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CARTOLA

ESPECIAL CARTOLA

Cartola 90, samba 2000

Em artigo de 1992 sobre Cartola, eu escrevi que, em época de seqüestro, ninguém agüenta mais a palavra resgate. Seqüestro de dólares, desviados de nossas contas em bancos que estouram para engordar poupanças de pilantras impunes em paraísos fiscais; seqüestro da prometida geração de empregos e das promessas do “mercado regulador”; seqüestro de estatísticas que desmintam os dados oficiais; seqüestros flagrantes de intenções de voto; seqüestro de cidadãos indefesos e até mesmo de órgãos; o seqüestro dos “ajustes fiscais”. Com a confirmação do novo reinado de Caô-tsé-Tunga (mentira, modorra e roubalheira sob um calor e uma recessão de deixar qualquer um de tanga), o sambola, ou sambobo, ou sambabaca é o hino do regime. Então, não falarei de resgate. Vou só procurar impedir que o legado de Cartola sofra seqüestro oportunista nas mãos de produtores que, se entendem pouco de batuque, são mestres na arte-manha de arrancar o couro.

O homem que é sinônimo de Estação Primeira de Mangueira, que escolheu o nome da Escola e suas cores, que foi o autor de seu primeiro samba-enredo nasceu, como no antigo samba, só pra chatear… no Catete. Houve confusão no nome de batismo, Angenor. Usava óculos escuros à noite. Deu uma recauchutada no nariz com a pele do traseiro. Até mesmo sobre a origem de seu apelido, Cartola, a história não coincide. Na de Jota Efegê, em Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira, volume 2: “…ganhou o apelido por usar como fantasia uma cartola de papelão com a qual formava nos sujos da gurizada, nos dias de carnaval”, ainda moleque na Zona Sul. Já o fascículo no. 17, Cartola / Nelson Cavaquinho, da primeira edição da História da Música Popular Brasileira, garante que, rapazola, trabalhando na construção civil, arranjou um chapéu-coco pra se proteger do pó de cimento que caia em sua cabeça. Daí, o apelido. Vida de compositor popular tem que ter várias versões. A gente fica achando que no país do Pensamento Único só figuras como Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça são reais. O resto é fantasia.

Cartola foi famoso nos anos 30. Vendeu sambas para Mário Reis e para Francisco Alves. Quando sumiu, foi trazido de volta à tona por um mito, Sérgio Porto. Não é mole ser resgatado (epa, olha a palavra aí) pela flor dos Ponte-Preta. O também lendário tio de Sérgio, Lúcio Rangel, chamava Cartola de Divino. Quando Sérgio Porto trouxe Cartola de volta, ele estava lavando carros na rua. Injustiças assim, como a que atingiu Cartola, compositor apreciado por Villa-Lobos, gravado por Leopoldo Stokovsky, citado em sambas de Herivelto Martins e de Pedro Caetano, considerado nosso maior compositor por Nelson Cavaquinho, amigo de Noel Rosa, parceiro de Sílvio Caldas, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, são freqüentes hoje, nesses tempos de sambesta.

Cartola comandou, com a mulher que salvou sua vida, uma das mais festivas casas noturnas de todos os tempos no Rio de Janeiro: o Zicartola. Fez dois discos imortais pela Discos Marcus Pereira, produzidos o primeiro pelo Pelão e o outro por Juarez Barroso, nomes históricos em nossa melhor produção musical, direção e regência do antológico Horondino José da Silva, o Dino Sete Cordas.

Em sua obra irretocável, por trás da economia de palavras, e às vezes sob o verniz romântico (que reforça o choque sentido), insinua-se o mais severo analista de quantos trataram o delicado tema das relações amorosas. Perto de Cartola, Lupiscínio Rodrigues era um otimista… Cartola reconhece que o amor é imprescindível ao poeta e ao samba. Só que não dá certo.

A lúcida amargura de O Mundo é um Moinho resume exemplarmente sua visão: chamada de amor logo no primeiro verso, a Musa leva uma tremenda descompostura: não sabe o rumo que irá tomar, deixará sua vida cair em cada esquina, e em pouco tempo não será mais o que é. O mundo, um moinho, vai triturar seus sonhos – que, acentue-se, são mesquinhos -, vai reduzir as ilusões a pó e, de cada amor, a herança será só o cinismo.

Quando notar, a Musa estará à beira do abismo, cavado por ela própria. Não há esperança, votos de estima e consideração, uma única palavra amiga de despedida.

Em As Rosas Não Falam, o poeta chega ao extremo do lirismo e destrói seu arroubo em dois versos:

Queixo-me as rosas
mas, que bobagem, as rosas não falam.

Em seguida, um verbo sofisticado soa com toda naturalidade na letra do sambista e o clima lírico se reconstrói:

Simplesmente as rosas exalam
o perfume que roubam de ti.

A letra termina contradizendo a esperança que, no início, batia em seu coração. É melhor que a musa veja os olhos tristonhos do cantor e sonhe por ele.

Esse tipo de tranqüila constatação do que é irrealizável no amor acompanha toda a trajetória do poeta:

Você não merece
mas isso acontece
……………………..
Se eu ainda pudesse fingir que te amo
ai, se eu pudesse
mas não quero…
Isso não acontece.

Melhor não chorar, mas, se for preciso, convém não dar bandeira, não fazer alarde: disfarça e chora. Mesmo assim, o teu pranto, ó linda senhora, vai molhar o deserto.

Chorar não adianta.

No politicamente incorreto Tive sim, Cartola reconhece que amou outra mulher tanto quanto a atual, que vivia contente ao lado dela, mas que prefere calar. Conversei sobre esse samba com D. Zica, que me contou, entre risadas, com grande simplicidade:

– Eu estava afim de arengar e ele quieto. Eu, criando caso de graça: tá pensando em outra? Ele lá, calado. Chacoalhei tanto que ele respondeu: “tive outros amores antes do teu, sim. E não quero mais falar nisso pra não te magoar”. Na madrugada seguinte, meu filho, nasceu o samba Tive sim.

