Aldir Blanc escreveu no prefácio de meu livro, publicado em 2009, pela Casa Jorge Editoral:
“É sempre difícil apresentar o livro de um amigo-irmão.
Os detratores partirão para a fácil lenga-lenga acusatória de excesso de babilaques e lantejoulas. Bom, quebrarão a cara e roerão as unhas de ódio. O presente livro, “Meu Lar é o Botequim”, de Eduardo Goldenberg, fala por si mesmo.
Taqui nesta mesma mesa o Fausto Wolff que não me deixa mentir.
Eduardo Goldenberg é carioca dos ovos, carioca da bunda, da Zona Norte, de blocos e bares, de becos e esquinas, carioca dos países baixos e mostra sua vocação pra disputar, aguerridamente, causas perdidas, sua ojeriza aos mamalufs soltos, aos garotodutos propinados, às Rosas de Maia que destroem o Rio de Janeiro, à lama que envolve as bases de sustentação política do país. No grito contra a escrotidão dos investigados e investigadores das CPIdiotas, daqueles que mantêm a velha ordem dos faraós embalsamados, Edu nasceu dissidente até de si mesmo. Não perdoa hipocrisia e atitudes politicamente corretas, estejam camufladas no futebol, no feminismo, nas estruturas neoverdes ambientoscas, na enxurrada de páginas estruturo-linguarudas de suplementos culturais que tomaram o freio das vã-guardas nos dentes podres.
É triste constatar que não há espaço na imprensa escrita para as broncas de Nei Lopes, Chico Paula Freitas, Ilmar Carvalho, Eduardo Goldenberg…
Mas, felizmente, aqui está o livro, última cidadela da civilização: papo em torno do limão da casa, do caldinho de feijão, dos torresmos e moelas, das porções de queijo ou de salaminho; saudade dos amigos de outras épocas, e copo; muito suor e gelo; mulheres e, eventualmente, porrada.
Por tudo isso, com todo meu afeto, um poema pro Edu.
Pós-Intróito
Estamos passagem de aqui
onde a eternidade é aragem…
Daí, essas garrafas
no fundo das mensagens.”
Na véspera do 02 de setembro de 2016, dia em que o Bardo da Muda completa 70 anos, eu não seria eu se não viesse aqui, ao balcão virtual do buteco, render homenagens a ele. Mais que um amigo-irmão, Aldir, a quem conheço desde 1994 – lá se vão 22 anos! – é um dos Orixás pra quem bato cabeça. Meu confessor, meu confidente, um pouco meu pai, às vezes meu filho, o Excêntrico Sr. Normal (como bem disse Álvaro Costa e Silva, o Marechal, aqui) com quem, invariavelmente, troco telefonemas que podem durar segundos ou um par de horas, é, ainda, meu ídolo. E por isso, e por tudo isso, vê-lo fazendo 70 anos me comove feito o diabo.
A foto abaixo, de 1998, no Bar Lagoa (eu entre Aldir e Tostão), é hoje – me perdoem o lugar-comum – apenas um retrato na parede. Retrato de um tempo em que o Aldir, para sorte da cidade, ainda saía por aí, à noite, rasgando as madrugadas até que confundíssemos todos o alvorecer com o anoitecer e o anoitecer com o alvorecer na busca desesperada de reviver a juventude. Tive a sorte de, inúmeras vezes, colocar ao lado dele, dentro do mesmo barco, realidade e poesia e rir da nossa própria agonia. Bebi muito dessa fonte em busca desse segredo.
Ainda bem moleque, levado pelas mãos de um professor de química do colégio, conheci (de longe, prestando sempre muita atenção a tudo…) o Aldir no Caras & Bocas, na Tijuca. Eu era, ali, o fã diante do ídolo. A vida, que nos prega surpresas o tempo todo, e eu agradeço diariamente por esse prêmio, levou-me pra mais perto do Aldir. Marco Aurélio, com quem Aldir fundaria a Alma Produções (AL de Aldir e MA de Marco Aurélio) – e quanta saudade eu tenho do Marco Aurélio… – era o namorado da filha de uma vizinha de meus pais. Foi, confesso, amor à primeira vista. Ele, que era Marco Aurélio Braga Nery (e eu sou Eduardo Braga Goldenberg), só me chamava de “meu irmão Braga”. E um dia me disse com seu inseparável cigarro de cravo entre os dedos:
– Você precisa conhecer meu irmão, Aldir Blanc.
