Quem me lê sabe, conforme contei aqui, que na semana passada matou-se o Ernesto. Foram – o texto é rico em detalhes – mais de 25 anos de um silêncio aterrador imposto pelo próprio pobre-diabo. Um silêncio que, e é isso que quero lhes contar, não compareceu ao velório-gurufim do sujeito.
Providenciou-se, a pedido do de cujus, um aparelho de som portátil que tocou, repetidas vezes, o samba-hino que fez ecoar “envelheci mas continuo em exposição, a ex-mulher me chama de sardinha de balcão” pelos corredores das capelas. A assistência do velório era composta pelos mesmos que freqüentavam o balcão que assistiu, durante anos, ao pobre-diabo beber (e sofrer) calado. E pela viúva (estado civil renegado pelo morto) que, a bem da verdade, não sabia bem o que fazia ali.
Quando eu cheguei ao Caju deparei-me com a seguinte cena: o defunto cercado por bêbados inconsoláveis, diversos copos americanos apoiados nas bordas do caixão, enfeitadas com paninho de renda branca, o aparelho de som equilibrado na proa, sobre a cabeça do Ernesto, e a Jurema, a “ex-mulher” (estado civil requerido pelo morto), sentada sozinha num banquinho de madeira encarando um a um. Não recebeu, registre-se, um só cumprimento. Em compensação, uma saraivada de olhares de ódio.
Danilo, garçom do Bar do Marreco, o bar de fé de Ernesto, exercia o ofício mesmo no cemitério. Atravessava constantemente a rua para buscar cerveja no trailler diante da última morada e servia, com competência, os inconsoláveis que, por sua vez, tinham uma sede de anteontem. Seu Brasil, síndico do buteco da Haddock Lobo com a Caruso, ficou responsável pelo pagamento da dolorosa. Mais que isso, organizava, com sua autoridade incontestável, o furdunço. Não permitia fotografias, a pedido de Jurema (e diga-se que foi o único pedido da “ex-mulher” que foi atendido). Os demais – “tirem essa música”, “respeitem o Ernesto” (este, de um cinismo agudo) e por aí – foram solenemente ignorados.
A certa altura chegou um mulato trazendo no ombro uma coroa gigantesca de flores (a primeira e única). A seu lado, um sujeito com vitiligo carregava o cavalete. Dezenas de pares de olhos acompanharam a operação. Montou-se o cavalete ao lado do caixão e o mulatão apoiou a coroa. Eis a inscrição da fita rôxa: “Saudades eternas de tua filha Zafira e de teu genro Castilho”. Foi demais para a assistência. Como cães famintos diante de um naco de carne, partiram pra cima da última homenagem. Descontrolado – não consegui saber quem tomou a iniciativa -, alguém enterrou a coroa na cabeça de Jurema. Eu só ouvia os gritos:
– Dança bambolê com essa porra, sua vaca!
– Toma a bóia pra não se afogar no mar de merda, vagabunda!
E só seu Brasil, mais uma vez, conseguiu controlar a malta. Houve uma pequena reunião num dos cantos da capela e tomou-se a decisão: puseram de volta a coroa no cavalete sem a fita, que foi furiosamente arrancada. Improvisou-se, com papel higiênico, nova dedicatória: “De teus amigos de balcão, a derradeira homenagem”.
Jurema chorava e seu choro despertava as mais variadas reações. A grande maioria cochichava… “são lágrimas de crocodilo”. Um outro, bêbado de forma aviltante – que se dizia kardecista -, tentava contornar a revolta coletiva dizendo “sempre chega a hora do arrependimento”. Tudo esfumou-se quando chegou seu Cláudio, freguês assíduo do mesmo buteco, trazendo duas quentinhas numa sacolinha branca. Estacou diante da popa do caixão e disse, de olhos marejados:
– O torresmo e a moela…
Foi a mais impactante cena da cerimônia. Era mais um pedido de Ernesto que seria atendido pelos companheiros de botequim. Deu-se o surreal. A assistência discutia a melhor posição dos pratos no interior da urna funerária de madeira quando decidiram o inconcebível. Uma freqüentadora assídua do mesmo balcão-confessionário abriu a boquinha do morto. Outro, com extremo e desnecessário cuidado, pôs, com as mãos, um punhado de torresmo e outro de moela sob a língua do de cujus. Neste momento – e me perdoem a franqueza em nome da precisão do início ao fim – Jurema vomitou.
Alguém virou as duas palmas das mãos de Ernesto para cima. E, como um sacerdote pagão, pôs um dos pratos sobre a mão esquerda, o outro sobre a direita. Explodiram as palmas no ambiente.
Um funcionário da Santa Casa adentrou a capelinha e fez um sinal. Era o momento de fechar o caixão. Guinchos de choro, urros de saudade, e foi quando eu parti. Fui, confesso, o único. Sou um poltrão na hora de encarar esse momento. Ninguém arredou o pé.
Mentira minha. Seu Brasil, aos prantos, deu a ordem em direção à “ex-mulher”:
– Agora, fora! Chispa daqui.
A massa considerou ofensivo à memória de Ernesto a presença de Jurema no instante do enterro propriamente dito. Eu estava fazendo sinal pro táxi quando ouvi a voz por trás de mim:
– O senhor me dá uma carona, moço?
Abri a porta, entrei no banco da frente e disse ao motorista:
– Tijuca, por favor.
E lancei um olhar de profundo desprezo em direção à “ex-mulher”.
O Ernesto não me perdoaria a gentileza imerecida.
Até.
>Mais uma vez, muito bom.Edu, e o Paulo, o magnifíco do Rio Brasília, ele não foi no evento, digo velório ? ehehehe
>Teu texto, esse sim, eh a grande e verdadeira homenagem ao Ernesto.R.Pian
>Enterro pra deixar Quincas Berro D'Água com inveja.
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