Há pérolas menos cultivadas, como Assim Não Dá, Evandro Bóia na parceria:

Assim não dá, não dá não
Não vai dar, meu irmão
É doutor presidente
Doutor secretário
Doutor Tesoureiro
Só quem não é seu doutor
É aquele pretinho
Que varre o terreiro.
………………..
Já houve lá um concurso
Pra quem bate surdo
Tamborim e pandeiro
E eu fiz tanto esforço
Mas acabei perdendo
Pra um engenheiro

Justiça seja feita: parece uma tese do Tinhorão.

Toda a alegria foi perdida em Cordas de Aço, clássico absoluto de nossas noites boêmias. O violão compreende porquê. E, no entanto, é só o bojo perfeito soltar o som da madeira que todos voltam pra casa cantando.

Em Desfigurado, Cartola sai na frente, pioneiro de um tema que se tornaria caro a nossos compositores:

Meu coração…
É infeliz como um menor abandonado

O título Minha serve apenas para constatar que…

Minha
Ela não foi um só instante
Como mentiam as cartomantes
Como eram falsas as bolas de cristal

Talvez por isso o poeta grite Não quero mais amar a ninguém (Com Carlos Cachaça e Zé da Zilda).

Desejo impossível, porque…

Um vazio se faz em meu peito
………………….
Me faltando as tuas carícias
As noites são longas
E eu sinto mais frio
Procuro afogar no álcool a tua lembrança
Mas noto que é ridícula a minha vingança

O homem não dá refresco nem bebendo. Para desespero dos chatos, há também engajamento político em Cartola, como no Samba do Operário, em parceria com Nelson Sargento e Alfredo Português, onde o operário é um escravo, cuja voz é abafada e que só encontra exploração em todo lugar.

A mulher maltratada, que hoje tem até delegacia, não foi esquecida por Cartola.

Foi tanta pancada
que ele me deu
que estou toda doída
estou toda ferida
ninguém me socorreu

Mas, sendo criação de Cartola, não perde o senso prático:

Eu parei desta vez:
vou arranjar um português.

Pra encerrar essa parte, um pedacinho de um dos meus favoritos, Tempos Idos, com Carlos Cachaça:

O nosso samba, humilde samba…
Depois de percorrer todo o universo,
Com a mesma roupagem que saiu daqui
Exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamarati.

O teste do compositor popular não é só o do assobio. Na gafieira, eu vi e ouvi, ao vivo e a cores, o desconhecido a meu lado suspirar quando a orquestra atacou O Sol Nascerá (com Elton Medeiros):

– Ah, essa é a minha música…

E saiu procurando a dama para dançar.

O samba, na realidade, está aí, pra quem quiser ver e ouvir no premiadíssimo CD Bebadosamba, no show Bebadachama de Paulinho da Viola, no prêmio Shell que Zé Keti abiscoitou com a frase do milênio (“o bom dos prêmio é que a mulherada vem atrás”); o samba está na grande obra de Nei Lopes, em seu reduto de Vila Isabel, baluarte, como Candeia, da cultura negra; na luta pela vida de Wilson Moreira; na chama vencedora – e como esse artista foi injustiçado, meu Deus! – do fenômeno Walter Alfaiate, lotando casas de samba como o Candongueiro, Mãe Joana, etc, com quase 70 anos. O samba está presente em cada mês de fevereiro na Ressurreição do Carnaval, apesar de toda comercialização que o envolve, que tem sua morte anunciada anualmente pelos urubus mas que se recusa a abotoar o paletó de Comissão de Frente em nossa cultura.

Uma vez, participei de reunião para campanha publicitária tipo “Salve o Rio”. Na hora de escolher a música que representasse a cidade, disse um gênio do Markkkettinnnggg, a única profissão do mundo que ricocheteia:

– Só não concordo com um choro como tema. O choro acabou. Foi substituído pelo rap.

Há um vírus novo o ar: o Brasilheca. Ele transforma tudo que é bom em merreca.

Exemplo: você está entre a imagem do buzanfã da Tiazinha na tevê e a voz do Cartola no aparelho de som. Se escolher a primeira, a Brasilheca pegou você.

Alguns pretensiosos julgam que podem “fazer releituras” da obra de Cartola, em nome do progresso. Cito Stravinsky, em sua Poética Musical: “os mestres… são como poderosos faróis, para usar a expressão de Baudelaire, a cuja luz e calor desenvolve-se uma soma de tendências que serão partilhadas pela maioria de seus sucessores e que contribuem para formar a parcela de tradições que geram uma cultura. Esses grandes faróis… promovem a continuidade que dá sentido legítimo e verdadeiro a uma palavra que já se abusou muito, ao tipo de evolução que já foi reverenciada como uma deusa – deusa que acabou se revelando uma ilusão, seja dito de passagem, e tendo dado nascimento a um pequeno mito bastardo que muito se lhe assemelha, e que tem sido chamado de Progresso…”.

Quando a conversa é sobre samba, nada melhor que ouvir os amigos. Rildo Hora, o produtor de samba mais respeitado no pedaço, aluno querido do maestro Guerra Peixe, grande músico, me disse:

– O Cartola foi a melhor harmonia que já conheci dentro do samba. No violão, a mão esquerda da inteligência (só os brilhantes têm). A mão direita para escrever poesia – a lápis. Era muito positivo, falava o que pensava. Pontual. Marcava às 8h da manhã “pra ouvir o que é samba bom”. Assim foi comigo. Cheguei no morro às 8 em ponto, e lá estava ele, tomando conhaque Dreher. Cantou, ainda inédita, “As Rosas não Falam”.

Sobre Cartola, garante o compositor Moacyr Luz:

– Na minha juventude, de tanto ouvir Gershwin, Monk e Cole Porter, quando encontrei a música de Cartola, o susto foi maior. O intuitivo de Cartola, aliado ao conhecimento musical que também surpreendeu Villa-Lobos, é o que me comove: escuto Cartola como lição de casa, pra aprender, pra acreditar na música brasileira.

