Vocês que têm me acompanhado por aqui bem sabem que sou um homem de fazer confissões. Sabem, mais que isso, que tenho me dedicado, nos últimos dias, a fazer confissões arrancadas da gaveta da memória, fruto de intensos e violentos arremessos em direção ao passado que não me trai. Aqui e aqui, mais recentemente, tratei de um tema importante trazido à tona pelo historiador Luiz Antonio Simas em seu blog Histórias Brasileiras: a importância do uso do medo como instrumento pedagógico na formação do caráter do homem. Hoje, se vocês me permitem, vou fugir um pouco do medo mantendo-me fiel ao tema pedagogia. Antes, porém, permitam-me um não tão breve intróito.
Estava eu em casa, ontem, quando convoquei minha menina e minha sogra para o jantar. Sentei-me à mesa de pijamas (uso pijama) e deu-se em mim, antes mesmo da primeira garfada, um guincho que me lançou para 1985 (impossível esquecer o ano, estávamos a poucos dias do primeiro Rock in Rio). Morávamos na Professor Gabizo, quase esquina com a General Canabarro. E me veio à mente uma cena dessas que, contadas por alguém sem crédito, gera a reação da assistência:
– Mentira…
Disquei pra mamãe. Perguntei:
– Mamãe, posso contar no blog aquela história assim, assim, assado? – se eu lhes contar agora o que é, a graça vai embora.
Ouvi mamãe gargalhando do outro lado da linha. Ela, muito sábia, respondeu depois de uns segundos:
– Claro que pode! Rir ainda é um fantástico remédio!
Desligamos. De lá pra cá recebi telefonemas de meu pai (que não atendi de propósito imaginando o pedido de veto), e-mails, sinais de fumaça, mas acordei determinado a lhes contar sobre uma sensacional passagem envolvendo mamãe e seus métodos eficazes para educar os três filhos (sou o mais velho).
Hoje cedo, eu ainda tomava meu café preto no bar do Marreco, estrilou meu celular. Era meu dileto amigo e conselheiro, Aldir Blanc. Contei-lhe tudo, timtim por timtim. Só ouvi os guinchos e as gargalhadas do outro lado. Até que, ainda há pouco, chegou-me por e-mail um manifesto assinado pelo bardo:
“MANIFESTO que o direito do advogado, ativista político, compositor e cantor Eduardo Goldenberg escrever em seu blog sobre os seios da senhora mãe dele, minha querida amiga Mariazinha, é inalienável. Afinal, eles o amamentaram!”
Chorei, confesso, diante de tamanha manifestação de solidariedade.
Pouco depois do referido e-mail, foi Mariana Blanc, sua filha, minha querida comadre, quem escreveu em seu mural no Facebook:
“Eu não sei no Twitter, mas, nos telefonemas do meu pai durante todo o dia (sim, são sempre vários), no topo dos tópicos estão… peitos. P-E-I-T-O-S. E a culpa parece ser do Eduardo Goldenberg, como sói acontecer! Hahahahaha”
Feito o intróito, vamos ao que quero lhes contar.
Mamãe, que recentemente completou 43 anos de casada com meu pai – um homem que carrega frases feitas nos bolsos como maços de dinheiro – teve três filhos. Eu, o mais velho, nascido em 1969, Fernando, o do meio, de 1971, e Cristiano, o caçula, de 1975. Entre mim e Fernando e entre Fernando e Cristiano mamãe ainda perdeu dois bebês, dois homens, o que comprova que mamãe veio ao mundo para criar meninos. Sintam o drama da filha única da dona Mathilde. Pois bem.
Desde que me entendo por gente mamãe tem uma queixa: homens que sentam-se à mesa para as refeições sem camisa. Papai, então, sempre foi um radical. Mamãe podia receber um rajá em casa; lá estaria meu pai sem camisa e descalço expondo os pelos e os pés enormes que lhe renderam, em tenra idade, o apelido de Abominável Homem das Neves. Pois sabem como é… Três meninos que têm na figura paterna a figura do ídolo… Sentávamos todos à mesa, para as refeições, nus da cintura pra cima. Café da manhã, almoço nos finais de semana, jantares, todos sem camisa. E mamãe, com a paciência de uma espírita resignada, comendo entre muxoxos:
– Vocês sem camisa… tremenda falta de respeito…
Sobre isso, breve pausa. Mamãe sempre diz isso:
– Não admito que chamem meus filhos de mal-educados. Eles podem, isso sim, não ter absorvido a educação que dei!
