A MORTE E AS MORTES COM BLANC

Há oito dias que o ar está ainda mais irrespirável no Brasil. Há oito dias cravou-se em mim uma certeza de forma absoluta: meu celular nunca mais vai tocar com o nome Aldir Blanc piscando na tela, o que acontecia diariamente, praticamente todos os dias, desde 1995. Conheci Aldir, de ser apresentado, em 1994. Mas foi a partir do ano seguinte, 1995, que passei a receber ligações diretamente de seu bunker, na rua Garibaldi, a última delas no dia 08 de abril desse inacreditável 2020.

Há oito dias que penso em escrever o que escrevo agora – até mesmo como uma forma de aliviar quem tanto maldisse as condições de sua morte, as condições de sua despedida (que não houve, salvo para a mulher, duas das filhas e uma das netas), a falta de homenagens e que tais. Houve, é verdade, o inesquecível gurufim virtual promovido pela turma do Bip Bip, capitaneado pelo Prata, mas sem o corpo presente, condição de um gurufim de verdade.

E lembrei-me, enquanto pensava exatamente no que escrever, de dois momentos que me marcaram muito, talhados por ele, pensados por ele, o Bardo da Muda.

Estamos em 2002.

Toca meu telefone logo cedo, e é o Aldir:

– Edu, você tem algum amigo médico a quem possa pedir um troço, certo de que ele não te diria não? Tem que ser médico, preciso desse cara todo de branco, ainda hoje pra…

– Serve dentista? Tenho um amigo que jamais me negaria um pedido.

Resumo da ópera.

Pouco antes das cinco da tarde eu e Vidal, meu amigo mais antigo, ele todo de branco, estávamos bebendo Jack Daniel´s com o Aldir em seu escritório. Uma garrafa inteira depois tomamos a direção da Maia Lacerda. Aldir foi, do banco de trás – eu dirigindo, Vidal de carona -, repassando os detalhes com o Vidal.

Tomamos uma cerveja no botequim ao lado do edifício onde viviam dona Helena e Ceceu Rico, pais do Blanc.

Subimos.

Ceceu abriu a porta tenso. Aldir apresentou o médico:

– Doutor Vidal, uma sumidade.

Tomamos o rumo do quarto do casal.

Vidal examinou dona Helena, fez festinha em seu joelho (seguindo à risca o roteiro blanquiano), ergueu-se, pôs as mãos no ombros do Ceceu e disse o texto:

– Dona Helena está ótima, seu Alceu, ótima!

Saímos tendo deixado Ceceu aliviado e dona Helena com a expressão menos carregada, ela que morreria no dia seguinte.

Aldir ligou pra me dar a notícia, me mandando (de novo) agradecer profundamente ao Vidal por conta da última noite da mãe com alguma dose de esperança, que ele atribuía ao prognóstico dado pelo Vidal depois de muito uísque e cerveja.

Estamos em 2015.

Durante o mês de maio fui alguma vezes ao Hospital da Beneficência Portuguesa, na Glória, pra visitar o Ceceu – sempre a pedido do Aldir.

Até que acordei, no dia primeiro de junho, com um telefonema dele:

– Edu? Meu pai morreu.

Eu ainda começava a lamentar quando ele emendou:

– Mas um papa-defunto seqüestrou o corpo.

– Oi?!

– É, tá levando meu pai pra Belford Roxo pra dar banho e o cacete, pra só enterrar amanhã, depois do velório. Nem fodendo, Edu! Quero enterrar meu pai hoje, sem velório, sem missa, sem porra nenhuma!

Inteire-me rapidamente do ocorrido e tratei de traçar um plano pra agilizar o enterro praquele mesmo dia. Peguei com a Mary o telefone da funerária que, autorizada por ela, levava Ceceu pra Belfort Roxo com tudo acertado pro velório e enterro no dia seguinte. Liguei pra funerária, e Aldir me ligando sem parar pra saber de tudo. A funerária ligou pro celular do motorista que levava Ceceu pros preparativos. O motorista me ligou. Acertamos preço pra que ele desse meia-volta e tomasse o rumo do cemitério em Botafogo. Cheguei cedo no São João Batista, onde fica o jazigo da família e obtive sinal verde pro enterro no mesmo dia às quatro da tarde. Fui dando as notícias ao Aldir, que vibrava:

– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!

Pouco depois das três chegou o corpo.

E pouco antes das quatro, Mello Menezes, Mary, filhas, netas, Maneca e ele, Aldir – com um sorriso de canto de boca que não esqueço.

Aldir carregava um isopor cheio de gelo e cerveja. Estendeu-me uma, deu-me um puta abraço, deu de se despedir do pai, ali mesmo, na entrada do cemitério, apontava pra mim e repetia:

– Eu sabia que tu ia resolver essa porra!

De 2015 em diante, muitas vezes – muitas vezes! – Aldir fazia a blague:

– Edu, quando eu morrer quero que você providencie meu enterro exatamente como foi o do meu pai.

Eu ria, mandava ele à merda, e dizia que estava ali um pedido impossível de atender. Que ele era Aldir Blanc, que quando chegasse o dia, que haveria de demorar muito, o Rio de Janeiro e o Brasil promoveriam uma roda de samba de escol em cada esquina. Os bares ficariam cheios, os camelôs fariam a festa, as baianas venderiam pastel como nunca dantes e faltaria gato pra tanto churrasco. Falanges e mais falanges baixariam nas porta-bandeiras e o furdunço não teria hora pra acabar. Ríamos sempre, mas ele sempre voltava ao assunto.

– Você se vira, mas nem fodendo que eu quero velório!

Aldir era bruxo.

Letrou a morte da mãe.

Letrou a morte do pai.

Escreveu o roteiro de seu encantamento.

Despediu-se como quis e eu não pude nem fazer um último carinho naquela testa. Filho da puta!

6 Comentários

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6 Respostas para “A MORTE E AS MORTES COM BLANC

  1. Texto maravilhoso. Linda homenagem.

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  3. Triste, como toda despedida, mas emocionante! Digno de Aldir Blanc, que não quis velório.

  4. Thiago

    Que texto! Sei nem o que falar…

  5. RUY EDUARDO DEBS FRANCO

    Belíssimo texto Edu.
    Adeus ao amigo Aldir Blanc que eu gostaria de ter dado, não como amigo pois a vida não me deu essa sorte, mas como fã e admirador.

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