Nei Lopes, disfarçando seu imenso coração com uma crueza que encantaria nosso retratado, pondera:

– O Cartola eu conheci – de longe, em 1965, e um pouco mais de perto no final dos anos 70 – não era o mesmo Cartola componente do Bloco dos Arengueiros, biriteiro, batuqueiro, fundador da Estação Primeira de Mangueira, discriminado como “sambista de morro”, ao lado de Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, entre outros – não obstante ter chegado ao meio radiofônico, através de parcerias e interpretações como as de Noel Rosa e Francisco Alves, no início dos anos 30. O Cartola, então, que eu conheci não foi um sambista malandreado como Padeirinho, nem um porrista genial como Geraldo Babão, nem um militante negro como Candeia. Foi um artista refinado, elegante, compositor de sambas-canções antológicos como “As Rosas Não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Acontece”, etc. Gozando, enfim, até os 72 anos, dos merecidos frutos de uma ascensão social modesta, sim, mas altamente significativa.

Dos mais destacados músicos de sua geração, Jayme Vignolli, jovem líder do Água de Moringa, chama atenção para a harmonia em Cartola:

– Cartola é artesão requintado. O tratamento melódico de suas canções é notável. A melodia pode estar em constante movimento, como em “Autonomia” ao cantar: “Se eu tivesse autonomia / Se eu pudesse gritaria não vou, não quero” ou mais parada como em “Tempos Idos”, quando insiste praticamente na mesma nota cantando: “Consegui penetrar no Municipal / Depois de percorrer todo o Universo”, talvez o momento mais expressivo desse samba. Tudo no lugar e momento certos. Em “Acontece”, samba-canção antológico, não é diferente. A melodia se inicia em uma nota de tensão e segue com a tradicional fluência. Nesta mesma música Cartola demonstra ainda seu extremo bom gosto para o emprego da harmonia. Modula de uma tonalidade a outra distante e volta à tonalidade original com invejável naturalidade (Acontece que já não sei mais amar / Vai chorar, vai sofrer / E você não merece / Mas isso acontece) parecendo que não modulou. Todas essas técnicas de elaboração (formal, melódica e harmônica) costumamos estudar nas Academias, Conservatórios e Escolas de Música por onde certamente o nosso nonagenário não passou e não precisou passar. Cartola é aquele peladeiro que de fato “brinca nas onze” e só faz golaço.

Nelson Rodrigues gozava os homens medíocres que se tornavam contínuos de si mesmo. Hoje, os neoliberais são locadores de si mesmos. No maremoto de oportunismo desesperado, há compositores que são divulgadores de si mesmos. Não é o caso de Cartola, de Nelson Cavaquinho, de Dorival Caymmi. Todos eles ouviram , em diferentes épocas de suas vidas, que “não estavam fazendo mais nada”. Os motivos, segundo os falastrões, variavam da preguiça à garrafa. Besteira. Eles sempre viveram em permanente estado de composição. Há a Marina que todos conhecem, provavelmente irmã de criação da Divina Dama do Cartola ou daquela outra mulher que foi um grande amor antes da Dona Zica. Pra nós, ouvintes e admiradores, essas músicas estão prontas, ficam em nossa memória afetiva como foram feitas. Mas, em Caymmi, Marina permanece mudando, assim como as musas de Cartola viveram enquanto ele viveu. O público, que morde-e-sopra aqueles a quem ama, só reconhece o compositor de violão na mão, de cotoco de lápis mordido garatujando no papel de embrulho. Mas cada composição tem um período pra nascer, de sofrimento, desassossego, porres – com esse é o oitavo butequim. Depois são gravadas, vão à luta, mas no coração incestuoso daqueles que pariram as crias-amantes elas pintam a boca, traem, contraem doenças e rugas – e são sempre belas, ainda que de um jeito meio mórbido. Só morrem com a gente.

O bacana é que o compositor, arauto e profeta da horda humana, não morre de todo e suas musas acabam aparecendo nos bares, nas horas de solidão, pra vampirisar benignamente o amigo ouvinte. Ao contrário do que pensam (e escrevem…) alguns basbaques, Cartola não morreu, Elis não morre – o tempo se rói com inveja deles.

Dizem que o samba está vivendo um momento complicado. Qual samba? O verdadeiro? O samba que bebeu em Cartola? Esse está redondo e formoso nas vozes de Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila, Monarco, Wilson das Neves (todo letrado por Paulinho Pinheiro), Sombrinha e Arlindo Cruz. CDs novos e diversos atestam sua força, dos Demônios da Garoa a Noca da Portela.

Canta o também mangueirense Nelson Sargento “samba agoniza mas não morre” porque, completa Cartola, “surge outro compositor”, como Dudu Nobre, “com o mesmo sangue nas veias”.

Por tudo isso, e apesar do boi-com-abóbora estar nas alturas, mais do que nunca é preciso tirar o chapéu pra Cartola.

Aldir Blanc

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PANDEMIA NA PANDEMIA

Vim ao balcão virtual do buteco apenas duas vezes nesse tenebroso 2020: uma para saudar Aldir Blanc – A morte e as mortes com Blanc, aqui – e outra para lhes contar do São João aqui em casa, São João na pandemia, aqui. Nada fácil, esse 2020 da Era de Átila. Disse Era de Átila e explico. Desde sua primeira aparição, eu disse de mim para mim, sem medo do erro: lá vai um vaidoso, sobretudo um vaidoso, abrindo sua caixa de conhecimento para espalhar o pânico e o terror, para ganhar notoriedade. E eu não estava errado. O sujeito, que no Twitter usa o artigo definido “o” antes do próprio nome (é ou não aguda vaidade?), já foi convidado para dar palestras no TSE, para assinar coluna em jornal, dá entrevista a torto e a direito sobre todos os assuntos, enfim, atingiu seu objetivo (eu sabia disso, quero dizer, desde o primeiro momento). E ele está de parabéns por isso. Admiro, no fundo admiro, aqueles que traçam objetivos e os alcançam, ainda que por questionáveis razões.

Vamos, pois, ao terceiro texto do ano (planejei, logo depois do Carnaval, retomar o blog, deixado de lado por inúmeros motivos que não vêm ao caso – e espero que agora eu consiga manter alguma regularidade já que eu senti falta desse movimento, o blog remonta a 2004, são mais de 16 anos, e isso não é coisa pouca). Quero lhes falar, como o título indica (oh!), sobre a pandemia em meio à pandemia.

