A 47ª VOLTA DO PONTEIRO AMANHÃ

Eu estava no domingo passado na esquina do Bar do Chico, depois de ir à feira, e à mesa comigo, o Felipinho e a Renata. Saltou de um táxi, ali mesmo na esquina, uma senhora de – o quê?! – uns 80 anos. Eu disse aos dois:

– Há quantos anos eu não vejo uma anágua!

E bastou eu dizer anágua para que eu sofresse, imediatamente, súbito e arrebatador arremeso em direção ao passado. Lembrei-me, no ato, que estava tendo início a semana do meu 47º aniversário, e me permitam um sonoro puta que pariu diante do número antes de prossseguir. Eu já sou, há muitos anos, um homem em permanente estado de arremesso ao passado, que dirá nos dias em que se aproxima o 27 de abril. Há anos que dou-me o dia de presente, não trabalho. Percorro, nesse dia, as ruas da minha infância numa tentativa, vá lá, de manter viva em mim a chama do menino que fui, sempre muito assombrado (para o bem e para o mal) com tudo o que vi, com o que vivi, com o que comi, com o que bebi, com o que ganhei e com o que perdi. Segundos após pronunciar a palavra anágua, minha tia Idinha, que usava anáguas, deu de afagar meus cabelos enquanto eu conversava com os dois, (mal) disfarçando a emoção que me tomava a alma e o coração. É bem verdade que, aos 46 – quase 47 – um comprimido de Pressat, um de Natrilix SR e uma dose diária de 2mg de Olcadil ajudam a domá-los, a alma e o coração, quase-incorrigíveis. Eu disse quase.

47 anos foram suficientes pra que um incorrigível como eu já não abra mais a boca com tanto orgulho pra dizer: incorrigível. Já não tenho mais a tia Idinha, minha bisavó eu não vejo há exatos 35 anos (e eu tenho, até hoje, uma saudade brutal da dona Mathilde…), meus avós, todos, são fantasmas que estarão comigo amanhã: Oizer, Milton, Elisa e Mathilde, eles e seus brioches de presunto e queijo dos lanches de domingo, lutas de telecatch, doses intermináveis de Teacher´s, maços de Hollywood e de Minister, muito carteado, os olhos azuis do velho Oizer transmitindo um carinho que ele jamais soube expressar, o silêncio permanente do velho Milton, a rudeza da minha vó Elisa em contraste com a doçura cheirosa de minha avó Mathilde, a quem não vejo há quase 6 anos. Irei amanhã, é certo, passar em frente à vila 84 da São Francisco Xavier pra ouvir, do portão da rua, meus próprios gritos de algazarra junto com os gritos do Ricardo, do Renato e do Aurélio, do Augusto e do Camilo, do Silvio e da Pimpa, da Martinha, pra ouvir o ronco do motor do TL, táxi do seu Mário, os esporros intermináveis da dona Dalas e do seu Pereira, e meu avô Milton ameaçando pegar o revólver pra resolver tudo com tiros pro alto. Seu Bizantino, o velho negro dono de um Corcel, há de estar por lá. Vou em busca da vila que não mais existe entre a Heitor Beltrão e a Professor Gabizo, onde moravam meus avós maternos quando nasci. Mas ai dos que duvidarem de mim: ela existe, do mesmo jeito que eu conheci, em mim, dentro de mim – e ainda que apenas para mim.

Já não tenho um de meus irmãos, já perdi três cachorros – Zica, Pimentinha e o Toquinho – mas é o Pepperoni que os receberá amanhã pela manhã, latindo pra quem souber decifrar: pobres daqueles que escolhem morrer em vida. Já perdi uma mulher a quem não vejo há quase 5 anos, mas não me vai causar estranheza se ela passar por mim, n´alguma altura do dia, pra me desejar felicidades. Quantos amigos, meu Deus, eu já enterrei. Uns porque morreram, outros tantos porque a vida se encarregou de desviá-los de mim. Sigo confiando no que cresci ouvindo dos mais velhos, das velhas da família (eram tantas!, e usavam anágua e se abanavam com leques imensos), do meu pai e da minha mãe: nasci anunciado por um caboclo que se fez visível, pela primeira vez, diante dos olhos do meu pai na madrugada de 26 para 27 de abril pra desmentir o médico que, na véspera, confirmara meu nascimento para o começo de maio. O caboclo – mais tarde se saberia, Tupinambá – fez que sim pro meu velho: eu nasceria no dia seguinte, 27 de abril. Minha mãe acordou, fez troça com o que considerou sonho ou delírio do velho, ansioso com o primeiro filho, e o mandou pro trabalho, na REDUC, em Duque de Caxias. Lá chegando o velho teve de voltar. O anúncio lhe fora dado tão logo desceu do ônibus da companhia: teu filho está pra nascer! Sigo confiando no caboclo de quem meu pai passou a ser cavalo.

