Em janeiro de 2005 publiquei A mulher que me ensinou a sorrir – aqui – quando, valend0-me de uma sacada de um dos meus orixás vivos, Aldir Blanc, fiz a confissão inusitada: “Sem você, Dani, não sei nem fazer cocô.”. E isso não era, em absoluto, exagero meu.
Um dos mais duros golpes e revezes que senti (e ainda sinto) depois de seu desaparecimento, em julho de 2011, foi justamente perceber que eu não sei, aos 42 anos de idade, fazer rigorosamente nada sem ela. Antes que me apontem o dedo inquisidor com o carimbo do exagero, eu digo que se trata da mais pura verdade. E faço, dando seguimento aos meus exercícios de expor-a-alma para amainar a dor pungente da saudade, algumas pequenas confissões.
Antes de setembro de 1999, quando nos (re)conhecemos, nos reencontramos e passamos a viver juntos, eu era, diante da iminência de uma viagem de avião, um fóbico em estado bruto. Dizem os médicos da alma que esse medo – o de voar – está diretamente associado ao fato da solidão que se materializa, de forma intensa, durante o vôo. Ali, dentro da aeronave, estamos absolutamente nas mãos das Leis da Física. Pois minhas viagens, que até setembro de 1999 eram, pra mim, uma espécie de tortura – eu chorava, eu gania, eu tinha taquicardias violentíssimas… – passaram a ser melífluas atividades. Ou melhor, ainda me causavam algum medo, mas as mãos da Dani eram a segurança que eu procurei a vida inteira, desde que deixei a escuridão do ventre.
Outra confissão: durante as viagens era Dani que de tudo tomava conta. Ficava com meu passaporte, com nosso dinheiro, com meu cartão de crédito, era quem cuidava de minha rotina, e havia sempre aquele sorriso, aqueles olhos de cuidado, aquelas festinhas no meu rosto, o afagar de meus cabelos. Foi assim – mais uma confissão – até abril de 2009, quando veio o diagnóstico da doença que a consumiu.
Dali em diante conheci outra faceta do amor. Fui, dali em diante, por mais poltrão que eu fosse, um homem em permanente estado de atenção. Passei, pelas mais óbvias razões, a cuidar dela com mãos de extremo zelo, com olhos de intensa e incessante cumplicidade, e por mais que tivesse o coração em frangalhos, a alma forjada pela dor e pelo medo permanente da morte e da perda, jamais faltei a ela. Tenho – me perdoem se lhes soarei prepotente – absoluta convicção de que fui o melhor dos homens, o mais íntegro companheiro, o mais digno diante da crueza da doença e dos caminhos que fomos obrigados a cumprir.
Até que veio outubro de 2009…
Foi desejo dela – prontamente atendido, como sempre – passar seu aniversário, dia 15 de outubro, em Nova York, cidade que ela não conhecia – eu já havia estado lá em 1995.
E a confissão que agora lhes faço me serve, uma vez mais, como catarse, como verdadeira terapia e como exorcismo de tanta saudade acumulada dentro de mim.
Eu sabia que seria diferente dessa vez: eu sabia que ela tinha dores, que a viagem seria feita sob certa tensão, com grande quantidade de recomendações médicas, uma quantidade considerável de medicamentos na bagagem, e que eu não poderia contar, como sempre contei, com sua vigilância permanente, seus cuidados, seus zelos, eu sabia que seria necessária a inversão dos papéis…
Nosso plano incluía uma visita de dois dias a Boston, para estarmos com nosso afilhado que mora lá, e depois uma esticada de seis dias em Nova York. E já no aeroporto, na hora do embarque, eu precisei ser maior do que sempre fui.
Nosso vôo saía do Rio, pela Gol, e havia uma conexão em São Paulo, com a Delta Airlines, rumo a Nova York, de onde pegaríamos novo vôo até Boston. A Gol atrasou a saída e o que eu temia aconteceu: perdemos a conexão.
Dani foi, naquele momento, uma mulher com o olhar perdido. Maldisse a sorte, não acreditava – e chorava, e chorava… – naquilo, dizia que não bastava a doença… esses troços… e eu fui um leão diante do guichê da Gol. Fomos maltratados, postos num hotel de quinta categoria, só embarcamos na noite do dia seguinte mas eu não deixei, em nenhum momento, ela se abater. Pausa: na volta, distribuí uma ação contra a Gol, ainda em trâmite, e nunca fui tão visceral na exposição dos fatos em uma petição inicial. A escrevi sob forte emoção, Dani ficou orgulhosíssima de mim…
A viagem foi, é claro, atípica. Se em todas as nossas viagens anteriores dormíamos pouco, andávamos muito, comíamos e bebíamos em demasia, vivemos, nessa viagem, o ritmo possível para ela (já lhes contei, aqui, Meu amor, e agora?, um pouco sobre essa viagem).
Era eu, meus poucos mas fiéis leitores, por conta do amor, por conta do de-cuidar que amar pressupõe, superando meus medos, minhas angústias, sendo pra ela o amparo preciso, o porto-seguro, o companheiro de todas-as-horas. Foi uma viagem ótima, emocionante, intensa, e na hora de voltarmos, bem me lembro, dentro do táxi e a caminho do aeroporto, deu de tocar Frank Sinatra no rádio e demos de chorar, os dois, de mãos dadas, e foi quando nos prometemos voltar – ela amou Nova York, agudamente! -, o que acabou não acontecendo…
Essa redimensão do amor, que viver o período do enfrentamento da doença me deu, jamais nos abandonou, a mim e a ela. Ela que, a poucas horas de partir pro Orum, quando tivemos – quantas vezes já lhes disse isso… – a mais bonita conversa que jamais tive com quem quer que seja, chegou-se pra mim e disse:
– Edu… tô preocupada com uma coisa…
Não disse nada, eu estava ali, debruçado sobre ela, olhos nos olhos, sua mão entre as minhas, ela continuou:
– Quem vai cuidar das suas camisas, meu amor?
Tudo o que eu não chorei naquele momento, eu choro hoje, dia após dia, no instante de me vestir pela manhã.
Até.