Estou em regime de isolamento desde a segunda quinzena de março, lá se vão quase 6 meses, acompanhando a vida, o mundo, as ruas, a cidade, o desmonte da vida, do mundo, das ruas e da cidade como eu a conheci. Há muita gente morrendo, nenhuma perda foi tão dura pra mim quanto a de Aldir Blanc (meu pai, meu irmão, meu filho, meu amigo, meu confidente, meu orixá), há muitos bares morrendo, e nenhuma perda foi tão dura pra mim quanto a de Andrajópolis, o apelido que demos ao Café e Bar Almara, pé-sujo na Praça da Bandeira, nas imediações da rua do Matoso, visitado por mim e por meu fiel escudeiro, Leo Boechat, num dos episódios da série Butecos do Edu (aqui, o episódio na Praça da Bandeira).

O Brasil está derretendo diante do mundo. Há milhões de desempregados, e eu sequer vou seguir nessa toada sob pena de deprimir um cadico mais (ia fazer extensa exposição sobre a situação atual, desisti).

Quero terminar falando de outra perda incomensurável (pandemia em meio à pandemia). Não há razão que explique o quanto me bateu mal a notícia do fechamento da Bitaca da Leste, em Belo Horizonte. Quando li a notícia, no Instagram do Luiz Paulo, dono do buteco, senti – mesmo – um baque.

Lá estive em apenas duas ocasiões, ambas muito especiais. Escolhi passar meus 50 anos em Minas Gerais, aportando em Caxambu uns dias antes e chegando a BH na véspera do dia 27 de abril (fui a Caxambu exclusivamente para beber, depois de muitos anos, no Bar do Paulão, um dos melhores botequins de todo o Brasil). No dia do meu cinqüentenário, em Belo Horizonte, lancei De hoje não passa, livro que escrevi a quatro mãos com Julio Bernardo (se você ainda não o leu, compre-o aqui, no site da editora Mórula). E na noite do dia 26, véspera do lançamento do livro, foi na Bitaca da Leste que, ao lado da mulher amada e dois amigos muito queridos, atravessei a linha da meia-noite, fazendo naquela esquina o primeiro brinde da idade nova.

Meses depois, voltei a Belo Horizonte a convite do Humberto Hermeto, responsável pela capa do livro, ele que tornou-se um grande amigo depois que nos reconhecemos na Folha Seca, a livraria do meu coração e responsável por tantos encontros bacanas ao longo dos meus já mais de 51 anos vividos. Fui até BH pra filmar alguns episódios pra série Botecos do Edu e, claro, filmamos na Bitaca.

Quer bar, senhoras e senhores. Que ambiente, que comida, que cuidado com as bebidas, que esquina, e que papo, e que boa-praça é o Luiz. Não vai ter terceira vez e minha memória estará mantida por conta dessas minhas duas idas à rua Salinas, no Santa Tereza (notem como sou local, aqui no Rio falamos em Santa Tereza, em BH, não). Devo a indicação da Bitaca justamente ao Julinho (o Julio Bernardo, explico para os neófitos), responsável, aliás, pelas indicações mais certeiras que já recebi na matéria comida/bebida. Sem a afetação dos ~influencers~ e ~instagramers~ (um “m” ou dois?) que orbitam em volta da temática, o Julinho é cirúrgico.

Vai avançando, assim, o tempo na pandemia. Levando gente embora pra sempre, levando bares, enterrando histórias, soterrando memórias, empobrecendo ainda mais o mundo. Ergo, de pé diante do balcão imaginário, o copo cheio de espessa espuma em homenagem ao Luiz que, tenho certeza, não faz idéia do quanto me fez feliz nas horas que lá passei. E na seqüência, um brinde pro Paulo (dono de Andrajópolis), vítima da COVID-19 que também derrubou meu irmão e meu herói imortal, Aldir Blanc.

Só bebendo pra agüentar o tranco.

Até.

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A MORTE E AS MORTES COM BLANC

Há oito dias que o ar está ainda mais irrespirável no Brasil. Há oito dias cravou-se em mim uma certeza de forma absoluta: meu celular nunca mais vai tocar com o nome Aldir Blanc piscando na tela, o que acontecia diariamente, praticamente todos os dias, desde 1995. Conheci Aldir, de ser apresentado, em 1994. Mas foi a partir do ano seguinte, 1995, que passei a receber ligações diretamente de seu bunker, na rua Garibaldi, a última delas no dia 08 de abril desse inacreditável 2020.

Há oito dias que penso em escrever o que escrevo agora – até mesmo como uma forma de aliviar quem tanto maldisse as condições de sua morte, as condições de sua despedida (que não houve, salvo para a mulher, duas das filhas e uma das netas), a falta de homenagens e que tais. Houve, é verdade, o inesquecível gurufim virtual promovido pela turma do Bip Bip, capitaneado pelo Prata, mas sem o corpo presente, condição de um gurufim de verdade.

E lembrei-me, enquanto pensava exatamente no que escrever, de dois momentos que me marcaram muito, talhados por ele, pensados por ele, o Bardo da Muda.

Estamos em 2002.

Toca meu telefone logo cedo, e é o Aldir:

– Edu, você tem algum amigo médico a quem possa pedir um troço, certo de que ele não te diria não? Tem que ser médico, preciso desse cara todo de branco, ainda hoje pra…

– Serve dentista? Tenho um amigo que jamais me negaria um pedido.

Resumo da ópera.

Pouco antes das cinco da tarde eu e Vidal, meu amigo mais antigo, ele todo de branco, estávamos bebendo Jack Daniel´s com o Aldir em seu escritório. Uma garrafa inteira depois tomamos a direção da Maia Lacerda. Aldir foi, do banco de trás – eu dirigindo, Vidal de carona -, repassando os detalhes com o Vidal.

Tomamos uma cerveja no botequim ao lado do edifício onde viviam dona Helena e Ceceu Rico, pais do Blanc.