Corria o mês de janeiro de 1985. Havíamos acabado de mudar para o edifício Míriam, no número 359 da Professor Gabizo, recém-construído. Fazia um calor dos diabos, verão carioca…
Estávamos na sala, eu, meus irmãos e meu pai. Mentira. Estávamos todos na varanda, era nosso primeiro apartamento com varanda, e isso era um luxo que vou lhes contar… Ouvimos o grito da cozinha:
– Meninos! Tá na mesa!
Papai disse:
– Já vou! Meninos, vão indo… vou aproveitar mais 2 minutos da fresca… – e meteu metade do corpo pra fora da varanda.
Fomos em fila indiana. Eu, na frente, estaquei diante da porta. Virei a cabeça como um boneco e penso que tinha os olhos saltados pra fora do rosto (notem que eu tinha 15 anos de idade, Fernando tinha 13 e Cristiano, 9). Gritei:
– Pai?
E ele:
– Hã!?
– Vem aqui…
Papai – um dos homens mais apaixonados que conheço – fez tremer o edifício a passos largos:
– O que houve?
Apontei pra cozinha, ainda de pé diante da porta. Papai pôs a cabeça por cima de nós, mirou em direção à mamãe e soltou:
– Prrrrrrrrrr!
Explico o “prrrrrrrrrr”.
Papai sempre nos ensinou:
– Não se fala palavrão na frente da sua mãe! Palavrão é pra falar na rua, no Maracanã, entre os amigos. Na frente da sua mãe, nunca! Entenderam!
Vai daí que, em casos extremos, o máximo que ele se permitia era um “porra”, o mais doce dos palavrões. Mas nem assim, nem sendo o mais delicado, ele se permitia um “porra”, que virava “prrrrrrrrrr”. Entenderam? Vou seguir.
Mamãe estava sentada à mesa com a mesa posta: salada verde com tomate, arroz, feijão, bife acebolado e batata frita. E estava nua da cintura pra cima (estávamos todos, como de costume, sem camisa). Mexendo o gelo dentro de um copo longo de Martini, disse como se nada estivesse acontecendo:
– Vai esfriar! Vocês não vêm?
Papai, coitado:
– Pixuxa, minha filha, o que houve? – ele estava de joelhos diante dela.
– Dudu, Nando, Cris, venham, meus filhos, sentem-se! – os olhos de mamãe brilhavam.
Papai virou-se e tentou interromper nossa marcha:
– Não olhem, não olhem! Sua mãe está nua! Prrrrrrrrrr!
Ela ficou de pé e foi enfática:
– Nua? Estou sem camisa, como vocês. Sentem-se! – e sentou-se de volta.
Papai, em visível estado de choque, disse em nossa direção:
– Vão vestir uma camisa, já! Prrrrrrrrrr!
Mamãe foi dura:
– Não! Hoje, não! Vai esfriar a comida. Vamos todos comer sem camisa hoje!
Foi o mais estranho jantar de meus 42 anos. Papai, assim que sentou-se, deu início ao transe. Baixou Tupinambá na cozinha mas mamãe não deu refresco:
– Ô, caboclo, dá licença. O senhor cuida do espiritual que da etiqueta e da educação dos meus filhos cuido eu. Canta pra subir! Saravá!
O caboclo cantou pra subir, de fato.
Papai cortava o bife e mastigava aos prantos. Cristiano, o mais novo, ajeitava os óculos a cada minuto. Fernando me chutava por baixo da mesa e eu, já exibindo meu talento polemista, dizia para desespero de meu velho:
– Pô, mãe, tudo em cima aí, hein!
Mamãe recolheu os pratos, serviu a sobremesa – era gelatina e eu percebi, ali, na escolha do doce, um sentido estético sensacional – e depois disse afagando as mãos de meu pai, que fungava sem pudor:
– Gostou, meu filho?
E ele:
– Da comida?
E ela, exibindo os seios:
– Não, meu filho! De sentar-se diante de mim e dos meninos assim, sem camisa! – e deu de rir, feito Exu-Caveira (apud Aldir Blanc).
Papai:
– Nunca mais, Pixuxa, nunca mais… – e assoou o nariz com o guardanapo de papel.
Ela, de pé, servindo-se de mais Martini:
– Acho que vocês entenderam, certo, meninos?
De lá pra cá – e lá se vão mais de 25 anos – nunca mais comemos nem de camiseta. Faça sol, chova, seja verão ou seja inverno, nunca mais ousamos desrespeitar esse desejo, tão simples, de mamãe.
Até.