seu plano de fingir-se solidário começou a irritá-lo:

– Fora isso?! Yolanda… – assoou o nariz mais forte.

– Você está chorando, Toninho? Desembucha, menino! O que aconteceu?

Ele achou que era a hora:

– É que… ah, Yolanda, nem sei como fazer a indagação… Como está dona Iaiá depois dos temporais? – sentou no banquinho ao lado do criado-mudo e abriu um sorriso de dever cumprido.

Um silêncio terrível do outro lado da linha angustiou o sujeito. Ele insistiu:

– Yoyô? – foi dengoso.

– Sim, Antonio. – ela foi fria.

– Notícias de dona Iaiá?

Deu-se um suspiro e veio a resposta:

– Antonio, mamãe morreu em 2008.

Ele, um homem de raciocínio rápido, ergueu-se novamente. E diante do espelho, mandou de voleio:

– Morreu?! Morreu?!

E ela:

– Morreu.

Ele, aos gritos:

– Morreu pra você, filha ingrata! Morreu pra você! Pra mim, Yolanda, saiba disso, dona Iaiá está viva, está presente, dona Iaiá é imortal, Yolanda! Imortal!

E desligou com fúria, batendo o telefone no gancho e do gancho o tirando novamente, segundos depois. A pobre da madrasta ainda insistiu, por uma meia-hora, mas só deu sinal de ocupado. Encontraria com o pai, e com a madrasta, sabe-se lá quando. Foi o que decidiu, entre envergonhado e orgulhoso de si mesmo.

Até.       

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A SESSÃO DE DESCARREGO DE MARIA DE LOURDES – II

Menos de seis meses depois da morte de Otília e Alonso, o delegado da 18a. Delegacia Policial, da Praça da Bandeira, deu o caso por encerrado. Suícidio. A vizinhança, é verdade, custou a crer. Afinal, aquele casal religioso, temente a Deus, de formação moral sólida, não combinava com a mais romântica das despedidas. E deu-se, de fato, por conta da suspeita de suicídio, um fuzuê danado na Pardal Mallet na manhã da tragédia. O IML recolheu os corpos, peritos vasculharam o apartamento, e a morte por conta do vazamento do gás não podia mesmo ser atribuída àquela menina, 21 anos de idade, pacatíssima, a única que vivia naquele apertado dois quartos na Tijuca. Atônita, Maria de Lourdes acompanhou, aos prantos, o recolhimento dos cadávares e deu, na medida do possível, seu depoimento (fora chamada outras duas vezes à delegacia) comovido e convincente. Depuseram também o porteiro do edifício, o pastor da igreja freqüentada pelo casal, os vizinhos do segundo andar, a diretora do colégio da órfã, alguns funcionários das padarias de propriedade de Alonso e a batata já estava mais que assada quando decretou-se: foi, mesmo, suicídio.

Um tio de Maria de Lourdes, irmão mais velho de Otília, Reginaldo, viúvo e advogado aposentado, que vivia em Mar de Espanha, em Minas, chegou para o enterro e passou exatos seis meses com a sobrinha no Rio de Janeiro cuidando da papelada. Filha única, herdeira universal, Maria de Lourdes herdou as três padarias do pai (mantidas em sociedade com Otília), vendidas por um bom dinheiro para um consórcio que se formou entre os gerentes das três unidades, coisa de quase um milhão de reais. Herdou, ainda, o apartamento da Pardal Mallet, uma casa de veraneio na Ilha do Governador (também vendida) e o saldo bancário, polpudo, do suicida (que não mantinha conta conjunta com a esposa). Ultimado o inventário, que tramitou rapidíssimo em razão da simplicidade da sucessão, Reginaldo voltou para Mar de Espanha deixando a sobrinha à vontade para procurá-lo sempre que precisasse. Voltou, diga-se, extasiado com a beleza da menina (e sentindo-se ligeiramente incomodado com seus próprios pensamentos). Passou a ter uma frase-padrão com os amigos no botequim:

– Minha sobrinha carioca… vou lhes contar… uma coisa! Uma coisa! – e dava-se a masturbação mental coletiva naquela cidade de moças sem-jeito.

Maria de Lourdes passou os seis meses subseqüentes à tragédia ao lado do tio. Trocou – o quê?! – uma meia-dúzia de palavras com um, com outro, com uma vizinha, com irmãos da igreja que foram fazer uma visitinha, e mesmo com Alexandre, o filho do porteiro, permitiu-se apenas um “obrigada” diante do protocolar “meus pêsames” no final daquela tarde. Saiu para fazer compras (mudou o guarda-roupas, antes recatadíssimo), para inteirar-se da rotina com os bancos, passeou bastante mostrando para o tio a cidade que, a bem da verdade, ela bem pouco conhecia também. Passou, entretanto, os seis meses, fervendo por dentro. Não esquecera, nem por um minuto, a volúpia insana daquela manhã fatídica. Guardou-se, porém, com a resignação e com a máscara que apreendera naqueles 21 anos de cultos e cultos e cultos e cultos. O tio fora embora num domingo à noite. Já na segunda-feira – as notícias na Tijuca correm como água rio abaixo – Maria de Lourdes recebeu a visita do pastor da igreja que freqüentava com seus pais. Queria, o canalha, convencer a menina a doar para a igreja o dízimo da herança. Foi posto pra correr por uma possessa. Disse atrocidades ao pastor enquanto o sujeito, de terno e gravata, pasta executiva na mão, aguardava o elevador. E bateu a porta com um ódio que os vizinhos, assombrados com o espetáculo, nunca tinham visto brotando daquela moça.