Subimos.

Ceceu abriu a porta tenso. Aldir apresentou o médico:

– Doutor Vidal, uma sumidade.

Tomamos o rumo do quarto do casal.

Vidal examinou dona Helena, fez festinha em seu joelho (seguindo à risca o roteiro blanquiano), ergueu-se, pôs as mãos no ombros do Ceceu e disse o texto:

– Dona Helena está ótima, seu Alceu, ótima!

Saímos tendo deixado Ceceu aliviado e dona Helena com a expressão menos carregada, ela que morreria no dia seguinte.

Aldir ligou pra me dar a notícia, me mandando (de novo) agradecer profundamente ao Vidal por conta da última noite da mãe com alguma dose de esperança, que ele atribuía ao prognóstico dado pelo Vidal depois de muito uísque e cerveja.

Estamos em 2015.

Durante o mês de maio fui alguma vezes ao Hospital da Beneficência Portuguesa, na Glória, pra visitar o Ceceu – sempre a pedido do Aldir.

Até que acordei, no dia primeiro de junho, com um telefonema dele:

– Edu? Meu pai morreu.

Eu ainda começava a lamentar quando ele emendou:

– Mas um papa-defunto seqüestrou o corpo.

– Oi?!

– É, tá levando meu pai pra Belford Roxo pra dar banho e o cacete, pra só enterrar amanhã, depois do velório. Nem fodendo, Edu! Quero enterrar meu pai hoje, sem velório, sem missa, sem porra nenhuma!

Inteire-me rapidamente do ocorrido e tratei de traçar um plano pra agilizar o enterro praquele mesmo dia. Peguei com a Mary o telefone da funerária que, autorizada por ela, levava Ceceu pra Belfort Roxo com tudo acertado pro velório e enterro no dia seguinte. Liguei pra funerária, e Aldir me ligando sem parar pra saber de tudo. A funerária ligou pro celular do motorista que levava Ceceu pros preparativos. O motorista me ligou. Acertamos preço pra que ele desse meia-volta e tomasse o rumo do cemitério em Botafogo. Cheguei cedo no São João Batista, onde fica o jazigo da família e obtive sinal verde pro enterro no mesmo dia às quatro da tarde. Fui dando as notícias ao Aldir, que vibrava:

– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!

Pouco depois das três chegou o corpo.

E pouco antes das quatro, Mello Menezes, Mary, filhas, netas, Maneca e ele, Aldir – com um sorriso de canto de boca que não esqueço.

Aldir carregava um isopor cheio de gelo e cerveja. Estendeu-me uma, deu-me um puta abraço, deu de se despedir do pai, ali mesmo, na entrada do cemitério, apontava pra mim e repetia:

– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!

De 2015 em diante, muitas vezes – muitas vezes! – Aldir fazia a blague:

– Edu, quando eu morrer quero que você providencie meu enterro exatamente como foi o do meu pai.

Eu ria, mandava ele à merda, e dizia que estava ali um pedido impossível de atender. Que ele era Aldir Blanc, que quando chegasse o dia, que haveria de demorar muito, o Rio de Janeiro e o Brasil promoveriam uma roda de samba de escol em cada esquina. Os bares ficariam cheios, os camelôs fariam a festa, as baianas venderiam pastel como nunca dantes e faltaria gato pra tanto churrasco. Falanges e mais falanges baixariam nas porta-bandeiras e o furdunço não teria hora pra acabar. Ríamos sempre, mas ele sempre voltava ao assunto.

– Você se vira, mas nem fodendo que eu quero velório!

Aldir era bruxo.

Letrou a morte da mãe.

Letrou a morte do pai.

Escreveu o roteiro de seu encantamento.

Despediu-se como quis e eu não pude nem fazer um último carinho naquela testa. Filho da puta!

