O BIGODE

Escrevi, em janeiro de 2012, dois textos sobre o cinema iraniano: A Separação, aqui, e Mais sobre o cinema iraniano, aqui. Discorri, ali, sobre a inacreditável experiência que foi, estando no cinema, observar o comportamento da fauna à minha volta diante de um filme absolutamente incompreensível e chato, sobretudo chato. Percebi, em apertada síntese, que o sujeito que se dispõe a sair de casa para assistir a uma película iraniana já tem, pondo o pé fora de casa, ares, poses, gestos e falas características dos pernósticos, dos acima-do-bem-e-do-mal, dos dotados de uma inteligência e de uma sensibilidade que os pobres mortais não têm nem em sonho. Durante o filme, então, essa gente geme, gane, funga como quem chora, uiva sentada na poltrona admirada diante do que eles chamam de obra.

Dito isso, contar-lhes-ei minha experiência na tarde de ontem, domingo.

Estávamos na praia, eu e minha Morena, quando ela fez a sugestão:

– Vamos ao teatro?

Fui ao mar, sem dizer palavra, e lá fiquei, o quê?, uns vinte minutos, murchando e pensando na hipótese. Eu só lembrava do Luiz Antônio Simas e sua experiência com o teatro, ele que publicou um antológico texto chamado Bodas de prata, hoje indisponível para leitura por conta da compilação que está a fazer o Simas, sobre a alegria que foi comemorar 25 anos longe do teatro. Voltei para a areia. E disse:

– Pra ver o quê?

– O Bigode.

Fui ao mar, sem dizer palavra, e lá fiquei mais uns 15 minutos. Só conseguia me lembrar do Julio Vellozo, que me contou ter caído numa armadilha, à certa altura, aceitando um convite para ir ao cinema assistir a um filme sobre um tapete (um tapete!), iraniano, diga-se – o tapete e o filme.

Voltei.

– O Bigode?

– Arrã. – enlouqueço quando ela fala arrã, uma de suas marcas paranaenses, porque é charmoso demais o seu arrã.

– Vamos… – disse por conta das restrições da Quaresma (é tempo de sacrifícios).

Eu disse vamos mas fui ao Google atrás de informações sobre a peça. Deparei-me com isso:

“Carrère diz que ficou surpreso quando foi abordado pelos integrantes do Coletivo Lupa, que pediram autorização para levar o romance ao palco. O encontro aconteceu pessoalmente em 2011, quando o escritor veio ao Brasil para a Festa Literária Internacional de Paraty e participou de debates no Rio de Janeiro. De cara, a resposta foi dizer que “não considera o texto muito teatral”. Por outro lado, ele admite não ser ter muito contato com as artes cênicas.”

Fiquei, confesso, em pânico. Integrantes de um coletivo (não há nada mais inviável do que um coletivo) ouviram do próprio autor o conselho que desaconselhava a intenção – o texto não é muito teatral – e resolveram peitá-lo.

Resultado?

A peça é constrangedora.

Antes, uma pergunta, e se alguém desconfiar da resposta, por favor, faça comentários: por que, meu Deus?, por que?, sempre que uma campainha toca numa peça (e na tal peça campainhas tocam diversas vezes nas casas dos personagens) o personagem entra em pânico, em crise convulsiva e histérica, e sai, desesperado, em direção à porta?

A peça, como eu disse, é constrangedora. É constrangedora mas preciso lhes contar mais sobre o que houve para que vocês tenham exata noção do sacrifício que foi. Chegamos ao teatro, eu e a Morena, portando três saquinhos de amendoim comprados num tabuleiro na calçada em frente. A assistência tinha, em média, 70, 80 anos. Entregamos nossos ingressos, tomamos nossos assentos e, depois do terceiro sinal, apagaram-se as luzes. Apagaram as luzes e eu abri, com cuidado, o primeiro saquinho de amendoim. Ouvi um relincho:

– Olha essa bala aí! Shhhhh!

Entra no palco um dos atores.

Pego o primeiro amendoim e percebo um festival de pescoços em movimento, diante de nós, lançando-nos olhares de reprovação diante do humilde lanche. Ouço muxoxos de desdém e continuo a mastigar em silêncio, e isso foi até o final do primeiro saquinho. Entram no palco mais dois atores (são dois homens e uma moça) e abro o segundo saquinho depois de comer todo o amendoim do primeiro saco, sendo que a cada colheita de amendoim, claro, aquele ruído, leve, do papel laminado sendo amassado. Bem em frente a mim, uma senhora de – o quê?! – uns 60 anos. Na metade do segundo saco ela não agüentou e virou-se, ríspida:

– Meu filho, não sabe vir ao teatro? Fique em casa!

Ah, pra quê…?

Fui, dali em diante, o sonoplasta da peça. Quando terminei o terceiro saquinho de amendoim eu tinha comigo três sacos vazios. Um eu pus embaixo do pé direito. Os outros dois, um em cada coxa. E fiquei ali, durante o desenrolar da modorrenta peça, brincando de Hermeto Paschoal para desespero dos intelectuais.

A peça, um horror.

Para que vocês tenham uma idéia plástica da tragédia constrangedora que se passava diante de nós, o espetáculo (escrever espetáculo chega a ser cômico) termina com o ator principal – o tal que tinha um bigode que ele tira imaginariamente na primeira cena – cometendo suicídio diante da platéia: o ator cobre o rosto com argila, pinta o peito de vermelho fazendo papel de sangue, arremessa a cabeça pra trás e seguem-se aplausos, ganidos, uivos de bravo!, e eu saí do teatro com a mesma sensação de que sou uma besta que me acometeu depois do filme iraniano.

Até.

3 Comentários

Arquivado em teatro

3 Respostas para “O BIGODE

  1. Me lembra os famosos filmes húngaros, em preto e branco, som horroroso e sem legenda, porque era chique vê-los em cinemas de circuito de “arte”, nos anos oitenta. Se vc não os visse, era tachado de burro, ficando fora dos circuitos intelectuais. E além de ver, tinha que comentar!

  2. Pingback: O CINEMA HÚNGARO (OU OS COLETIVOS) | BUTECO DO EDU

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