Na segunda à tarde, quase à noitinha, postou-se na janela. Esperou Alexandre aparecer e repetiu o “psiu” de seis meses antes. O rapaz subiu. Deu uma desculpa qualquer ao pai – “vai ver ela precisa de ajuda” – e já chegou em ponto de bala diante da porta do apartamento. Aquela potranca – e mais potranca que nunca, uma égua de haras paulista – já o aguardava apenas com um camisão. Fechou a porta e abriu os lábios, que sugaram Alexandre de uma maneira que só os seis meses de hiato poderiam explicar.

Poucos minutos depois, bate à porta uma das vizinhas de corredor. Maria de Lourdes abre apenas a portinhola, apenas o rosto à mostra:

– Tudo bem, filha? – disse a velha.

– Te chamei? O que é que tu quer? – e deu de rir, feito Exu-Caveira, batendo a portinhola com o mesmo ódio oferecido ao pastor.

A cena deu-se, dia após dia, sem tirar nem pôr. Houve, é evidente, evoluções. E revoluções. Maria de Lourdes disse, com todas as letras, “eu estou apaixonada pelo seu filho, algum problema?”, e fez com que o porteiro nunca mais perguntasse nada ao filho. Adestrando suas fantasias como quem adestra um cão, a menina passou a fazer uso de serviços delivery, para tudo: pizza aos domingos, galão de água duas vezes por semana, galeto, comida japonesa, comida chinesa, flores, e ela engolia, despudoradamente, os entregadores que satisfaziam seu apuro visual. “Só um boquetinho, coisa rápida”, ela dizia. Não se sentia traindo o namorado desse jeito, ajoelhada e com pressa. Diz-se até que na pizzaria da Doutor Satamini, aos domingos, havia grossa pancadaria entre os motoqueiros já que todos queriam servir a “boca do 201 da Pardal Mallet”.

Mas o pior deu-se quando Maria de Lourdes percebeu certo gosto pela dominação. Um dia pediu um tapa ao Alexandre. O surfista já curtia o troço e sentou a mão na carinha linda da potranca. Mais à frente, pediu que ele a xingasse. A princípio o repertório era o trivial. Um “piranha” pra cá, um “puta” pra lá, um “cachorra” com o som do estalo do bofetão por trás, um “vadia”, por aí.

A agressão verbal, o xingamento (e ela exigia o tom de ódio na voz do rapaz), a purificava. A submissão, a exposição voluntária para a agressão ainda que teatral, a sacralizava. E assim seguia a rotina daqueles dois.

Eis que no dia do primeiro aniversário de morte dos pais da menina, quando ela completaria 22 anos, quando sua fama de devassa subia e descia as escadas do edifício, ganhava as calçadas, as esquinas, o entorno, o bairro, deu-se o inesperado. Poder-se-ia dizer, até, que a vizinhança já estava habituada (ainda que horrorizada) com aquela trilha sonora, com aquela enxurrada de baixo calão. O choque maior, entretanto, veio naquele dia.

Alexandre subira para uma comemoração especial. A moça recusara o convite para um jantar – “faço questão que seja aqui”. Após os salamaleques, após o presente que o garoto comprara, após a garrafa de espumante que beberam juntos, foram para a cama, ela já entrelaçada no tronco do surfista, que sentia o calor úmido da parceira na altura do abdomen, ele já sem camisa, ela praticamente nua. Deitaram, e pela primeira vez, na cama mantida no quarto do casal suicida. Sobre a cômoda, diante do pé da cama, um porta-retrato fazia com com que ambos, pai e mãe, testemunhassem a cena. Apoiado, diga-se, numa Bíblia Sagrada, dessas com páginas espessas e douradas. O troço pegava fogo. As janelas, mantidas abertas de propósito por Maria de Lourdes, apenas a cortina impedindo o alcance dos olhos alheios. Começou o espetáculo:

– Sua vaca! – e explodia um tapa.

Trepavam, suavam, urravam, e ele mantendo a linha:

– Vagabunda! Cadela suja! – outro bofetão de cinema.

Prestes a gozar, olhos vidrados, unhas cravadas nas costas saradas do surfista, Maria de Lourdes pediu aos gritos:

– Me bate, Alexandre! Me bate! Na cara! Na cara!

Ele, fora de si, atendeu.

– Com mais força! Mais ódio! Me cospe! Me cospe! – tudo atendido.

Gozaram juntos. Ele uivava como um lobo dentro dela, e ela também. Tinha, é preciso que se diga, orgasmos múltiplos, a órfã. E enquanto gozava, gemia, mordia o bíceps de Alexandre, pediu com a voz mais rouca, transfigurada (ele quase não reconheceu):

– Me chama de assassina, Alexandre. De assassina! As-sas-si-na!

Ele livrou-se dela num sem-pulo. De pé, ao lado da cama, vendo Maria de Lourdesem estado de êxtase absoluto, os olhos revirados como os de uma boneca de pano em frangalhos, vestiu-se às pressas e pode perceber quando ela, de joelhos, sem parar de gritar, passou a olhar fixa e insanamente para o retrato dos pais. Foi descendo as escadas, aos atropelos, ouvindo “me chama de assassina!, de assassina!”, até que cederam os apelos inéditos, que deram vez às gargalhadas mais agudas que ele jamais ouvira – feito Exu-Caveira.

Não se falava noutro assunto naquele condomínio, na manhã seguinte.

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