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DO DOSADOR

  • Luiz Antonio Simas, meu amigo há mais de 10 anos, meu irmão, meu compadre e o homem que cuida de mim com a competência de sacerdote mais-velho, é um tímido e um modesto, embora os movimentos em torno dele façam parecer o contrário, razão pela qual não viria (e não virá) a público dizer o que eu disse a ele, a pedidos. Aldir Blanc, um de meus orixás vivos, com quem falo com freqüência (os assuntos vão do futebol à política internacional, dos livros à música, das mulheres aos escrotos da vida pública), mandou-me e-mail e pediu que repassasse o recado ao Simas, o que fiz prontamente. Eis o e-mail do Bardo da Muda: “Viu esse? Por favor, mande um tremendo abraço pro Simas. Ninguém está escrevendo como ele. Bj, Aldir.”. Referia-se, o Aldir, ao texto Brasil, um tremendo sucesso, publicado pelo Simas no Facebook. O portentoso texto – brilhante! – pode ser lido aqui. Era o que eu queria lhes dizer;
  • Ainda sobre Luiz Antonio Simas (ele, se quiser, que confirme): há mais de 10 anos, logo que eu o conheci, ainda não éramos íntimos, eu ainda não tinha recebido a honraria de ser nomeado padrinho-de-rua do seu Benjamin, disse a ele e à minha comadre, Candida: “Luiz Antonio Simas, com as proporções e as individualidades devidas e preservadas [tenho horror dessa coisa de sucessor, substituto e outros bichos], vai ser o Suassuna do Sudeste. Vai correr Brasil, de camisolão, cantando e encantando toda a gente que com ele esbarrar.”. Quando Sérgio Cabral (o pai, por favor) apresentou Aldir Blanc e João Bosco em 1972 na série Disco de Bolso, d´O Pasquim, disse algo assim: “Quando o Brasil inteiro reconhecer a genialidade de Bosco e Blanc como a maior dupla de parceiros da música brasileira quero esse mérito, o de ter dito primeiro.”. Cito de cabeça, mas foi algo assim. Com o Simas, podem apostar, vou querer o mesmo mérito;
  • Eis que tem início, hoje, a Semana Santa. Hoje, a Missa do Lava-Pés. Amanhã, a Procissão do Senhor Morto, no Sábado de Aleluia a missa do Fogo Pascal, e no domingo de Páscoa serei um sobrevivente renascido depois da Quaresma, 40 longos dias de holocausto. Não sou católico, quem me acompanha sabe. Mas mora em mim, eternizada, as Semanas Santas da minha infância que, com a graça dos deuses, foi uma zorra na matéria: minha bisavó e minha tia Hidinha, católicas fervorosas, cumpriam a Quaresma, vestiam preto na Sexta-Feira Santa, a casa de meus avós (com quem as duas moravam) era um silêncio agudíssimo em respeito à data. Meu avô dizia-se católico, respeitava o silêncio das duas mas não me recordo dele tão envolvido com a data. Vovó, por sua vez, espírita fanática, tinha certa dó de ver a mãe e a tia ainda tão presas aos rituais da Santa Igreja Católica. Meu tio Carlos Henrique, irmão de vovó, também respeitava a liturgia da mãe e da tia mas gostava mesmo era da umbanda, vestia branco às sextas-feiras (incluindo a Sexta-Feira Santa, o que gerava leve reprimendas de minha bisavó consubstanciadas num balançar de cabeça com os olhos fechados), recebia o Caboclo Tupiara com quem eu trocava altos papos, meu pai depois deu de ser cavalo do Caboclo Tupinambá, minha avó não dispensava um passe do caboclo – qualquer um deles – com um dos livros do Kardec debaixo do braço, meu avô não dizia nada (era um calado) mas fazia o sinal de cruz sempre que passava por uma igreja. Ah, sim, a Penha, que trabalhava na casa de meus avós, tinha um cabelo que ia até a altura dos joelhos e é a primeira e mais remota lembrança de tenho de uma pentecostal fanática;
  • Isso pra não falar da banda paterna. Avós judeus. Minha avó freqüentava, escondida de meu avô, um centro espírita na Praça da Bandeira (moravam na Tijuca). O Clube Monte Sinai era quase que o playground de minha casa, o que significa dizer que a imensa maioria dos meus amigos de infância era judia, que fui a dezenas de Bar-Mitzva em praticamente todas as sinagogas da cidade (o que fez com que, até hoje, eu recite trechos da Torá num ídiche de causar inveja em israelense nativo) e sempre com aquele drama que me acompanha, de certa forma, até hoje: “Eduardo Goldenberg? Judeu, né?”. Daí eu conto toda a ladainha numa tentativa que não cessa de fazer com que eu mesmo compreenda quem sou e que fruto deu esse caldo todo, uma vez que eu me comovo feito o diabo na Semana Santa, choro às escâncaras no Círio de Nazaré, bato cabeça pra Ogum, meu pai, faço ebó quando Ifá manda, converso com minha avó à noite, rezo de mãos dadas com a Morena e vou assim, por aí, eternamente assustado e assombrado como o menino de calças curtas e camisa listrada que renega meus 48 anos de idade.
  • Até.

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ALDIR BLANC – DECLARAÇÃO DE APOIO

Em 1979, quando o Brasil já enfrentava, há mais de 15 anos, os horrores da ditadura, Elis Regina cravou no imaginário popular, para todo o sempre, uma obra-prima que viria a ser considerada, anos depois, o Hino da Anistia. Era O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Aldir, genial como sempre, dizia saber “que uma dor assim, pungente, não há de ser inutilmente.”.

Em 2010, quando a eleição presidencial estava para ser decidida no segundo turno entre Dilma Rousseff e José Serra – e quando Marina Silva e o PSOL mantiveram-se covardemente neutros – tive a honra de expôr, aqui no Buteco do Edu, a declaração de voto do bardo da Muda, meu amigo, um de meus orixás vivos, Aldir Blanc – aqui.

Agora, às vésperas do segundo turno entre Dilma Rousseff e Aécio Neves, outra vez entre o PT e o PSDB, exatos 4 anos e um dia depois, é com bastante emoção e orgulho que exibo, em primeira mão, a declaração de apoio de Aldir Blanc à reeleição de Dilma Rousseff.

E que essa declaração corra a grande rede para que o Brasil tome conhecimento da posição tomada – e não poderia ser diferente – por um dos maiores artistas populares do Brasil. Obrigado, Aldir! Saravá!

declaração de apoio de aldir a dilma

Até.

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ALDIR BLANC E ANESCAR, CRIADOR E CRIATURA

A cidade do Rio de Janeiro viveu, na noite de ontem, um momento mágico e por uma razão muito simples: Aldir Blanc esteve na rua. Mais precisamente no bairro do Leblon, na livraria Argumento, para prestigiar o lançamento do livro Aldir Blanc – Resposta ao tempo, do jornalista Luiz Fernando Vianna. Não é meu papel, tampouco minha intenção, fazer o registro jornalístico da noite (feito aqui, pelo Sidney Rezende). Quero mesmo é lhes contar a história de um reencontro que eu, não escondo meu orgulho por isso!, arquitetei. Antes, porém, vamos ao ano de 2009.

Passamos a madrugada de 04 para 05 de agosto de 2009, eu e Leo Boechat, no bunker do Blanc, na Tijuca (leiam aqui sobre a inacreditável noite).

Aldir e Leo não mais se encontraram desde aquele agosto de 2009…

Deu-se que passou o tempo e poucas semanas depois da morte da Dani, em julho de 2011, acordei destruído determinado dia, ainda esfacelado por conta de tudo aquilo. Como “cada um tem a própria receita pra combater a desgraça”, um dos versos blanquianos que repito como mantra, ancorei no Bar Britânia, na Tijuca, pela manhã, a fim de combater, à base de ostras e cerveja, a dor que me consumia. Leo Boechat ligou-me, sacou o clima (coisa de craque) e disse:

– Tô indo praí.

Em menos de uma hora bebíamos juntos. Leo, profundamente alérgico a frutos do mar (e eu acho que foi pra me agradar, sei lá!) disse à certa altura que comeria “só a pontinha de uma ostra”. Assim foi feito e em segundos meu compadre estava vermelho (tendendo ao roxo), dramaticamente pondo as mãos no pescoço e tossindo. Liguei, imediatamente, pro meu Orixá vivo:

– Aldir? Tu lembra do Leo, aquele meu amigo que esteve aí no dia da entrevista do João?! – ele, do outro lado da linha, lembrou-se no ato.

