O Ascânio sofre – é como ele sente o troço – desde que se entende por gente. Desde o colégio que é sempre a mesma lenha. Basta ele dizer o nome – “Meu nome é Ascânio” – e dá-se, até hoje, uma cena: o interlocutor ri, faz uma máscara de espanto, repete o nome em tom de indagação, e isso – é ele mesmo que conta – fez dele um homem reprimidíssimo, vá entender. Ascânio tem 52 anos de idade e herdou do pai a tinturaria que mantém a pleno vapor na região da Praça da Bandeira. Tem seis funcionários, sendo que dois fazem o serviço de coleta e entrega do material a ser lavado. É casado com a Dorotéia, e ele acha, quando pensa no assunto, que escolheu a mulher pelo nome. Queria, vá entender, uma mulher com um nome tão estranho quanto o dele. E o que faz a Dorotéia?
– Porra nenhuma! – é a resposta de sempre, dada a quem pergunta.
Semana passada, voltando da tinturaria, deparou-se com a seguinte cena: a mulher desmaiada no chão. Era, além de tudo, epiléptica. Pensou alto:
– Daqui a pouco a vaca levanta.
Verificou, com nojo, abrindo sem cuidado a boca da coitada, a língua da mulher. Normal. Havia um pouco de baba no tapete, e ele pensou, alto de novo:
– Que nojo.Foi ao banho. Ligou o radinho de pilha, ouviu a resenha esportiva, vestiu o pijama e voltou à sala. Dorotéia na mesma posição.
– Será que morreu? – perguntou em direção ao espelho sobre o bufê.
Deu um chute, de leve, nas pernas da mulher.
Ela grunhiu.
– Levanta, mulher. Tô com fome.
Era mentira que ela não fazia “porra nenhuma”, como ele espalhava aos quatro ventos nas dezenas de bares que freqüentava, todos ali na região. Dorotéia cozinhava bem pra burro. E mantinha uma rotina, com a intenção de agradar o marido por quem tinha – eis a verdade que o sujeito jamais reconhecera – verdadeira adoração: assistia a todos os programas de culinária ao longo da manhã e da tarde a fim de escolher o cardápio do marido, que almoçava e jantava em casa todo santo dia.
Ela grunhiu de novo.
Sobre a mesa ele viu o caderno de receitas mantido pela mulher – um deles – e os ingredientes do suflê de bacalhau que, foi o que ele imaginou, seria feito para o jantar. Foi à cozinha, mandou o louro calar-se – tinham um louro – e viu, sobre a pia, a peça de bacalhau dessalgando. Ficou com a boca cheia d´água. Espiou pela porta, a mulher na mesma posição.
– Chamo ou não chamo a ambulância, louro? – em tom de blague.
O louro, mudo.
Pôs o dedo indicador na água e lambeu o dedo. Pensou no quanto de ódio sentia pela vida modorrenta que levava. Transtornou-se, e nem ele mesmo entendia o porquê de sua inércia diante do corpo inerte da mulher. Foi ao quarto dos fundos. Pegou um do cabides de arame, dos antigos, antes da aquisição das centenas de cabides plásticos, mais modernos, para o próprio negócio. Foi à sala. Olhou bem nos olhos da mulher, abertos, e ela arfava e gemia o nome do marido provocando nele uma sensação inacreditável, entre o prazer e o medo, entre o ódio e a piedade, entre o trauma e a superação. Enforcou a mulher com o arame do cabide e a viu enrubescendo, esbugalhando os olhos, mordendo a própria língua, que foi inchando, e deu tantas voltas no arame do cabide que sentiu ficar por um fio o ato de cortar-lhe o pescoço. Dorotéia morta.
Foi ao quarto. Tirou o pijama e escolher a melhor roupa. Vestido, procurou na gaveta a fotografia que mantinha guardada, de seus pais. Sempre ouvira do pai:
– Tua mãe que escolheu teu nome, Ascânio.
Sentou-se no sofá diante do corpo da mulher. Ficou ali, uns bons minutos, olhando para os pais. Rasgou a fotografia ao meio, a mãe separada do pai depois do gesto do filho. Fez um cone com a metade que trazia o pai. Enterrou a fotografia, enrolada, na boca babada da mulher morta. Achou graça. Gargalhou.
Foi à cozinha. Abriu a geladeira. Serviu-se de uma dose de vinho tinto, desses de garrafão, bebida de todas as refeições, recomendações médicas. Arrotou, foi à sala e arrancou uma folha em branco do caderno de receitas da mulher. Escreveu, sem pressa: “Ascânio é a puta que te pariu”, e meteu o papel no bolso do paletó (estava de paletó).
Voltou à sala e atirou-se, sem titubear, da janela do sexto andar.
Morreu, é evidente.
Mas morreu nos garfos do portão de ferro da portaria. Caiu de bruços, rasgado por quatro dos garfos do portão, perfurado – Ascânio foi ao chão.
Bombeiros serraram o portão, e foi varado por quatro barras de ferro que Ascânio foi pro IML.
A primeira coisa que o legista fez foi verificar os bolsos do infeliz. Leu, em voz alta, o que nem poderia ser chamado de bilhete que estava sujo de sangue no bolso do paletó. Quando leu “Ascânio é a puta que te pariu” teve a impressão, nítida, de que vira o cadáver sorrir.