Lembro-me como se fosse hoje do dia em que, pela primeira vez, fui à sua casa, seu bunker, sua cidadela, no edifício da rua Garibaldi onde morava, no primeiro andar, o Moacyr Luz. Cercado por milhares de livros, recebendo os amigos em casa quando isso ainda era rotineiro, Aldir era, ali, o gênio que eu vira, moleque ainda, no Caras & Bocas. E esse convívio, como não podia deixar de ser, rendeu-me as melhores histórias, as maiores maluquices, os maiores perrengues, as melhores festas, e, eventualmente, porrada. Tornei-me seu advogado, derrotamos na Justiça um canalha que pretendia receber indenização por conta de uma verdade dita pelo Aldir numa entrevista, e foi, lhes garanto, a mais divertida audiência que já fiz em mais de 25 anos de carreira. Dentro da sala da audiência, abraçado à indefectível bolsa marrom, nervoso, dirigiu-se à Juíza:
– Posso fumar?
E fumou.
Fui sócio de um bar, entre 2000 e 2005, numa esquina a poucos metros da casa número 257 da rua dos Artistas. Aldir batia ponto sempre que podia. Vivemos, ali, momentos memoráveis, como esse – vídeo aqui – em que o ainda novato Moyseis Marques (hoje seu parceiro), acompanhado pelo cavaquinho do Gabriel Cavalcante, pediu pra cantar Imperial (de Aldir e Wilson das Neves) pro Aldir ouvir. Ou como esse, Aldir cantando samba-enredo do Salgueiro acompanhado pelo sete cordas do Pratinha no mesmo dia em que filmou, dentro do bar, as cenas para o filme Praça Saenz Peña, em que Aldir fazia o papel de Aldir (aqui).
Aldir foi enredo do Segura Pra Não Cair, bloco que criamos ali mesmo, dentro do bar. E desfilou, sem corda alguma que atrapalhasse nosso carnaval.
E segue, aos 70 anos, desfilando, ainda que miudinho, mais recluso que nunca, sua genialidade, sua generosidade, sua imensa grandeza que transborda e inunda o Brasil, hoje maculado por um golpe branco que fere a democracia que tem como hino (o Hino da Anistia!) sua obra-prima, O Bêbado e a Equilibrista. Sobre a imensa obra do Aldir, já me debrucei aqui.
O que eu queria mesmo era agradecer, pública e escancaradamente, eu que estou a 3 anos de fazer Bodas de Sangue, a ele por tudo o que ele é, por tudo o que representou e representa na minha vida, por tudo o que representa, ele e sua obra, para o Brasil. Aldir é gênio da raça. O Ourives do Palavreado, como disse Dorival Caymmi. É bom de se ouvir e de se aldir, disse Chico Buarque. É um brasileiro máximo. Uma espécie em extinção. Um homem que sempre, e desde sempre, esteve do lado certo do terreno.
A última vez em que estivemos juntos foi há pouco: eu e a Morena, chegando de Portugal, fomos levar a ele alguns livros que ele me encomendara às vésperas da viagem. Era pra ser coisa rápida – mas com a graça de todos os deuses, não foi. Passamos com ele um bom tempo, sem birita, só jogando conversa fora e ouvindo aquele homem falar – e ele quando fala, meus poucos mas fiéis leitores, há que se fazer silêncio.
Amanhã, 02 de setembro, deveria ser decretado feriado nacional. Porque quando nasceu o filho do seu Alceu e da dona Helena, e é ele mesmo que conta, soprou um vento que traduzia:
– Vai, Aldir, ser Blanc na vida.
Somos homens e mulheres de sorte. Apesar de vivermos num Brasil hoje ferido por uma corja de filhos da puta, somos um Brasil que tem entre seus filhos, e fazendo 70 anos, um homem como ele.
Saravá, Aldir. Meu amor e meu respeito, sempre.
Até.
Viva Aldir! Belo texto.
Belo texto!
Edu,
Meu irmão de alguns sofrer, mas que me dá tanta alegria de ler, ele que anda nos sacaneando sem escrever. Que luxo de artigo, pra lavar alma numa semana funesta.
Aldir, nos ilumine
Arnobio
Obrigado, Arnobio, você sempre muito gentil. Forte abraço!
Arrepiado até os cabelos do relógio ao ler tamanha demonstração de amor ao que deve ser amado feita de forma tão escrotamente porreta. Parabéns ao Aldir, que sua essência não se perca pelo tempo que passamos, que o choro da nossa Pátria, mãe gentil, seja só de felicidade por termos brasileiros que nem ele e que nem o que rende homenagens.