Segui:

– Tava bebendo comigo, é alérgico a frutos do mar, comeu uma ostra e está tod… – fui interrompido.

– Leva o cara pro hospital agora! Agora! Ele vai morrer! Vai morrer!

Enquanto isso, Leo atravessava a rua de volta trazendo uma caixa de Polaramine, ainda vermelho e já tendendo ao cor-de-rosa. Explodiu meu celular, era o Aldir:

– E aí? E aí?

Contei tudo, atualizei o boletim, passei o telefone pro Leo (dia desses conto como também já tive consultas profícuas com o Aldir por telefone), desligamos, continuamos a beber, a tarde começou a cair como um viaduto e o telefone tocou de novo. Aldir, audivelmente emocionado:

– Edu…

– Oi.

– Eu sabia, eu sabia…

Fiquei em silêncio esperando…

– O Leo é o meu compadre Anescar do samba com o João… Escrevi sobre ele muito antes de conhecê-lo!

Explodi de rir e fiz o Leo explodir comigo diante da genial sacada do genial bardo.

Ontem, pouco antes de sairmos da livraria, minha Morena – que ganhou um abraço-benção do Aldir que quase me derrubou… – disse:

– Uma foto, uma foto de vocês três!

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Fez a foto.

E o Aldir, que já havia dedicado o livro do Leo para o Anescar, postou-se entre nós, abraçou-nos e disse: vamos cantar o samba que eu fiz pra ele.

Taí o registro.

Volto a falar sobre a noite de ontem. Por tudo, profundamente emocionante para mim.

Até.

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ESSE É O SOM DA MINHA TERRA

Eis-me de novo, hoje, recorrendo aos versos daquele que considero o maior dentre nossos letristas (e vejam que somos uma nação farta nesse quesito!): Aldir Blanc. Aliás, breve pausa: dá-me um prazer tremendo espalhar as letras de Aldir por aí (leiam Aldir Blanc e o ECAD, aqui). Não é raro que alguém me escreva pra dizer – “oh, eu não sabia que essa letra era do Aldir…” – e está aí, nessa revelação, o nascedouro desse prazer. O letrista, o poeta, o “ourives do palavreado” (apud Dorival Caymmi, sobre Aldir), a antítese da estrela que sobe ao palco, que grava o disco, que faz shows pelo mundo afora, é, nesse ponto, um injustiçado. E que seja, então, o Buteco, humilde trincheira com o objetivo de expôr a genialidade do caboclo.

É que, como eu lhes disse ontem, aqui, vem chegando o Carnaval – faltam agora apenas cinco dias, pouco mais de cem horas – e a minha ansiedade vai tomando proporções incomensuráveis. Não vejo a hora de mergulhar como um louco na espiral curativa dos cordões e dos blocos, misturado à ralé, à gentalha, aos prisioneiros, aos exus catimbeiros a fim de que a forja colorida me remodele a alma que me vaza em forma de sangue há muito tempo – e que quase me cega.

Com vocês, meus poucos mas fiéis leitores, na voz da Clarisse, do disco Novos Traços, Cravo e Ferradura, de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc.

Primeiro foi um som leve
de peneira peneirando
o mar de idéias de um louco,
a água dentro do coco,
foi crescendo entre palmeiras
e tambores batucando.

Um balbucio, um rugido
um som de tragédia e circo,
um som de linha de pesca,
som de torno e maçarico.
Veio um som de escavadeira,
bate-estaca, britadeira,
um som que machuca e lanha,
um som de lata de banha.

Som de caco, som de tralha,
era um som de mutilados
quebrando gesso e muleta,
um som de festa e batalha.

Ah, era um som que me orgulhava,
som de ralé e gentalha,
era o som dos prisioneiros,
som dos exus catimbeiros,
ai!, era o som da canalha:
trovão, forja, baticum,
som de cravo e ferradura
Dez mil cavalos de Ogum!

Esse é o som da minha terra:
som de andaime despencando,
de encosta desmoronando,
de rios violentando
as margens do meu limite.

Samba, samba, samba,
pulsas em tudo que existe,
vazas se meu sangue escorre,
nasces de tudo o que morre.

Até.

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DAS CINZAS À RESSURREIÇÃO

Não é a primeira vez e não será a última que recorro aos versos de meu orixá vivo, Aldir Blanc, para compreender a vida, seus movimentos e meu momento. É que vem chegando o Carnaval e eu ando, assim, comovido feito o diabo. Fiz minha estréia hoje no Gigantes da Lira (fotos aqui), um amistoso, é verdade, porque a coisa começa à vera, mesmo, no sábado de Carnaval, com a saída do Cordão da Bola Preta, como lhes contei aqui. E durante o desfile de hoje, e o Gigantes da Lira é um bloco infantil, a criança é sua tônica, fui de novo uma criança no meio de tantas crianças, ansiosa pelo milagre do Carnaval. Sim, meus poucos mas fiéis leitores, porque eu creio no milagre do Carnaval – e mais do que crer, eu preciso dele!

O Carnaval – relicário de uma tradição – é a vitória da ilusão, e eu preciso, durante o tríduo, ser bordadeira, ser carpinteiro, ser escultor e artesão para armar um novo homem, à moda do Rio de Janeiro que se renova e se reinventa a cada golpe que recebe. Preciso ser ainda mais passional do que já sou, ter mesmo veias de serpentina, alma de isopor e purpurina para galgar os degraus que me levarão, após a missa campal do povo brasileiro, ao altar profano a fim de merecer a hóstia consagrada e a dádiva do milagre que há de acontecer com a intervenção do deus maldito – das cinzas à ressurreição.

Deixo com vocês, na voz de Beth Carvalho, melodia belíssima de Moacyr Luz, a sabedoria do bardo tijucano, Aldir Blanc. Há de ser – será! – uma profecia.