deitado

Sigo confiando, ainda que meio desconfiado – talvez a idade faça isso com a gente -, que tenho a proteção constante da caboclada. Iya Sandra, que também não está mais aqui, jogou búzios pra mim em meados de 2007 e me disse: você é filho de Ogum, meu filho, mas quem te sopra nos ouvidos o tempo inteiro é Exu. Meu irmão e meu compadre, Luiz Antonio Simas, confirmou, deu-me seu fio de presente com contas azuis, vermelhas e pretas, e que hoje tem o verde-e-amarelo de Orunmilá, que fiz por merecer. Sigo confiando que tenho a proteção constante dos Orixás, a quem devoto respeito e a quem reverencio sempre que devo fazê-lo.

E tudo o que lhes pode soar como lamento – as perdas, a saudade, o tempo que não volta – não é lamento. Até porque a vida transforma tudo conforme a determinação de quem vive. O velho Simas, quando eu andava no baixio, me ensinou, daquele jeitão dele que só quem o conhece sabe como é, a pilar o pilão devagar, com calma e sem pressa.

E foi sem pressa que cheguei – chegarei, é só amanhã e sou de supertições também – aos 47. De casa nova, ao lado da minha Morena, a única mulher possível e que chegou-se a mim da forma mais improvável do mundo – quem sou eu pra duvidar do dedo dos deuses numa hora dessas?! – no inverno de 2011, prenunciando a primavera que começaria 16 dias depois. A mulher a quem amo carregando nos ombros o peso de 47 anos e nas mãos a esperança de uma vida longa, ao lado dela, e a quem dedico meu dia de amanhã (estou escrevendo pra mim mesmo, ressalto).

Uma olhada rápida pra trás e muito a agradecer: a vida do meu irmão, que depois de um susto do tamanho do mundo, está vivíssimo. A vida da minha mãe, que depois de enfrentar a mais filha da puta das doenças está aí, cada vez mais parecida com a própria mãe, minha avó, e vivíssima. Meu velho pai, teimoso como quem a ele deu a vida, mas aí, vivíssimo. Os melhores amigos do mundo e que não preciso enumerar: cada um deles sabe de sua condição de imprescindível pra mim, eu que jamais poupei-me na hora de declarar o amor que me move. Um grande vira-latas, o Pepperoni, presente de Exu, como decretou o Simas. Um monte de afilhados e afilhadas a quem tenho faltado, bem sei, mas andei ocupado demais me rearrumando.

E de  novo, e sobretudo, por ela, Flávia, minha Morena amada, a quem dediquei, cifradamente, Desassossego, em novembro de 2011 – aqui.

Saravá.

13 Comentários

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13 Respostas para “A 47ª VOLTA DO PONTEIRO AMANHÃ

  1. Marianna

    Eita que esse blog é danado para encher meus olhos de água! Vida longa, Edu, sempre ao lado dos seus.

  2. Luis Pimentel

    Lindíssimo! Antológico!

  3. Parabéns! Vida longa!
    Que lindo texto e que foto maravilhosa!

  4. Tatiana Carneiro dos Reis

    Obrigada pelo texto!Vida longa e que foto! Nao parece que mudou a expressao!Abracos  Tatiana e Dieter

  5. Rabbit Rally

    Acordei hoje e sabia que encontraria por aqui um texto do seu aniversário, Edu. Que texto gostoso de ler: você nos leva pelas mãos contigo nesses seus arremessos ao passado. Obrigada! Feliz aniversário e um abraço forte, Carinho, Carol.

  6. Sandro Gomes

    Parabéns, Edu! Um Tijucano da boa safra de 69!

  7. Edu, parabéns pela data, muita felicidade e vida longa com saúde !!!!!!
    Também sou taurina.
    Compreendo o ” coração sobressaltado ante a impermanência da vida” ….
    coisas de taurinos.
    Feliz aniversário, Eduardo Goldenberg!!!!

  8. João

    Edu, primeiramente um Feliz Aniversário do tamanho da sua Tijuca, muita saúde felicidade e sucesso! Em segundo que texto gostoso de ler meu amigo… Daqueles onde mesmo lendo a sua passagem não como não nos remetermos a nossa própria. Lembrar da infância dos amigos e parentes queridos e de todos os cenários que compõem a nossa vida. Nesses momentos de confusão, onde a vida está ha afastar uns tantos, está também a juntar outros, mesmo que nesse mundo virtual. Parabéns novamente.

  9. Fábio Grigoletto

    E que outro puta texto! Você aniversaria e nós ganhamos presente? Meus parabéns! Grande abraço!

  10. Vicente Ferreira da Silva Filho

    Edu, que belo presente nos deste. Vida longa pra ti!

  11. Paulo Sarmento

    Porra, mais uma vez esse cara me emocionando…

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