Em tempos de pandemia, convenhamos, festa junina é um troço tão distante quanto civilidade no Palácio do Planalto ocupado por Jair Bolsonaro. É utopia em estado bruto, sonho impossível. Porém, ai, porém (apud Paulinho da Viola), eu vivi o impossível. Explico, não sem antes um pequeno arremesso em direção ao passado.
Era 10 de outubro de 2017. Eu estava trabalhando quando me chega uma mensagem no celular – WhatsApp. Era um vídeo enviado pela Morena. Ela, sozinha, numa espécie de filme-selfie, dançava “São João, Xangô menino” cantado por Maria Bethânia. Logo em seguida, uma mensagem curta dizia algo como “eu tenho certeza de que estou grávida”. Chorei, bem me lembro. Até porque poucas vezes a vi tão linda quanto naquele vídeo, os olhos postos como luz primitiva, uma serenidade que eu desconhecia, a mão livre afagando a barriga, o ventre, o por vir.
O exame feito poucos dias depois confirmou: grávida.
Julho de 2020.
Leonel tem pouco mais de 2 anos, estamos em meio à pandemia, em isolamento social, todas as tensões tensionadas, a barra pesando de um jeito que nem sei, a cabeça a mil, é sábado e eu preciso de umas horas pra organizar contas, papéis, me tranco no quarto e Morena e Leonel estão na sala com Ana Cláudia e Rodrigo, a cunhada e o sobrinho, e eu ouço os burburinhos, os gritos, a farra, e eu preciso de sossego ou não termino nunca, até que a porta se abre e ela me pede que eu faça pipoca. Pipoca? Pipoca.
Saio do quarto, tomo a direção da cozinha, faço a pipoca e volto pra função sem olhos de ver, sem ouvidos de ouvir, até que se passa mais meia-hora, ouço a porta bater, é ela de novo com ele no colo.
– Vem, vai começar.
Eu vi.
Bandeirinhas sobre a mesa cruzavam a sala. Pipoca, queijadinha, pão de queijo, cachorro-quente, bolo de fubá e paçoca. Leonel de chapéu de palha, bigode feito a lápis, Morena à caráter, Gonzagão em alto volume e eu fui arremessado pra bem longe, Campo Grande, Clube 34, fogueira, balões cruzando os céus, e eles dois dançavam abraçados, os bracinhos dele em volta do pescoço dela, e o pescoço dela era a barra da nuca nua, e tocou “São João, Xangô Menino”, e eu tive vontade de dizer ao piá que aquilo tudo era mágica – não disse, mas era.
Fogos de artifício espocavam, eu ouvia o estalar das toras de madeira da fogueira que ardia no meio da sala, e havia os cheiros, o cheiro de milho, o cheiro de pólvora, de amendoim, de querosene, e aquele moleque não sabia, ou sabia?, que aquele fogo que ardia tinha nome.
As imagens se sobrepunham: Morena e ele dançando, Morena dançando sozinha, suas mãos em torno do corpinho dele, uma das mãos no celular e a outra acarinhando a própria barriga, Bethânia, e ele pousa a cabecinha em seu ombro, ele a beija, o bigode borra, e eu choro por dentro porque as dores do mundo têm me impedido de qualquer outra coisa que não tentar dar conta de todas elas.
Um dia hei de contar a ele que ela fez São João dentro de casa por amor à vida, por amor a ele, por amor à festa – e que a festa foi tão linda quanto eram as festas em Campo Grande quando eu tinha sua idade.
Quero ser sempre o menino, Xangô.
Lindo, lindo!!!
Olhos marejados aqui… Vi a festa naquela sala, vi a dança e os sorrisos.
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