Carnaval
Relicário de uma tradição
Imortal vitória da ilusão
Carnaval, coração…
Bordadeira e carpinteiro
Armam outro Rio de Janeiro
Escultor, artesão
Carnaval passional:
Veias de serpentina
A alma de isopor e purpurina…
Carnaval, missa campal do povo brasileiro
Onde a hóstia sagrada é o pandeiro
Carnaval, celestial império do trambique
Onde o crente idolatra o repique
Rio que passa e que não passou
Chama devassa purificou
O meu sentimento na contradição de um ritual
Carnaval anormal:
O menino é menina
E o doutor Juiz é a bailarina…
O carnavalesco é um deus maldito
E isso é que é bonito: recriar a criação
Pamplona, Julinho, Joãozinho Trinta dão a pinta
Que nada se acaba quando é feito por paixão
Arlindo Rodrigues, Fernando Pinto, isso é lindo!
– das cinzas à Ressurreição!

Até.

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BOLA PRETA

Corria o ano de 2009, dia 20 de janeiro, e lá estava eu – como sempre – na festa de aniversário da livraria do meu coração, a mais carioca das livrarias da cidade, a Folha Seca, comandada pelo Comendador Rodrigo Ferrari. Samba comendo solto do lado de fora, na rua do Ouvidor, até que a noite foi caindo, restamos uns poucos no interior da livraria e encostei naquele sagrado balcão com meu copo americano e minha cerveja.

Chegou-se o legendário Zé Leal, chegou-se Gabriel Cavalcante (quando ainda não me era hostil) e chegou-se, também, o querubim Tiago Prata, apelido que lhe foi dado por Aldir  Blanc (vejam aqui como foi cravado o apelido).

Alguém fez a sugestão. Bola Preta, de Jacob do Bandolim e com letra póstuma de Aldir Blanc, genial como de praxe, e contando toda a história do histórico cordão. Ouso dizer, sem medo do erro, que só eu sei, de cabeça, de cabo a rabo, a imensa letra do bardo tijucano. Com o auxílio desses três craques – e eu não me lembro quem foi que registrou o momento – mandei bala.

Estávamos a poucas semanas do Carnaval, e o Bola Preta já fazia de mim um ansioso – tanto que cantei emocionado.

Até.

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O BÊBADO E A EQUILIBRISTA

Quando eu escrevi Uma noite na Tijuca, aqui, contando sobre a inacreditável tarde, a inacreditável noite que viveu-se, no dia 10 de setembro de 2007, no Estephanio´s Bar, durante as filmagens do filme Praça Saens Peña, de Vinícius Reis, exibi, também, um vídeo gravado naquela tarde, no qual o artista plástico Mello Menezes, acompanhado pelo violão certeiro de Tiago Prata (chamado de neto, naquela noite, por Aldir Blanc, está no texto!), interpreta de forma lancinante a belíssima Valsa do Maracanã, de Paulo Emílio e Aldir Blanc (é igualmente lancinante a interpretação do Prata, um craque).

Quero lhes contar, rapidamente, sobre a relação entre o Estephanio´s Bar e o Aldir.

O Estephanio´s, já lhes contei, ficava na esquina das ruas Ribeiro Guimarães e Artistas. O Aldir, que escreveu, inclusive, o belíssimo livro Vila Isabel – Inventário da Infância, passou grande parte de sua infância a poucos metros dali, na rua dos Artistas número 257, onde moravam seus avós Aguiar e Noêmia. Aquele bar era, portanto, de certa forma emblemático pra ele. E uma curiosidade: bares têm, quase todos, imagens de santos em seus balcões, em suas paredes, em seus altares pagãos. Lá, no Estephanio´s, tínhamos uma imagem gigantesca do Aldir Blanc, pairando sobre as cabeças dos freqüentadores. Talvez por isso o diretor do filme, Vinícius Reis, tenha escolhido o Estephanio´s para a gravação das imagens de cenas do filme que juntavam o ator Chico Diaz contracenando com o Aldir, no papel dele mesmo.

E o Aldir, se não era exatamente uma figura fácil entre os freqüentadores, até que foi muitas vezes – muitas! – ao Estephanio´s – tanto no antigo, na rua Visconde de Itamarati, como no da rua dos Artistas. Foi, cantou, tocou, varou noite, protagonizou muitas das mais bacanas noites naquele bar que, como lhes disse aqui, fez história na Tijuca. Foi até enredo do bloco do pedaço, o Segura pra não cair, cujas fotos disponibilizei aqui, e escreveu aquela que é a mais bela página da história do bloco: quando o enredo, no ano seguinte, em 2005, foi o João Bosco, Aldir desfilou e, à certa altura fez sinal e pediu silêncio à bateria. Chamou o violão do bloco, disse algo em seu ouvido, fez o mesmo com o João e os dois, para delírio absoluto dos milhares de presentes, cantaram juntos O Mestre-Sala dos Mares. Vamos voltar à noite do dia 10 de setembro de 2007.

Uma vez desmontado o set de filmagens, ficamos todos para a noite que se anunciava inesquecível.

O que quero lhes dizer, hoje, e lhe mostrar, é um tesouro. Ontem à noitinha a Gisela Camara, assistente do Vinícius Reis, avisou-me que tinha descoberto um vídeo muito especial, encontrado por acaso enquanto remexia em suas coisas, seus registros, seus materiais. E era, de fato, um tesouro.

O vídeo mostra Aldir Blanc cantando um de seus clássicos, O Bêbado e a Equilibrista, acompanhado, mais uma vez, pelo genial Tiago Prata, à direita do bardo tijucano, de vermelho. À direita do Prata, eu. À minha frente, à esquerda do Aldir, Mary Blanc, que dá uma força ao Aldir, travado pela emoção à certa altura da letra (notem que a voz falha quando canta-se o “irmão do Henfil”…). Vê-se Rodrigo Ferrari, já quase no final do filme, no canto à direita da tela. E a voz que emenda com o tema de Chaplin, terminada a música, é do grande Mello Menezes.

Meus agradecimentos públicos à Gisela e a Tainá, que fez o registro. Um momento, sem sombra de dúvida, pra sempre na minha melhor memória, e que agora divido com vocês, meus poucos mas fiéis leitores.

Até.

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