Há tempos que eu não citava seu nome aqui, ele que é um de meus orixás vivos, mestre e mentor, amigo de todas as horas e irmão na verdadeira e íntegra acepção da palavra: Fernando Szegeri, que nasceu – há testemunhas – já funcionário público, barbado, de óculos, e sábio, do alto da carapinha à sola das botinas imaginárias que veste todos os dias (sim, Fernando Szegeri tem a obsessão da botina).
Pois hoje, segunda-feira, senti aguda saudade pela manhã e lhe bati o telefone do balcão do bar do Marreco, durante o café preto de todos os dias.
Fernando Szegeri vem ao Rio desde tenra idade. E desde que nos conhecemos, em meados de 1999, sou eu a buscá-lo na rodoviária ou mesmo no aeroporto. E dá-se sempre a mesma cena. No que nos vemos somos dois bonecos infláveis de posto de gasolina, com os quatro braços branindo à espera do abraço que nos explicita a saudade mútua e permanente. E é sempre a mesma, sua primeira frase:
– Ah, o Rio de Janeiro… – e diz isso de olhos fechados, com lágrimas a lhe escorrer dos olhos, seguindo-se uma profunda inspiração, dessas de encher a caixa toráxica.
Ele sempre completa (a segunda frase também é sempre a mesma):
– Ah, o cheiro de mar do Rio de Janeiro…
Vai daí que eu digo sem medo do erro: não há carioca mais carioca que Fernando Szegeri. Morador de São Paulo, Fernando Szegeri é um permanente exilado, um turista triste em sua cidade natal, um pé que não cabe no próprio sapato, um desconfortado por conta de tudo.
Estar com ele no Rio significa ver, in loco, o quanto é derramada, desavergonhada e escancarada sua paixão pela cidade.
Com ele no Rio já vivi situações impressionantes e que geram sempre a mesma frase-padrão:
– Só no Rio de Janeiro! Só no Rio de Janeiro! Sabe quando isso seria possível em São Paulo?
Eu cumpro sempre o papel do coadjuvante e digo:
– Quando? Quando?
E ele, enchendo o peito de ar:
– Nunca! Nunca!
Eis que recentes episódios envolvendo o Bruno Ribeiro, meu mano de Campinas, me lembraram esse outdoor sonoro que o Szegeri acende com o neón das cordas vocais.
O Szegeri, quando vem ao Rio, tem apenas dois destinos como hospedaria: ou ele fica lá em casa ou ele se hospeda no Hotel Ferreira Viana, no Catete, na rua de mesmo nome. Ele tem, com o dito cujo, uma relação ancestral. E o Bruno Ribeiro – eis o porquê do gancho szegeriano – está pretendendo vir ao Rio no próximo dia 17 de junho, para ficar hospedado, justamente, no Ferreira Viana.
Antes, uma pausa: o Szegeri jamais fez reserva no Ferreira Viana. Uma única vez, quando decidiu vir ao Rio de última hora, ligou para o hotel e avisou que estava vindo. A sua carreira de hóspede permitiu que um telefonema fosse o bastante para garantir o quarto. Tentando comprovar sua lisura (troço absolutamente desnecessário) sugeriu à atendente, uma senhorinha já com mais de 65 anos:
– A senhora quer que eu já deposite o valor das duas diárias? Passe-me por favor os dados bancários…
Ouviu, o bom Szegeri, um arfar de pulmões cansados pelo telefone. A pobre senhora gania entre arquejadas:
– Meu filho, nem brinca! Nem brinca! Se você depositar um real que seja vai pro beleléu minha contabilidade. Eu perco o controle! Eu perco o controle!
Nessa ocasião ele me ligou justo pra me contar a inusitada recusa da garantia exigida por 9 entre 10 hotéis. E despediu-se daquele jeito:
– Só no Rio de Janeiro! Sabe quando isso seria possível em São Paulo?
E eu, fingindo o ineditismo da pergunta:
– Não. Conta, conta!
Ele:
– Nunca! Nunca! Nunca!
Fim da pausa, sigamos.
Pois o Bruno está, desde o início de maio, ligando para o Ferreira Viana às segundas-feiras. E dá-se sempre o mesmo diálogo. O primeiro telefonema foi no dia 02 de maio:
– Ferreira Viana, bom dia.
– Bom dia, minha senhora. Aqui fala Bruno Ribeiro, de Campinas, eu gostaria de fazer uma reserva para o dia dezesete de junho.
– Pra quando?
– Dezessete de junho.
Desligaram na cara do pobre Bruno que, assoberbado, não tentou de novo.
Dia 09 de maio, novo telefonema:
– Ferreira Viana!
– Bom dia. Aqui é Bruno, de Campinas, eu gostaria de fazer uma reserv…
– Pois não. Pra quantas pessoas?
– Uma.
– Pra hoje mesmo?
– Não. Para dezessete de ju…
Desligaram de novo.
No dia 16 de maio, tornou o Bruno:
– Ferreira, bom dia!
– Olá, senhora, estou tentando fazer uma reserva desde o começo do mês para o dia 17 de junho…
Bateram novamente o telefone na cara do pobre-diabo.
No dia 23 de maio:
– Hã? – foi assim, gentil, que atenderam.
– É do Ferreira Viana?
– É.
– Então, senhora, reserva – ele tentou ser curto pra ver se dava pé.
– Hein?
– Quero fazer reserva.
– Pra quando?
– Dezessete de junho…
A velhota perdeu a paciência:
– De novo, cacete!? Tá muito cedo ainda. Tchau.
E ficou ele com o telefone na mão, sem a reserva.
No dia 30 não tentou. Pensou, de si para si:
– Vou esperar junho.
E hoje, sentindo-se genial, ligou de novo:
– Hotel Ferreira Viana, bom dia.
– Olá, senhora. É o Bruno! O Bruno! O Bruno de Campinas! – e ele estava de joelhos ao telefone, o telefone na mão esquerda, a direita espalmada em direção aos céus.
– Sei. Lembro de você. Reserva pra junho, né? Quando mesmo?
Ele fez longa pausa pensando no que dizer. Ela engrossou do outro lado:
– Pra quando, papagaio!?
– Dia dezessete.
Ela pediu um minuto. Ele ouviu um farfalhar de papel e o som de um lápis batucando em dentes. Ela consultava a folhinha, quando disse:
– Muito longe ainda. Liga no dia treze.
E desligou, de novo.
Fernando Szegeri, como sempre, tem razão. Enquanto em São Paulo exige-se reserva com antecedência, impressão de um voucher eletrônico, pagamento de uma taxa a título de garantia, enquanto os funcionários dos hotéis recebem treinamento visando qualidade no atendimento ao cliente, a senhorinha do Ferreira Viana maltrata, sem piedade, o pobre hóspede, ansioso pela confirmação.
Só no Rio de Janeiro.
Até.